Era para ser apenas um “bico”...
por Ronald Lima
(Originalmente postado em 16/ 02/ 2019)
Clint Eastwood e o ocaso da mítica América Imperial
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Clint Eastwood: A solidão das estradas e os fantasmas de um homem por suas escolhas
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Protagonizado e dirigido por Clint Eastwood (que também produziu o filme, através de sua produtora, a Malpaso Productions) A Mula (2019) marca o seu retorno como ator após Curvas da Vida (2012) e seguindo-se ao irregular 15:17 - Trem para Paris
(2018) traz o eterno “durão” (e mentor de toda uma geração de “durões”
do celulóide) enfrentando com galhardia e pitadas de bom humor, o ocaso,
a solidão, a fragilidade e a reflexão que o envelhecimento nos traz
sobre nossas escolhas na vida.
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"-Despejo?! - Catso, estou F=#@do!!!"
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Ícone indiscutível da masculinidade norte-americana pós-segunda
guerra, tendo sido nas décadas de 1960,70 e 80 o herói de ação yankee cru,
raiz, cowboy e policial na melhor tradição de John Wayne e Humphrey
Bogart, mas mantendo raízes no mundo real, aliado à uma grande
capacidade de reflexão quanto à seu lugar no mundo, o que lhe permitiu
fazer a transição para um grande diretor respeitado e disputado à tapa
pelos estúdios, aliando bilheteria e valor autoral. Sua filmografia com
altos e baixos reflete sua caminhada de vida, e aqui nesse que deve ser o
seu último trabalho como ator e diretor temos uma performance
que ao seu jeito resume as várias facetas de todos os personagens que
interpretou ao longo de sua carreira de mais de seis décadas.
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"- Tudo OK 'meu tio'???" "- N-Não seu guarda! Tá favorável!" |
Logo no início, vemos através de uma bela montagem o perfil de Earl
Stone (Clint Eastwood) homem de cerca de 90 anos, e aquele a quem você
recorre quando está mal, sendo um indivíduo com um enorme coração e aos
amigos, uma pessoa mão aberta, mas em contraste, para a família ele
mesmo é um homem distante, frio e que prioriza o trabalho acima de tudo
(mas na verdade o que ele queria era ser bem visto pelo núcleo social), o
que o afasta gradativamente da sua esposa Mary (a ótima Dianne Wiest) e
filha Iris (Alison Eastwood, filha do cineasta na vida real.) revelando
que ele era o típico marido e pai de gerações passadas: Ausente, mas
que exigia respeito. Posteriormente, ele vê de uma hora para outra seu
tão lucrativo negócio de flores ser abalado pelo advento das vendas online,
e ir à falência. Assim, de um jardim florido e dono de muitas cores,
acontece uma transição impactante (graças ao diretor de fotografia Yves
Bélanger) mostrando a passagem de mais de uma década, quando o
encontramos num cenário devastado, onde a sua aparência “surrada” no
tempo presente reflete seu declínio financeiro e a sua obsessão pelo
trabalho, que terminou por torná-lo um homem solitário.
Contudo, as ações de Earl passam à atrair a atenção do agente Colin Bates (Bradley Cooper de Sniper Americano de 2014, também dirigido por Eastwood), e todo órgão de combate às drogas (DEA) cujo chefe (Laurence Fishburne da trilogia Matrix) é o agente responsável pelo caso , mas o seu personagem é pouco desenvolvido, acontecendo o mesmo com o personagem do agente Trevino (Michael Peña) o seu parceiro de investigação. A parte da investigação é bastante clichê ao mostrar o procedimento investigativo, acrescentando pouco ao filme. Alguém aqui ou qualquer um de vocês leitores poderiam facilmente fazer o papel de Laurence Fishburne ou de qualquer policial da trama.... Uma sequência policial onde os personagens de Bradley Cooper e Michael Peña enquadram um motorista “suspeito” é bem engraçada, destaque para o iniciante ator Javier Vazquez Jr. que interpreta o motorista detido. Pois é... A questão é que ninguém mesmo suspeita do bom e velho Earl apesar de estar sendo procurado. Alguém conhece a clássica historinha da “Velhinha Contrabandista” de Stanislaw Ponte Preta? Vale a conferir a comparação...
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Earl e a ex-esposa Mary (Daiane Wiest). Tentativa de resgatar uma união perdida
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Esta
dualidade não deixa de refletir um exorcismo dos próprios fantasmas do
cineasta, e de muitas pessoas dedicadas a um ofício que amam, mas que se
fecham em si mesmas, muitas vezes por uma vaidade camuflada em
dedicação. Isolado de todos que ama e sem poder focar no que realmente
curte fazer, conta apenas com a confiança de Ginny, sua única neta
(Taissa Farmiga), o idoso encontra-se num beco sem saída, cedendo às
tentações do caminho mais fácil,
quando o abordam para trabalhar como motorista, coisa que ele domina,
pois rodou e conhece (quase) todos os estados sem nunca receber uma
multa sequer. Earl, de empreendedor falido, se torna a mula
ideal para um cartel de drogas mexicano, por ser um típico (e
insuspeito) velhinho americano simpático viajando com sua caminhonete
pelas estradas. Mais americano que isso, só comercial de cigarros Marlboro... E vai perambulando por uma América cujos vestígios de uma época em que era de fato a “Nação Líder” estão
às moscas, abandonadas, porque ninguém mais se importa de cultivar esta
memória, deteriorando-se. E essa América perdida é a estrada de Earl.
