80 anos do Pica-Pau, o mais brasileiro dos cartoons norte-americanos

 por Carlos Vinicius Marins



O pássaro mais maluco e querido da TV brasileira está fazendo 80 anos.

    


Foto Walter Lentz
Sim, ele é mais velho que a mídia que o consagrou por aqui. É mais um dos que fez sucesso na televisão, mas são oriundos do cinema. Brasileiro adora o coelho Pernalonga e seus amigos do Looney Tunes. Também é grande fã do camundongo Mickey e sua trupe da Disney, além das diversas criações da dupla Hanna-Barbera. Porém não há dúvidas de que o Pica-Pau tem um lugar especial em nosso coração tupiniquim. E isso vem de longe: os episódios do Pica-Pau foram os primeiros desenhos animados veiculados na TV no Brasil. Tudo começou na TV Tupi, a primeira emissora do país, no seu segundo dia de veiculação: 19 de setembro de 1950. 

O personagem foi criado 10 anos antes pelo Walter Lantz, um desenhista que tinha conseguido seu próprio estúdio e um contrato com a poderosa Universal Studios para a distribuição de sua produção nos cinemas. Nos anos 30 e 40 do século passado fazia parte do programa de quem ia aos cinemas assistir curtas de animação antes da projeção dos filmes. E cada estúdio tinha seus próprios fornecedores desse tipo de produto: a Warner Bros tinha o Looney Tunes, a MGM tinha Tom & Jerry, a Paramount tinha o Popeye e a RKO os desenhos da Disney. O Pica-Pau foi criado por Lantz em parceria com o animador Ben Hardaway, que escreveu e também foi co-autor da maioria dos curtas do personagem até 1949.


O visual amalucado em seu desenho de estreia (‘Knock Knock”, de 1940)

Quando surgiu, o Pica-Pau era um mero antagonista em uma animação protagonizada por aquele que era considerado a estrela da casa: Andy Panda, cuja série de curtas começou a ser produzida no ano anterior (1939). De acordo com a história oficial divulgada pelo próprio Lantz, a ideia para o personagem surgiu quando ele estava em sua noite de núpcias com Grace Stafford, sua segunda esposa, e um pica-pau teria atormentado o casal com sua barulheira, bicando sem parar o telhado do chalé onde eles tinham se hospedado. Para piorar, depois que o pássaro resolveu ir embora, teria começado a chover e o casal percebeu que o pica pau havia esburacado todo o telhado causando várias goteiras no teto. Apesar de ser uma história ótima, ela não tem muita credibilidade, pois Lantz se casou em 1941, no ano seguinte a estréia do primeiro desenho do Pica-Pau.

Lantz, apesar de ser conhecido por ter um bom traço para criar personagens baseados em animais, mais que nenhum outro animador na época, teve dificuldade em encontrar alguém que se interessasse usar o Pica Pau como base de suas criações. Demorou para Lantz despertar o interesse de Bernie Kreisler para sua criação, Bernie era o responsável pela aprovação dos curtas na Universal. A maior dificuldade para liberar o uso do Pica-Pau eram muitas. Kreisler o achou feio e desajeitado. Inicialmente o Pica Pau era um pássaro louco, estrábico e com a dentição ressaltada e incompleta. Seu objetivo não era para ser uma gracinha, e sim o de criar confusão e incomodar apenas com sua presença. Para muitos, o personagem tem clara inspiração na versão original e tresloucada do Patolino, criação do animador Tex Avery para os Looney Tunes, da Warner. Lantz insistiu e acabou convencendo-o a aceitar que ele aparecesse em um curta. Assim surgiu “Knock Knock”, o quinto curta de animação do Andy Panda. Para a surpresa de Kreisler, ele foi um sucesso absoluto de público.

Foto Pica-Pau

A produtora de Lantz ganhou o aval para produzir mais curtas com o personagem, porém ele não seria mais um coadjuvante, um mero antagonista do protagonista. Logo após sua este primeiro curta, o Pica-Pau passou a estrelar sua própria série e logo se tornou o mais popular personagem do estúdio, chegando a torna-se mascote da Universal Studios – ele continua presença constante nos parques temáticos de diversões da empresa. Curiosamente o final original desse primeiro desenho do personagem, onde ele é levado para um hospício por dois outros pica-paus trajados de enfermeiros, foi cortado por muito tempo no Brasil e em vários países do mundo quando veiculado na TV. Como não foi realizada a dublagem deste trecho em português, quando aparece este trecho, ele está na versão original em inglês. Neste desenho também está outro grande bordão do Pica-Pau. Em sua primeira aparição ele surge em um buraco no telhado e diz: “Guess Who?” (algo como “adivinhe quem é?”). Em todos os seus desenhos até os anos 70 ele repete essa mesma frase ao surgir na abertura antes de dar sua famosa risada. Essa frase não é traduzida nas versões dubladas no Brasil e muito acham por aqui que ele fala “Pessoal!” ou então “Sou Eu!”.

