domingo, 30 de janeiro de 2022

Looongo trajeto... Crítica – Filmes: A Lenda do Cavaleiro Verde (2021)



Onírico rito de passagem à maturidade

 

por Alexandre César


Narrativa mítica chega aos cinemas e na Prime Video
 

 
Natal. O jovem aspirante à cavaleiro Gawain (Dev Patel de Quem Quer Ser um Milionário numa ótima performance, mesclando insegurança e vontade de superação) desperta num prostíbulo acompanhado por Essel (Alicia Vikander de Tomb Raider: A Origem), jovem com que se relaciona, e volta para casa para descansar pois mais tarde irá aos festejos no castelo do rei. Sua Mãe (Sarita Choudhury de Negócio das Arábias) uma poderosa feiticeira não vai, e ele é bem recebido no castelo pelo Rei (Sean Harris de Missão: Impossível - Efeito Fallout) e pela Rainha (Kate Dickie de Prometheus), pois ele é o sobrinho favorito do monarca. Assim ele se sentindo bem acolhido à despeito de sua inexperiência, ele testemunha a entrada na corte de uma figura estranha de aspecto sobrenatural, o Cavaleiro Verde (Ralph Ineson de Star Wars: Os Últimos Jedi) visualmente similar à uma árvore viva. O ser desafia o rei e seu séquito se entre eles haveria um cavaleiro corajoso que o golpeasse, de forma que um ano e um dia depois ele retornasse o mesmo golpe. Face o silêncio de todos, Gawain, querendo mostrar ser merecedor de ser um cavaleiro e, digno de conviver com os mais nobres e valorosos homens da comunidade, aceita o desafio. E demonstra valentia em público pegando o machado do ente e decapitando-o.

 

A prostituta Essel (Alicia Vikander) e o aspirante a cavaleiro Gawain (Dev Patel) têm um relacionamento à despeito de sua diferença de classes sociais


 
Para sua surpresa, o corpo do ser se levanta, pega a cabeça cortada e monta o seu cavalo após falar: “- Nos veremos daqui a um ano e um dia Gawain, na catedral verde!” e sai em disparada, deixando a todos atônitos, e em especial a Gawain, tendo de encontrar uma forma de manter a sua parte do acordo. Ele embarcará numa jornada heroica que definirá seu caráter, enfrentando fantasmas, ladrões, gigantes e trapaceiros para honrar uma dívida e, manter a sua honra de cava-leiro (e seu futuro no mundo) mas esperando não (literalmente) perder a cabeça...
 
 

Gawain é convidado a conversar com o Rei (Sean Harris) e a Rainha (Kate Dickie), não nomeados como 'Arthur' e 'Guinevere', pálidas figuras em relação ao arquétipo lendário

A entrada do Cavaleiro Verde (Ralph Ineson) desafiando aos cavaleiros serve como uma oportunidade para o ambicioso Gawain
 
 
Escrito, montado e dirigido por David Lowery (Meu Amigo, O Dragão) A Lenda do Cavaleiro Verde (2021) reimagina a clássica lenda de “Gawain e o Cavaleiro Verde”, onde o guerreiro em questão invadiu a corte de Rei Arthur, desafiando qualquer um dos membros da Távola Redonda a atacá-lo com seu machado – mas ele retornaria para devolver o golpe em um ano e um dia...A narrativa já foi adaptada algumas vezes para as telas, buscando um tom mais aventureiro, pois o icônico monarca - um dos símbolos da cultura celta e britânica - que enfrentou males diver-sos em prol da bondade e da derrota dos males em seu reino, junto com Merlin, Guinevere, Lancelot, Morgana Le Fay, (e Viviane), caíram no gosto popular e no imaginário pop, enquanto outros ficaram em segundo plano, razão pela qual alguns nomes do metier do entretenimento atual, de tempos em tempos, resolvem resgatá-los ao mainstream, por trazerem frescor à narrativa, sendo este, o caso de Gawain*1. Após vários atrasos, essa produção da A24 finalmente chegou aos cinemas do Brasil e ao streaming, através do Prime Video.
 
 
Para seu horror, o Cavaleiro Verde pega a sua cabeça e diz: "- Nos veremos em um ano e um dia Gawain..."
 
Chegando a época, Gawain não tem outra saída a não ser partir em direção ao seu destino, seja ele qual for
 
 
O cineasta mergulha de cabeça na mitologia em questão, bebendo muito da ancestralidade da Jornada do Herói, de Joseph Campbell*2, mas sem deixar que a identidade da história seja perdida, resultando numa bela reflexão intimista que se afasta das fórmulas de ação e fantasia a que estamos acostumados, apresentando uma análise quase antropológica sobre a ambição humana e como esse aspecto intrínseco ao nosso caráter entra em conflito com o significado de honra e caráter. Lowery supera as expectativas ao dar vida a uma gritante sinestesia de cores, sons e acepções que deixa o público vidrado do começo ao fim – e enxuga duas horas em uma frenética luta do homem contra o homem, numa narrativa contemplativa que deverá irritar aqueles mais afeitos a um tratamento mais aventuresco e frenético...
 
