Vídeogame dos infernos
por Alexandre César
(Originalmente postado em 21/ 01/ 2020)
França, 6 de abril de 1917 (data em que os Estados Unidos declararam
guerra a Alemanha e seus aliados) dois soldados de um destacamento do
exército britânico são mandados em uma missão secreta urgente através da
“terra de ninguém”, trecho entre as trincheiras dos exércitos antagonistas, para entregar ordens para o coronel de um destacamento (o Devons) cancelando o ataque que pretendem executar.
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Os soldados Blake (Dean-Charles Chapman) e Schofield (George MacKay) são enviados numa misão além das linhas inimigas com o perigo à cada poça de lama ou cerca de arame farpado, e além...
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A inteligência descobriu que os alemães fizeram uma falsa retirada para
induzir os ingleses a avançarem no território inimigo e caírem numa
armadilha mortal, cabendo aos cabos Blake (Dean-Charles Chapman de Game of Thrones) e Schofield (George MacKay de The Outcast)
correr contra o relógio e chegar a temo de impedir que se inicie o
ataque fadado ao fracasso e assim salvar 1600 homens de perderem as suas
vidas inutilmente.
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Primeira Fase: O Gen.Erinmore (Colin Firth) instrui os cabos à respeito da missão, aconselhando-os a não perder tempo...
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Dirigido por Sam Mendes (Beleza Americana) 1917 (2020) retrata uma das fases mais cruéis da Primeira Guerra Mundial, a fase da “guerra de trincheiras” em
que forças acantonadas ficavam trocando tiros e bombas tentando tirar
um da posição do outro e permanecendo na maioria das vezes por dias,
semanas, meses ou mais tempo, pagando por cada avanço ou recuo no
território inimigo um preço absurdo de vidas dos dois lados, seja por
tiros, gás mostarda, lutas de baionetas, bombardeios aéreos ou
enfrentando tanques.
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O roteiro de Mendes e de Krysty Wilson-Calms (Penny Dreadful) inspirado nas experiências de seu avô, “A Autobiografia de Alfred H. Mendes 1897 - 1991” que lutou no The Kings Royal Rifle Corps durante a Primeira Guerra Mundial, o filme é um notável exercício narrativo em que a câmera vai acompanhando o tour dos soldados por entre a “terra de ninguém”, em meio à lama, arames farpados ecarniça humana e animal repleta de moscas, passando por trincheiras
alemãs abandonadas, coalhadas de cartuchos de canhão e destroços de
tanques, ruínas de cidades, fazendas florestas, em certo momento lembra a
jornada surreal de Apocalipse Now
(1979) de Francis Ford Coppola, além de, dialogando com as plateias
atuais, ter os seus arcos narrativos muito semelhantes aos das fases de
um videogame de sobrevivência, tendo a Primeira Guerra Mundial como
cenário.
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Os alemães sabem construir instalações, e armadilhas... |
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Quando menos se espera, a morte pode chegar da terra, ou do ar...
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O filme conta com nomes conhecidos nas participações especiais que
remetem justamente a essas mudanças de fase. O General Erinmore (Colin
Firth de Kursk - A Última Missão), o Tenente Leslie (Andrew Scott de Sherlock), o Capitão Smith (Mark Strong de Kingsman - O Círculo Dourado) o Sargento Sanders (Daniel Mays de Rogue One: Uma História Star Wars) e Coronel Mackenzie (Benedict Cumberbatch de Doutor Estranho)
que tem interpretações corretas, mas nada extraordinárias, cumprindo o
seu papel de “mestres de fase”, dando cada um as instruções sobre o que
se irá enfrentar naquele cenário, descrições e até conselho sobre como
lidar com os outros indivíduos que surgirão no trajeto, cabendo o
encerramento da parte emocional da jornada ao encontro final com o
Tenente Blake (Richard Madden de Game of Thones) que fecha o arco da “jornada do herói” do filme, que não deixa de ser uma alegoria ao monomito de Joseph Campbel.
