Cósmico e sereno
por Alexandre César
Chloé Zhao se aventura com sucesso no UCM
Podemos considerar "Os Eternos" como "O Velho Testamento do Universo Marvel" |
Criado em 1976 por Jack Kirby, em sua segunda fase na Marvel Comics*1, e inspirado na premissa do livro “Eram os Deuses Astronautas?” de Erich von Däniken*2, Os Eternos, que originalmente apresentava o conflito de duas raças: Os poderosos Eternos e os brutais Deviantes, criações de uma raça de gigantes alienígenas inescrutáveis, os Celestiais, que também criaram os humanos, além das duas raças beligerantes. Esses seres, ao longo dos séculos, foram tomados pelos humanos primitivos como “deuses” (os Celestiais) e “demônios” (os Deviantes) e, manteriam essa guerra secreta, cuja intervenção nos bastidores da humanidade primordial (evitando interferir na sua evolução natural), acabaria por se tornar um elemento central da continuidade do Universo Marvel.
Dirigido por Chloé Zhao (Nomadland) Eternos (2021) se propõe a, dentro da “fórmula Marvel” (ou adaptando esta à suas necessidades narrativas), contar esta fábula de indivíduos únicos, que vivem no meio dos humanos comuns, se relacionando, mas nunca podendo se apegar de fato a eles, por conta de seu principal diferencial: A inevitabilidade do tempo, que consome à todos nós, mas não a eles, coisa marcada pela inclusão na abertura de “Time” do Pink Floyd (do icônico álbum “The Dark Side of the Moon”).
Amor sem fim... ?: Ikaris (Richard Madden) e Sersi (Gemma Chan) tem um "rolo" de mlhares de anos, mas ele "deu um tempo" há alguns séculos e voltou quando ela resolveu fazer "a fila andar" |
O roteiro, escrito por Zhao, Patrick Burleigh (Pedro Coelho 2: O Fugitivo) , Ryan Firpo (Luckboxes) e Kaz Firpo (The Vigilante) a partir dos personagens criados por Jack Kirby (e posteriormente retrabalhados por Neil Gaiman e John Romita Jr.) mudando alguns elementos da história original dos quadrinhos (que poderiam ser considerados por alguns de cunho eugenista*3) e nos brinda com 10 superseres (e alguns mortais) como personagens principais (uns mais desenvolvidos do que outros) que já não se reúnem há quase 500 anos, tendo um ou outro se relacionando ocasionalmente, e que tem de se reunir novamente por conta da volta dos Deviantes, que eles julgavam extintos há séculos, e da eminência de um evento cataclísmico que se avizinha.
Sprite (Lia McHugh) há mais de 7mil anos que é "a caçula da família", pois não cresce ou envelhece, o que a impede de ser a mulher que é por dentro |
Apesar de citações aos eventos de Vingadores: Guerra Infinita e Vingadores: Ultimato, e à outros personagens é dada uma desculpa razoável para o fato desses indivíduos não terem interferido em episódios mais dramáticos da história humana.
No filme, intercalando o momento atual, com flashbacks que vão mostrando momentos-chaves da trajetória dos Eternos na Terra, conhecemos Sersi (Gemma Chan de Capitã Marvel aqui despontando como protagonista) tem a habilidade de manipular matéria não senciente e, ao contrário de alguns dos Eternos, tem um verdadeiro amor e respeito pela humanidade, sendo inclusive viciada em redes sociais. Ela teve um relacionamento de milhares de anos com Ikaris (Richard Madden de 1917), um dos Eternos mais poderosos, que tem a habilidade de voar e disparar raios de luz de seus olhos. Eles se separaram há séculos mas agora ele retorna devido à volta dos Deviantes, ficando um “climão” estranho, pois Sersi, agora está se relacionando com o humano Dane Whitman (Kit Harrington de Game of Thrones em participação menor do que o esperado). Temos indicações do futuro do personagem no UCM*4.