O primeiro dublador a dar voz ao Pica-Pau foi o lendário Mel Blanc, chamado de “o homem das mil vozes”. Foi ele que criou a principal marca do personagem: sua inconfundível risada. Blanc elaborou uma versão de outra risada que tinha criado antes para um novo personagem dos Looney Tunes da Warner – onde fazia as vozes de todos os personagens. A risada original era de Happy Rabbit, que mais tarde se tornaria o mais popular personagem daquele estúdio: o coelho Pernalonga. O personagem, porém, só usaria a risada em quatro curtas, deixando depois ela de lado. Blanc, coincidentemente, só dublou quatro curtas do Pica-Pau, pois acabou assinando um contrato de exclusividade com a Warner. Mas a gravação de sua clássica risada continuou sendo usada pelo Pica-Pau até o fim dos anos 40. Quem substituiu a voz de Blanc foi o co-criador do personagem, Ben Hardaway. No Brasil, na lista de seus dubladores estão Older Cazarré - também conhecido por seu trabalho de ator e comediante (interpretou o João Bacurinho na Escolinha do Professor Raimundo) - e Garcia Júnior, que substituiu Cazarré como a voz do personagem tendo apenas 10 anos de idade. É dele a voz que mais associam ao Pica-Pau, por aqui pouca gente sabe que também é sua a voz de outros ícones da cultura pop no Brasil: He-Man, McGayver, Capitão James T. Kirk, Arnold Schwarzenegger e do James Bond de Daniel Craig.

Foto Mel Blanc (Dublador)

Em 1944 o personagem passa por sua primeira grande mudança. O Pica-Pau continuava a aprontar das suas, mas deixou de ser um completo biruta, para ser apenas uma criatura insolente, atrevida. E seu visual também mudou. Em sua nova aparência, criada pelo animador Emery Hawkins, ele perdeu o estrabismo e os dentes salientes, além de ganhar luvas brancas. Reduziu sua altura e a extensão de seu bico, que ficou mais curvo. Suas pernas ficaram menos grossas e ganharam a penugem de seu corpo. Para muitos a fase que se inicia a partir daí é a Era de Ouro do personagem. Neste período ele ganha alguns de seus mais conhecidos e constantes antagonistas: Leôncio (surgido em 1946) e Zeca Urubu (1948). Ainda em 1948 surgiu a Canção do Pica-Pau (The Woody Woodpecker Song”), composta por Kay Kyser e interpretada por Gloria Wood e Harry Babbit. Ela foi usada no curta “Apólice Cobertor”, onde o Zeca Urubu aparece pela primeira vez. A recepção da canção foi tão boa – vendeu 250 mil discos em apenas 10 dias – que foi indicada ao Oscar de Melhor Música. Foi a única vez que um curta de animação foi indicado nessa categoria. O Pica-Pau também concorreu duas vezes no Oscar de Melhor Curta de Animação. Os curtas indicados foram “O Acrobata Maluco” (1943) e “Trechos Musicais de Chopin” (1946). Fora estes, Lantz ainda foi indicado para o prêmio mais oito vezes, cm curtas sem a presença de seu personagem mais famoso, mas não levou nenhum deles. Em compensação ganhou um Oscar especial em 1979 pelo conjunto de sua obra e ele tem uma estrela na Calçada da Fama em Hollywood – distinção dada também ao próprio Pica-Pau.

Foto Walter Lantz recebe Oscar

Apesar de tudo isso, o final da década não foi fácil para Walter Lantz. Mel Blanc entrou com um processo em 1949 contra seu estúdio pelos direitos do uso da risada que criou para o Pica-Pau. O dublador perdeu o processo, pois não havia registrado a risada como de sua autoria. Mesmo assim, Lantz fez um acordo extrajudicial com ele pagando uma determinada quantia. O animador entrou em um atrito com a Universal, após esta mudar seu corpo administrativo, envolvendo o direitos de seus personagens. Ele passou a distribuir seus curtas por outro grande estúdio – a United Artists – mas a relação não foi muito boa. Então Lantz decidiu fechar seu estúdio, que só foi reaberto dois anos depois com o apoio financeiro de sua velha parceira, a Universal. Ao reabrir, Lantz contratou uma nova equipe de animadores e nessa época ocorreu a segunda grande mudança no seu maior personagem. O destaque dessa alteração vai para seu topete vermelho que mudou de direção: antes era para trás e passou a se curvar para frente. Seu novo visual porém é inconstante devido a grande quantidade de curtas encomendados pela Universal com prazos de entrega muito apertados