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Fase Três: O Cap. Smith (Mark Strong) aconselha a falar ao coronel com testemunhas
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A dupla de pouco conhecidos protagonistas seguram o filme com
interpretações sólidas, contidas e ao mesmo tempo viscerais, revelando
em suas feições juvenis, toda a tragédia de uma geração inteira
sacrificada num conflito do qual realmente não compreendem e caso
retornem para as suas casas, jamais deixarão de carregá-lo em suas
lembranças, traumas e pesadelos, o que numa cena significativa, vemos um
pelotão descansando num bosque ouvindo um deles cantando um hino
religioso e de forma idílica embalada pela inspirada trilha de Thomas
Newman (Wall-E), a câmera vai passando por todos os soldados rosto por rosto, relembrando uma frase de Kurt Vonnegut em Matadouro n°5 quando um personagem diz que “- A guerra é lutada por bebês...” pois
enquanto os soldados mais velhos estão nos quartés-generais tomando as
decisões estratégicas, são os jovens, meninos de 16 a 20 anos em sua
grande maioria que dão as suas vidas e sangue, como a cena em que um
soldado sangra até a morte, empalidecendo a sua face até ficar num tom
quase branco como papel (uma realidade médica que muitos filmes omitem
quando alguém em cena sangra copiosamente).
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E a jornada prossegue, ponte, rio, cachoeira em diante...
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A solidão e o medo são companhias constantes
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A bela fotografia de Roger Deakins (Blade Runner 2049) em parceria com a edição de Lee Smith (Dunkirk) e com o auxílio dos efeitos visuais da Moving Picture Company (MPC), Proof exibe cortes ocultos, técnica pela primeira vez vista em Festim Diabólico (1948)
de Alfred Hitchcock, e como neste filme, Mendes move a câmera diante de
um objeto durante uma cena, como uma árvore ou penetra numa zona escura
de um prédio onde a câmera pode parar e recomeçar a filmar saindo do
local sem percebermos a edição, graças à fusão imperceptível das
passagens, indo de uma palheta luminosa de tons solares diurna a tons
avermelhados altamente contrastados numa cena noturna com uma cidade em
chamas (a sequência do filme mais parecida com um game) passando de uma steady-cam para uma câmera sobre trilhos, ou uma dolly em uso panorâmico ou a popular “câmera na mão”,
passando de uma a outra e mudando de lentes e de maneira “invisível” e
assim a experiência é a de um colossal plano-sequência ininterrupto.
Haja fôlego!!!
Os valores desta produção de 90 milhões de dólares se destaca o desenho de produção de Dennis Gassner (Blade Runner 2049) e a direção de arte de Simon Elsley (Aniquilação) Elaine Kusmishko, Nial Moroney (O Retorno de Mary Popins) Rod McLean (A Invenção de Hugo Cabret) e Stephen Swain (Rogue One: Uma História Star Wars) constroem a paisagem desolada e lamacenta da “Terra de Ninguém” e
as trincheiras inglesas, super improvisadas, e as alemãs, construídas
com peças pré-fabricadas de concreto muito mais sofisticadas (com
direito inclusive à ratos muito maiores...) atestando a diferença
tecnológica dos dois países, aliado à decoração de sets de Lee Sandales (Cavalo de Guerra) e os figurinos de David Crossman (Rogue One: Uma História Star Wars) e Jacqueline Durran (Anna Karenina) situando cronologicamente, os personagens em suas fardas gastas e sujas que são usadas dias a fio.
Ao final 1917 segue a tradição de clássicos como Nada De Novo No Front (1930) de Lewis Milestone,e a premissa básica de Gallipoli (1981) de Peter Weir, ou mais recentemente as séries Band of Brothers ou The Pacific,
onde vemos a força dos laços de camaradagem forjados em situações
limite, onde em meio à fome, as privações e o medo, os sobreviventes se
apegam, independente de terem ou não laços de sangue, como no caso da
moça francesa que cuida de uma neném que não é dela, mas como a
encontrou abandonada no meio das ruínas, tomou para si a guarda da
criança, e concluída a missão, após o cumprimento do dever salvando os
seus companheiros da morte certa, tudo se resume à uma rotina de ordens e
contra ordens que poderão ou não, ser a diferença entre a vida e a
morte de muitos.
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-"Cumpriu a sua missão soldado! Agora vá para o inferno pois amanhã essa mesma ordem de retirada poderá ser revertida para um avanço ou outra decisão qualquer mantendo o combate até o fim de todos.."
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