Juntos com Sprite (Lia McHugh de O Chalé) que pode parecer uma pré-adolescente, mas como os outros heróis, ela na verdade tem milhares de anos (tendo servido de inspiração para Peter Pan); Sersi e Ikaris partem para reunir o grupo disperso, que inclui Ajak (Salma Hayek de Frida) a líder sábia e espiritual dos Eternos, que também tem a habilidade de curar a si e aos outros; Kingo (Kumail Nanjiani de Silicon Valley) que é movido pela energia cósmica e, ao contrário da maioria dos Eternos que permaneceram escondidos, ele ganha a vida como uma estrela de Bollywood, sendo o alívio cômico do filme junto com Karun (Harish Patel de Maratona do Amor) seu mordomo que os acompanha fazendo um vlog. Logo eles encontram Gilgamesh (Ma Dong-seok de Invasão Zumbi) o extremamente poderoso e mais forte guerreiro dos Eternos, que protege aos seus com um caráter sólido e confiável, que está cuidando de Thena (a diva Angelina Jolie de Malévola: Dona do Mal) uma poderosa guerreira e, por isso, uma das mais importantes dos Eternos, que pode materializar armas do nada, tendo inspirado a deusa Athena, que está com um distúrbio de personalidade, precisando de cuidados.
Finalizando o grupo, eles encontram Phastos (Brian Tyree Henry de As Viúvas) um inventor brilhante para a criação de armas e tecnologia; pai dedicado e primeiro herói gay do UCM, casado com Bem (Haaz Sleiman de Breaking Fast) com quem cria o garoto Jack (Esai Daniel Cross); Makkari (Lauren Ridloff de O Som do Silêncio) que é a primeira heroína surda (como a atriz) no UCM, que é uma personagem super-rápida e, Druig (Barry Keoghan de Dunkirk) inicialmente um Eterno indiferente e um pouco solitário, com a habilidade de manipular as mentes de outras pessoas, sendo aqui um personagem bem distinto de sua versão dos quadrinhos (que é bem sinistra e até vilanesca).
Algo que salta aos olhos é seu elenco diverso e representativo, com representantes asiáticos, negros e latinos, com mudanças de gênero e a inclusão de elementos, outrora considerados “deficientes”*5; além de divertidas menções a heróis da DC Comics, o que é uma coisa coerente, pois se um dos pontos do argumento do filme são as várias mitologias humanas, é válido que exista aqui a mitologia dos quadrinhos, e que no Universo Cinematográfico Marvel a “distinta concorrência” seja apenas uma editora de quadrinhos, pois alguns dos Eternos lembram arquétipos de membros da Liga da Justiça, pois Ikaris seria o “Superman” do grupo, Thena, a guerreira feroz, seria a “Mulher-Maravilha”, e a veloz Makkari, seria a “Flash” da equipe e por aí vai... tendo como ponto chave os figurinos de Sammy Sheldon (Jurassic World: Reino Ameaçado) que reimagina o look extravagante de Jack Kirby, tendo cada personagem uma palheta de cores individual, que os define de forma a não se poder confundir um com outro.
A música de Ramin Djawadi (Game of Thrones) sublinha de forma sutil a ação e a subjetividade de seus personagens, seus anseios e pontos de virada eficientemente, ainda que não seja inesquecível, intercalando hits como “Friends” do BTS e “Juice” na voz de Lizzo, sendo bem associada à fotografia de Bem Davis (Capitã Marvel) que capta a beleza e a atmosfera das locações nas Ilhas Canárias, com muitas cenas de por de sol (assinatura de Zhao), dialogando com a edição de Dylan Tichenor (Sangue Negro) e Craig Wood (Homem-Formiga e a Vespa) que dá o tempo necessário para que os personagens se construam e possamos nos relacionar com eles, seja nos momentos mais contemplativos, que se intercalam com os momentos de ação, com os cortes necessários para dinamizar a narrativa mas, sem apelar em picotar a cena.
O ponto de virada vem da real natureza dos experimentos dos Celestiais (que revelam dimensões lovecraftianas), quando alianças se desfazem e por mágoas individuais, rachando o grupo, mas graças à direção de atores e seu elenco afiado, acabamos tendo antagonistas, mas não realmente vilões, nos permitindo entender os seus pontos de vista e entender as suas escolhas.
Agora um ponto falho do filme é o pouco desenvolvimento dos Deviantes (um ponto crônico na Marvel, desenvolvendo pouco seus vilões) aqui basicamente predadores irracionais, cujo único que revela algum raciocínio seria Kro, mas quando este começa a se tornar de fato um personagem, é removido da trama, inclusive quando se esboça o arco que compartilha nos quadrinhos com Thena*6.