Do Cinema para a TV


O grande diferencial da década de 50, porém, é a chegada para a produção do estúdio da mais nova e popular mídia de então: a televisão. Em 1957 a rede ABC dos EUA começou a exibir o programa semanal do Pica-Pau. Eram três desenhos por episódio apresentados pelo próprio Walter Lantz que contracenava com a versão animada de sua maior criação. Uma curiosidade deste período está no fato de quem assumiu a voz do personagem: Grace, a esposa de Lantz, que assinava como dubladora com seu sobrenome de solteira, Stafford. Aqui cabe mais uma versão dos fatos questionada por alguns. Lantz estava à procura de um novo dublador para seu personagem principal e foram gravados uma série de testes com profissionais diferentes que ele ouviria depois. Sem que Lantz soubesse, sua esposa também fez o teste. E foi justamente a voz dela que ele escolheu, sem saber que aquela era a voz da sua esposa. Essa é uma ideia aceitável pelo fato da voz dos dubladores do Pica-Pau em inglês ter suas vozes distorcidas e aceleradas para uso nos curtas, alterando-as substancialmente. Isso não ocorre na dublagem brasileira.

Nessa época aconteceu a maior alteração nas características do personagem. Para os novos curtas criados para TV a violência do Pica-Pau foi drasticamente reduzida e suas atitudes deixaram de vez de serem gratuitas. Ele ainda irritava seus antagonistas, mas passou a agir assim apenas quando provocado ou sem perceber que suas ações incomodavam os outros. Em 1970, o programa passou a ser exibido pela rede NBC que exigiu a reedição dos desenhos antigos criados para cinema, retirando suas cenas mais fortes. A mudança mais marcante em seu visual nesse período foi a alteração da cor de seus olhos: de verdes passaram a pretos.


Estudo de cena para filme “Uma Cilada Para Roger Rabbit” (1988, de Robert Zemeckis)


A produção de curtas prosseguiu até 1972, quando Lantz fechou seu estúdio de forma definitiva por causa do aumento os custos de produção. Foi o último dos clássicos estúdios de animação a fechar as portas. Mas seus desenhos continuaram a serem exibidos. Os desenhos do estúdio foram vendidos para a Universal em 1985, que prosseguiu com sua veiculação na TV. Em 1988 o Pica-Pau retornou ao cinema fazendo um cameo no clássico “Uma Cilada para Roger Rabbit”, que reunia personagens clássicos de animações de diversos estúdios. Esta foi a última novidade do personagem que seu criador pode ver. Walter Lantz faleceu em 1994 com 94 anos.

Em 1995 o Pica-Pau participou de um comercial com o jogador de basquete Shaquille O´Neal. Então em 1999 a própria Universal começa a produzir novos curtas com o personagem para um novo programa dele veiculado no canal por assinatura Fox Kids. Após mais de 25 anos sem novos desenhos, o visual do Pica-Pau é novamente alterado, ganhando um design mais próximo de seu visual na sua Era de Ouro. Essa nova série foi produzida até 2003 e continuou sendo reprisada depois disso. Mas, mesmo enquanto ela estava no ar trazendo episódios inéditos, os curtas clássicos e os primeiros criados para a TV também continuavam sendo veiculados.


Cartaz do filme Pica-Pau

Então, seguindo uma tendência que já não era nova, o Pica-Pau ganha em 2017 seu primeiro longa-metragem combinando animação digital com atores em carne e osso. Dirigido por Alex Zamm, o filme nunca teve o objetivo de alcançar grandes recordes de bilheteria. Na maior parte do mundo – inclusive nos EUA – ele foi lançado direto no formato de home vídeo. Ele só foi lançado nos cinemas em alguns países da América Latina, mas sem dúvida, seu grande foco foi o mercado brasileiro, onde o personagem possui o maior número de fãs das mais variadas idades. Não por acaso a atriz brasileira Thaila Ayala estava no elenco e foi aqui que ocorreu a promoção de sua estréia mundial – aliás, o filme foi lançado nos cinemas brasileiros antes de chegar no resto do mundo. Mas ele não foi bem nas bilheterias, apesar de uma arrecadação razoável em suas duas primeiras semanas em cartaz. Seu roteiro era previsível, os atores não estão bem e a versão do personagem em CGI não agradou o público.