 

A mãe de Gawain (Sarita Choudhury) é uma feiticeira (em algumas narrativas ele é filho de Morgana Le Fay)


Uma abordagem interessante do roteiro é impessoalizar os outros personagens e elementos arturianos de forma a não perdermos o foco em Gawain. Em momento algum, o rei é chamado de ‘Artur’, ou a rainha de ‘Guinevere’, e ninguém se refere à távola redonda como tal e, menos ainda a palavra ‘Excalibur’ é usada para nomear a espada usada pelo monarca, e símbolo de seu direito de governar. E tanto, o rei quanto a rainha, diferente das figuras altivas e fulgurantes da lenda, são pálidas figuras, se parecendo mais com mortos-vivos ou fantasmas, de olheiras profundas e comportamento cansado. Assim vemos Gawain como o único elemento realmente vivo na trama e temos mais facilidade de acompanha-lo em sua jornada, que tem como ponto fundamental a virtude cavalheiresca.
 
 
As locações na Irlanda, como o Castelo de Cahir na província de Munster no Condado de Tipperary, aliado ao bom uso de efeitos visuais, geraram ótimos visuiais

um Carniceiro (Barry Keoghan) e suas irmãs, capturam e roubam Gawain, deixando claro a sua inexperiência
 
 
Gawain segue sua jornada (pois é o que se espera dele), saindo de sua zona de conforto na corte e enfrentando obstáculos ao longo do caminho até alcançar seu destino (o que acreditamos ser a morte). Afinal, à época, enfrentar o que a predestinação aguardava era motivo de cobiça pelos cavaleiros e guerreiros medievais – e fugir dela era passível de desonra e de desmantelamento da reputação. Gawain sabe o que ele deve fazer e é tentado a desistir e voltar para casa em mais de uma ocasião: no meio do caminho, ele é enganado por um Carniceiro (Barry Keoghan de Eternos) e suas irmãs, que roubam as suas roupas, armas e o seu cavalo; auxilia uma alma penada Winifred (Erin Kellyman de Falcão e o Soldado Invernal) à encontrar o seu descanso final; pouco depois, é acompanhado por uma raposa, que, apesar de ajudá-lo em alguns momentos, mostra-se como uma manipuladora criatura que quer convencê-lo de que correr é a melhor solução; quando acolhido por um Lorde (Joel Edgerton de O Rei) tem sua honra testada pelas investidas propositais da Lady (a mesma Alicia Vikander que faz Essel, a prostituta por quem é apaixonado), além de ter atitudes parecidas com as da sua própria mãe. Ao fim, quando finalmente ele se depara com seu antagonista, a narrativa faz uso de um recurso similar ao clássico natalino A Felicidade Não se Compra (1946) *3 de Frank Capra. Gawain se dá conta de como seria a desonra de (mesmo que todos não saibam) de viver uma farsa como futuro Rei, empurrando a vida com a barriga (e na verdade, em desgraça, levando sua casa à ruína, e perdendo a cabeça de qualquer forma) antes de decidir que mais vale morrer honradamente. Uma inspiração que ao final lhe faz toda a diferença, num desfecho ambíguo, que abre interpretações diversas sobre o seu real destino.
 
 
Gawain auxilia uma alma penada Winifred (Erin Kellyman) a ter o seu repouso final

Durante um tempo uma raposa serve de companhia e guia


Os valores de produção criam um visual estonteante, de aspecto onírico e de tons frios, opondo seu protagonista a um pano de fundo ambíguo, igualmente sublime e aterrorizante, mergulhado em escuridão (reforçado pelo céu, sempre nebuloso) em que a lógica da imagem está a serviço da realidade embaralhada entre as fábulas e os mitos. 
 

Num momento onírico ele cruza com gigantes (entre eles, a brasileira Bel Friósi)


O desenho de produção de Jade Healy (O Sacrifício do Cervo Sagrado) Cria ambientes que traçam muito bem a coexistência entre essas camadas sociais (o rasteiro e o nobre) como o trajeto inicial do herói do prostíbulo até a respeitada residência da família, e mais tarde à corte do rei, e junto com a direção de arte de Louise Mathews (O Ritmo da Vingança) e Christine McDonagh (Into the Badlands) e a decoração de sets de Jenny Oman (Patriota) insere no detalhamento desses escuros e misteriosos cenários, cheios de obstáculos que testam a dignidade do herói durante o cumprimento da missão, os elementos que os ambientam no imaginário do Ciclo Arturiano, à despeito de sua atmosfera ser destoante das vistas nas abordagens mais reverentes dessa mesma tradição...
 