Ciclópicos: Os Celestiais são imponentes, poderiam ter mais tempo de cena |
O desenho de produção de Eve Stewart (A Garota Dinamarquesa) e Clint Wallace (Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis), junto com a direção de arte de Matthew Gray (Alexandria), Patrick Harris (Artemis Fowl: O Mundo Secreto), Oliver Hodge (Missão Impossível – Efeito Fallout), Aja Kai Rowley (Westworld), Jonathan Marin Socas (Fundação); Tom Weaving (Han Solo: Uma História Star Wars), Susannah Brough (Millennium: A Garota da Teia de Aranha) e Todd Ellis (The Witcher), aliada à decoração de sets de Pancho Chamorro (Postais Mortíferos), Michael Standish (A Garota Dinamarquesa) e Megan Jones (Cats) recriam ambientes históricos como o Portal de Ishtar na Babilônia, ou as ruínas de Hiroshima, graças à colaboração dos efeitos visuais de Industrial Light & Magic (ILM),Luma Pictures, Monsters Aliens Robots Zombies, RISE Visual Effects Studios, Scanline VFX, Stereo D, Weta Digital, supervisionados por Stephane Ceretti (Vingadores: Ultimato), Evrim Akyilmaz (Viúva Negra), Daniele Bigi (Jogador N°1), Mathieu Vig (Gravidade), que usam soluções gráficas elegantes para representar as manifestações dos poderes dos Eternos, entre eles, a Unimente, quando eles se tornam como que um único indivíduo, além da impactante presença dos Celestiais, cujo tamanho colossal reflete a noção de grandiosidade opressiva do universo face a insignificância humana.
Decepção: Os Deviantes são o ponto fraco do filme, inclusive quando se esboça o arco entre Kro e Thena, o personagem sai de cena |
Ao final, Eternos se revela um filme desigual, mas com personalidade, que deverá dividir o público entre aqueles que preferiam algo mais próximo da “Fórmula Marvel” e os que abraçaram a tentativa de se ampliar este paradigma. Embora não tenha totalmente alcançado o seu potencial, ainda sim, se mostra bem acima da média do senso comum, ampliando as possibilidades do que seria “contar uma história de super-heróis”.
Obs: O filme apresenta duas cenas pós-créditos, ampliando o lado cósmico do Universo Cinematográfico Marvel.
Um elenco vasto, diverso e inclusivo, que dividirá opiniões |
Notas:
*1: Jacob Kurtzberg, mais conhecido como Jack Kirby, (28/ 08/ 1917 – 06/ 02/ 1994) foi um dos maiores criadores, junto com Stan Lee, do Universo Marvel , saindo em 1970, desiludido por não ter o reconhecimento adequado de seu trabalho (profissional e financeiramente) para trabalhar para a rival DC Comics. Após vários dissabores, retornou em 1975 de volta à Marvel, escrevendo e desenhando a série mensal Capitão América, bem como o one-shot Captain America's Bicentennial Battle em formato treasury. Ele criou a série Os Eternos; uma adaptação e expansão do filme 2001: Uma Odisséia no Espaço, que na edição 8, trouxe o personagem Homem-Máquina, um robô humanoide dotado de consciência, bem como uma tentativa fra-cassada de fazer o mesmo para a série de televisão clássica The Prisoner. Ele escreveu e desenhou Pantera Negra e desenhou numerosas capas através da linha e em abril de 1978, lançou Devil Dinosaur, a série narra as aventuras em tempos pré-históricos de um jovem antropóide montando um tiranossauro vermelho com quem fez amizade. A última colaboração de quadrinhos de Kirby com Stan Lee, The Silver Surfer: The Ultimate Cosmic Experience, foi publicada em 1978 como parte da série Marvel Fireside Books e é conside-rada a primeira Graphic Novel da Marvel.