São estradas secundárias escolhidas propositalmente pelo personagem onde
aqui e ali surge um local pitoresco mas já sem atrativo nenhum para as
novas gerações. Com certeza essa América corporativa, impessoal, que
agora joga fora pessoas e que não fez valer a luta da geração de Clint
Eastwood.
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"Muito colorido" não??? |
Embora
com um estranhamento inicial, o nonagenário vai levando (embalada pela
música de Arturo Sandoval, que incorpora temas de cantores folk como
Willie Nelson e outros) o aprendizado da sua vida criminosa sem nenhum
peso de consciência, inclusive quando sem motivo algum fica sob suspeita
por Julio (Ignacio Serricchio) um “funcionário” do cartel. Assim Earl
segue “se encaixando”,
revelando um grande jogo de cintura, ao mostrar que além de um florista
e bom motorista é um veterano da Guerra da Coreia que sabe encarar o
perigo quando o caldo engrossa
sem sentir-se intimidado, mostrando a cada situação difícil ser ainda o
eterno durão do cinema, proferindo muitas de suas tiradas impagáveis,
seja ao olhar o cano de uma arma, seja ao alfinetar o politicamente correto
ou ainda na aceitação a um novo mundo que descobre (até mesmo na sua
dificuldade com o mundo digital, ele dá seu jeito de superá-la) e assim,
sem perguntas e apenas cumprindo o que lhe foi incumbido,“El Tatá” (como passa a ser conhecido) ganha respeito de Laton (Andy Garcia de O Poderoso Chefão 3 de 1990 de Francis Ford Coppola), o chefe do cartel e seus asseclas (virando um “tiozão” destes),
principalmente com a turma de seu contato inicial, e aí prospera e vai
recuperando o seu lugar no seio da família. Duas faces de um homem
singular, que faz da contravenção uma forma de dizer ao mundo que não se
conforma docilmente com a parte que lhe é dada neste latifúndio,
lembrando sutilmente (neste aspecto) o personagem de Brian Cranston em Breaking Bad.
Contudo, as ações de Earl passam à atrair a atenção do agente Colin Bates (Bradley Cooper de Sniper Americano de 2014, também dirigido por Eastwood), e todo órgão de combate às drogas (DEA) cujo chefe (Laurence Fishburne da trilogia Matrix) é o agente responsável pelo caso , mas o seu personagem é pouco desenvolvido, acontecendo o mesmo com o personagem do agente Trevino (Michael Peña) o seu parceiro de investigação. A parte da investigação é bastante clichê ao mostrar o procedimento investigativo, acrescentando pouco ao filme. Alguém aqui ou qualquer um de vocês leitores poderiam facilmente fazer o papel de Laurence Fishburne ou de qualquer policial da trama.... Uma sequência policial onde os personagens de Bradley Cooper e Michael Peña enquadram um motorista “suspeito” é bem engraçada, destaque para o iniciante ator Javier Vazquez Jr. que interpreta o motorista detido. Pois é... A questão é que ninguém mesmo suspeita do bom e velho Earl apesar de estar sendo procurado. Alguém conhece a clássica historinha da “Velhinha Contrabandista” de Stanislaw Ponte Preta? Vale a conferir a comparação...
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Quando a coisa fica tensa: "É comigo?"
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Colaboradores
de outros projetos de Eastwood, o desenhista de produção Kevin Ishioka,
e a figurinista Deborah Hopper ajudam a compor o universo cinzento,
árido e salpicado de esperanças de Earl, enquanto o editor Joel Cox (Oscar por Os Imperdoáveis de
1992) garante um bom ritmo ao filme, mas sóbrio, sem vibração intensa,
perseguições e capotagem de carros ou viradas mirabolantes, ou qualquer
cena de violência mais “gráfica", até porque, o filme não pede esse aproach...
O roteiro assinado por Nick Schenk, inspirado no artigo da New York Times Magazine “The Sinaloa Cartel’s 90-Year-Old Drug Mule”,
de Sam Dolnick, se baseia na história real de Leo Sharp, homem que
colecionou uma série de honras, indo desde prêmios por seus trabalhos
como paisagista e decorador, até o reconhecimento por ter lutado contra
os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, foi aos 87
anos que conquistou algo surpreendente: ele foi preso em 2011 por portar
o equivalente a três milhões de dólares em cocaína no seu carro, uma
picape velha, no Michigan. Sharp era o líder do Sinaloa, um cartel de drogas Mexicano.
Aqui,
terminam as semelhanças com o filme, pois, apesar de seu advogado
argumentar que ele não poderia ser preso por conta de sua idade e
demência, Sharp foi condenado a dois anos de cadeia. Ele morreria em
2016, aos 92 anos. Aqui fica o contraste com a realidade, até porque
Eastwood dificilmente admitiria estar vivendo o vilão da história afinal, independente das razões, ele entrou para o narcotráfico,
que destruiu e destrói muitas vidas. Coisas da sétima arte... O que o
personagem Earl busca é na verdade sua redenção em relação a família.
Ao
final, embora seja um filme modesto em suas pretensões narrativas, (que
em mãos menos habilidosas resultaria num filme menor e descartável) A Mula nos brinda com uma despedida digna de uma lenda viva da sétima arte e um mito real, mostrando com um tom “pra cima”, que “ser idoso” (indivíduo que envelhece naturalmente, mas ainda sendo produtivo e lúcido) não é “ser velho” (senil
e doente, o rótulo que a sociedade dá à população da terceira idade,
vendo-a como lixo a ser descartado) quando você se dispõe a enfrentar as
batalhas da vida e a encarar de frente os seus fantasmas, assumindo as
responsabilidades por suas escolhas.
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