 
Gawain é acolhido por um Lorde (Joel Edgerton) que o vê em grande conta
Gawain é tentado pela Lady (Alicia Vikander) que deixa claro seu interesse nele

 
 
Os figurinos de Malgosia Turzanska (A Luz No Fim Do Mundo) fundem a estilização na caracterização de personagem, com materiais rústicos em sua maioria, excetuando os trajes do Rei, da Rainha (de tons sóbrios) e do Lorde e da Lady, que (tal qual os trajes dos camponeses) são mais realistas, dentro dos parâmetros da proposta do filme.
 
 
Tanto Essel quanto a Lady (Alicia Vikander) parecem faces de uma mesma moeda

Após perambular, Gawain finalmente encontra a "Catedral Verde" e vai encarar seu destino

 
 
A fotografia de Andrew Droz Palermo (Sombras da Vida) com uma palheta de cores fria e tons acinzentados, usa um filtro esverdeado e melancólico que acompanha os personagens, nos mostrando o visual de um mundo plenamente mergulhado na chamada Idade das Trevas*4, em vez de retratar os espaços com uma iluminação capaz de revelar cada detalhe, além de utilizar lentes para distorcer cenários, e quebrar o eixo visual das imagens, ou usar de planos oblíquos, enfatizando essa dubiedade entre o mítico, o real, de limites borrados, sublinhados pela música de Daniel Hart (A Última Carta de Amor) que dá atmosfera de maneira lírica e melancólica.
 
 
Em certa altura Gawain vislumbra um dos rumos que sua vida tomará se for numa direção, se tornando o escolhido do rei...
 
 
Os efeitos visuais da Weta Digital, Outpost FFX, Lucky Post, Maere Studios, supervisionados por Nicholas Ashe Bateman (Breaking Bread) e Kev Cahill (Han Solo: Uma História Star Wars) chamam a atenção pela construção visual sofisticada, com toques de poema épico, fazendo a indefinição bem calculada entre a realidade, a fábula e as possíveis alucinações, com na bela cena em que Gawain enxerga gigantes se deslocando à frente, indicando o quão misteriosa é essa terra forjada por narrativas de heroísmo (ou apenas o efeito colateral da ingestão de cogumelos que o fazem “enxergar” a mão deformada), além da figura do Cavaleiro Verde, que é uma figura imponente.
 

... e então Gawain herda o reino sucedendo o Rei e a Rainha

Ao final Gawain vislumbra que "de que adianta um homem ganhar o mundo se perder..."

 
A Lenda do Cavaleiro Verde apresenta um conjunto harmonioso, desde a atuação de Patel como o protagonista, passando pelas soluções visuais irretocáveis de seu time criativo, onde a fotografia e a montagem, ofuscam os mínimos deslizes da obra (como uma extensão um pouco maior de suas cenas que às vezes gera um certo cansaço) e convidam o espectador a se envolver em níveis intimistas de seus personagens, que embora esteja fadada a ser esnobada nas temporadas de premiações, deverá ter com o tempo seu real valor reconhecido, pelas camadas que se escondem sob a superfície de suas imagens, capazes de nos deixar pensativos por um bom tempo, numa tarde ou noite chuvosa...
 
 
A saída será algo inesperado

 

 
 

Notas:



*1: Nos romances de cavalaria do ciclo arturiano, Gawain é um dos membros da Távola e, mais que isso, um dos companheiros e guerreiros mais próximos do Rei. É claro que, com o passar do tempo, as origens de sua história sofreram alterações, tornando o trabalho dos especialistas um pouco mais difícil do que o normal no tocante historiográfico. De qualquer maneira, costuma-se associar Gawain, também, a Morgause, irmã de Arthur, e a seus irmãos mais novos, Agravain, Gaheris, Gareth e o infame Mordred (uma das construções mais complexas e controversas deste tempo, agindo em egolatria para conquistar o trono da Bretanha).
 

*2: Joseph John Campbell (1904 - 1987) foi um mitologista, escritor, conferencista e professor universitário norte- americano, famoso por seus estudos de mitologia, e religião comparada e autor da obra O Herói de Mil Faces, publicado originalmente em 1949. 
 
 
 

*3: Neste clássico, o protagonista (James Stewart) num momento de desespero, prestes a se suicidar, ganha magicamente a possibilidade de avistar como seriam nefastos os desdobramentos da vida e dos habitantes de sua comunidade, se ele não tivesse nascido, e desse modo, acaba recebendo os subsídios para fazer “a escolha certa”.
 
 

*4: A “Idade das Trevas” (Baixa Idade Média, indo dos séculos V a X), mas designação da Europa entre o século IV e o XV que aqui é retomada, e da mesma forma, embora não façam referência direta ao Código de Cavalaria, um código informal de conduta desenvolvido entre os anos de 1170 e 1220.
 




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