*2: “Eram os Deuses Astronautas?” (Erinnerungen an die Zukunft) é um livro escrito em 1968 pelo suíço Erich von Däniken, em que o autor teoriza a possibilidade das antigas civilizações terrestres serem resultados de alienígenas (ou astronautas) que para as épocas relatadas teriam se deslocado, apresentando como provas ligações entre as colossais pirâmides egípcias e incas, as quilométricas linhas de Nazca, os misteriosos moais da Ilha de Páscoa, entre outros grandes mistérios arquitetônicos. Ele também cria uma teoria de cruzamentos entre os "extraterrestres" e espécies primatas, gerando a espécie humana, sendo considerados divindades pelos antigos povos (daí vem a explicação do título do livro). Naturalmente, levando o pensamento há 1000 ou 2000 anos atrás, é impossível definir um objeto voador com 30 metros de comprimento - que hoje chamamos de avião ou ônibus espacial - portanto correlações próximas à realidade da época foram feitas: "Deus", "Anúbis", "Itzmná" ou "Salvador".
Fonte: Wikipédia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Eram_os_Deuses_Astronautas%3F)
Capa de "Eternals" nº 1 de 1976 |
*3: Nos quadrinhos os Eternos têm um número fixo pois não são capazes de se reproduzir, ao contrário dos Deviantes, que certa vez se tornaram numericamente hegemônicos, sendo exterminados pelos Celestiais, que quase os extinguiram. Na versão cinematográfica, os humanos não são produto das experiências dos Celestiais, e os Eternos são alienígenas imortais de um planeta chamado Olympia – que foram solicitados pelos Celestiais para livrar a Terra dos Deviantes, que aqui são alienígenas parasitas que vão de planeta em planeta e, conforme matam os predadores, tomando as suas características e exterminando a vida inteligente destes mundos.
*4: Nas HQs, Dane Whitman é o herói conhecido como Cavaleiro Negro, sendo sobrinho do vilão Nathan Garrett, o Cavaleiro Negro original. Dane foi chamado por seu tio quando ele foi mortalmente ferido na sequência de uma batalha com o Homem de Ferro. Com suas últimas palavras, o tio confessou a sua vida de crimes, e Dane na tentativa de restaurar a honra de seu legado tornou-se o Cavaleiro Negro, empunhando a Espada de Ébano de seus ancestrais. Ao longo de sua trajetória, integrou entre outras equipes os Vingadores, os Defensores e Excalibur.
*5: Ajak, na história original é um personagem masculino, aqui é uma mulher (Salma Hayek), sendo a líder do grupo; Makkari é também no original, um homem branco, sendo vivido pela atriz surda-muda Lauren Ridloff.e Kingo, originalmente japonês, aqui é indiano (Kumail Nanjiani),
Kro e Thena trocaram tapas e beijos, ao longo dos séculos |
*6: Nas HQs, nascida na cidade grega Olympia, Thena recebeu o nome de Azura. Contudo, seu pai, Zuras, exigiu por decreto real que seu nome fosse trocado para Thena. Dessa forma, ele se assemelharia ao nome da filha de Zeus, Athena, sendo esta medida tomada como forma de selar o acordo entre os deuses olimpianos com os Eternos, que passaram a atuar como os deuses representantes na Terra e Thena se tornou, então, a representante pessoal de Athena (deusa da sabedoria na mitologia grega) e a líder dos Eternos na Terra, e embora criada como uma estudiosa e uma guerreira, sua vida tomaria um novo rumo, após conhecer Kro, o líder dos Deviantes (e um dos primeiros a ser criados pelos celestiais). Kro é imortal com a capacidade de alterar sua forma. Considerado um vilão, ele chegou a atuar como o Diabo, tentando influenciar e apavorar humanos. Mas a sua sede por maldades, começou a mudar ao conhecer Thena, pois embora tenha tido a oportunidade de matá-la, coisa que ele não fêz, e acabou se aproximando da guerreira Eterna, chegando a exercer controle mental sobre ela. Posteriormente, a guerreira se une novamente ao Eternos para combater o Deviante. Ao longo dos milênios, os dois tiveram um relacionamento (que Kro escondeu dos outros Deviantes) cheio de idas e vindas, resultando durante a Guerra do Vietnam na gravidez da guerreira, que gerou dois filhos (Donald e Débora) e para proteger seus filhos da guerra entre Eternos e Deviantes, ela usou seus poderes para implantar os próprios embriões em uma mulher infértil, que os criou sem saber de sua origem. Kro e Thena em vários momentos se uniram para proteger seus filhos.
- "Esyávamos aqui desde o início, e estaremos provavelmente também no fim. Mas enquanto o fim não chega, aproveitemos mais esse lindo dia de sol..." |
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