O longa, porém, teve um ponto positivo: seu lançamento estimulou a produção de uma nova série de curtas no ano seguinte, agora para a nova mídia que é a mais popular da atualidade: a internet. Criados em parceria entre a Universal Studios e a Splash Studios, a websérie é animada em flash, mais simples e mais barata, e os curtas eram dirigidos pelo mesmo Alex Zamm do longa-metragem. Eles procuravam emular as animações clássicas do Pica-Pau e o seu visual também remete a Era de Ouro do personagem. Os curtas foram lançados no canal oficial do personagem no YouTube permitindo acesso gratuito a todos que quiserem ver na hora que quiser. Uma segunda temporada estreou agora no dia 21 de outubro, confirmando o sucesso da iniciativa. E, mais uma vez buscando atingir o coração do público brasileiro, três episódios da websérie – dois na primeira temporada e um na segunda – se passam no Brasil, usando a cidade do Rio de Janeiro como cenário. Todos estes novos episódios foram disponibilizados pela própria Universal em português do Brasil no canal oficial brasileiro do personagem (“Pica-Pau em Português”), que possui quase 5 milhões e meio de inscritos e também dispõe de vários curtas clássicos dele. Mas como afinal se estabeleceu essa relação tão próxima e intensa do personagem com o povo brasileiro?


A nova websérie do Pica-Pau: maior audiência com folga entre brasileiros


Brasileiro de Coração


Como falamos anteriormente, o Pica-Pau está ligado à televisão brasileira desde o início do surgimento da mídia por aqui, em 1950, na TV Tupi. Provavelmente fomos o primeiro país em que seus curtas foram exibidos periodicamente na TV. E era sucesso mesmo falado em inglês – o personagem só teve seus curtas dublados na televisão quando eles passaram a ser transmitido pela Record, em 1960. Após algum tempo seus desenhos saíram do ar e ele parecia fadado ao esquecimento, até serem adquiridos pelo SBT, que passou a exibi-los desde sua inauguração, em 1981. Aí o personagem se tornou um sucesso inquestionável por aqui. Seus episódios eram exibidos pela emissora a qualquer hora do dia, preenchendo buracos em sua programação ainda incipiente ou usado para combater as concorrentes nos horários em que os programas que elas exibiam tinham menos apelo para o público. Os brasileiros se identificaram com aquele pássaro irreverente e anti-heróico, colocando a emissora no topo da audiência por diversas vezes. Podemos afirmar que ele passou a fazer parte do imaginário de nosso povo, que incorporou no seu dia a dia ou no seu cabedal cultural bordões marcantes de vários de seus episódios (“E lá vamos nós!”, “Em todos estes anos nesta indústria vital, essa é a primeira vez que isso me acontece”, “Chamando Dr. Hans Chucrutes!”, “Vudu é pra Jacu”, “Você disse pipoca?” etc).  


Pica-Pau vinheta Rede Globo

Em 2003 a poderosa Rede Globo desistiu de brigar e conseguiu os direitos de exibição dos curtas de Lantz, que foram remasterizados e passaram ser exibidos dentro do seu popular programa infantil TV Globinho. Mas não era a mesma coisa. No SBT o Pica-Pau era uma válvula de escape para quem queria ver algo que gostasse na TV em meio a um mar de programas sem graça, principalmente antes do surgimento das TV a cabo e dos serviços de streaming. Na Globo, com hora marcada para passar, ele não funcionava. O canal parou de exibir seus curtas em 2005.

Foi a vez então da Record voltar a participar desta disputa. A emissora, que saíra do ar e voltara muitos anos depois sob nova administração e um estilo diferente de TV, aproveitou o descaso da Globo e passou a exibir na TV aberta em 2006 os novos desenhos do Pica-Pau que eram veiculados na FOX Kids. A emissora passou também a veicular os desenhos antigos no ano seguinte. Em 2017 a Universal lançou seu canal oficial do personagem no YouTube em três idiomas: inglês, espanhol e português do Brasil. O canal em português tem o dobro de inscritos do canal espanhol e dez vezes mais do que a versão em inglês. Ainda assim os desenhos do Pica-Pau continuam a ser exibidos na Record, de forma bem mais acanhada: apenas nas manhãs de domingo.

Os norte-americanos e o resto do mundo podem não dar muita bola para esse pássaro octogenário, mas, quando nos apaixonamos por um produto da cultura pop e ele passa a fazer parte de nós, sempre estará em nossas conversas e transmitiremos esse amor às gerações seguintes. Certamente os brasileiros nunca vão deixá-lo descansar em paz e ser esquecido. Perguntem a Tyler James Williams que protagonizou o seriado “Todo Mundo Odeia Chris”...


As principais mudanças no visual do Pica-Pau 




Um comentário:

  1. curiosamente ele tem 8 versões de traço em seus 80 anos de criação... claro que nem todos duraram 10 anos. mas ficou curioso isso.
    "Oi!? Você procura uma cabeça? Eu sou uma cabeça"!"

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