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domingo, 30 de janeiro de 2022

Looongo trajeto... Crítica – Filmes: A Lenda do Cavaleiro Verde (2021)



Onírico rito de passagem à maturidade

 

por Alexandre César


Narrativa mítica chega aos cinemas e na Prime Video
 

 
Natal. O jovem aspirante à cavaleiro Gawain (Dev Patel de Quem Quer Ser um Milionário numa ótima performance, mesclando insegurança e vontade de superação) desperta num prostíbulo acompanhado por Essel (Alicia Vikander de Tomb Raider: A Origem), jovem com que se relaciona, e volta para casa para descansar pois mais tarde irá aos festejos no castelo do rei. Sua Mãe (Sarita Choudhury de Negócio das Arábias) uma poderosa feiticeira não vai, e ele é bem recebido no castelo pelo Rei (Sean Harris de Missão: Impossível - Efeito Fallout) e pela Rainha (Kate Dickie de Prometheus), pois ele é o sobrinho favorito do monarca. Assim ele se sentindo bem acolhido à despeito de sua inexperiência, ele testemunha a entrada na corte de uma figura estranha de aspecto sobrenatural, o Cavaleiro Verde (Ralph Ineson de Star Wars: Os Últimos Jedi) visualmente similar à uma árvore viva. O ser desafia o rei e seu séquito se entre eles haveria um cavaleiro corajoso que o golpeasse, de forma que um ano e um dia depois ele retornasse o mesmo golpe. Face o silêncio de todos, Gawain, querendo mostrar ser merecedor de ser um cavaleiro e, digno de conviver com os mais nobres e valorosos homens da comunidade, aceita o desafio. E demonstra valentia em público pegando o machado do ente e decapitando-o.

 

A prostituta Essel (Alicia Vikander) e o aspirante a cavaleiro Gawain (Dev Patel) têm um relacionamento à despeito de sua diferença de classes sociais


 
Para sua surpresa, o corpo do ser se levanta, pega a cabeça cortada e monta o seu cavalo após falar: “- Nos veremos daqui a um ano e um dia Gawain, na catedral verde!” e sai em disparada, deixando a todos atônitos, e em especial a Gawain, tendo de encontrar uma forma de manter a sua parte do acordo. Ele embarcará numa jornada heroica que definirá seu caráter, enfrentando fantasmas, ladrões, gigantes e trapaceiros para honrar uma dívida e, manter a sua honra de cava-leiro (e seu futuro no mundo) mas esperando não (literalmente) perder a cabeça...
 
 

Gawain é convidado a conversar com o Rei (Sean Harris) e a Rainha (Kate Dickie), não nomeados como 'Arthur' e 'Guinevere', pálidas figuras em relação ao arquétipo lendário

A entrada do Cavaleiro Verde (Ralph Ineson) desafiando aos cavaleiros serve como uma oportunidade para o ambicioso Gawain
 
 
Escrito, montado e dirigido por David Lowery (Meu Amigo, O Dragão) A Lenda do Cavaleiro Verde (2021) reimagina a clássica lenda de “Gawain e o Cavaleiro Verde”, onde o guerreiro em questão invadiu a corte de Rei Arthur, desafiando qualquer um dos membros da Távola Redonda a atacá-lo com seu machado – mas ele retornaria para devolver o golpe em um ano e um dia...A narrativa já foi adaptada algumas vezes para as telas, buscando um tom mais aventureiro, pois o icônico monarca - um dos símbolos da cultura celta e britânica - que enfrentou males diver-sos em prol da bondade e da derrota dos males em seu reino, junto com Merlin, Guinevere, Lancelot, Morgana Le Fay, (e Viviane), caíram no gosto popular e no imaginário pop, enquanto outros ficaram em segundo plano, razão pela qual alguns nomes do metier do entretenimento atual, de tempos em tempos, resolvem resgatá-los ao mainstream, por trazerem frescor à narrativa, sendo este, o caso de Gawain*1. Após vários atrasos, essa produção da A24 finalmente chegou aos cinemas do Brasil e ao streaming, através do Prime Video.
 
 
Para seu horror, o Cavaleiro Verde pega a sua cabeça e diz: "- Nos veremos em um ano e um dia Gawain..."
 
Chegando a época, Gawain não tem outra saída a não ser partir em direção ao seu destino, seja ele qual for
 
 
O cineasta mergulha de cabeça na mitologia em questão, bebendo muito da ancestralidade da Jornada do Herói, de Joseph Campbell*2, mas sem deixar que a identidade da história seja perdida, resultando numa bela reflexão intimista que se afasta das fórmulas de ação e fantasia a que estamos acostumados, apresentando uma análise quase antropológica sobre a ambição humana e como esse aspecto intrínseco ao nosso caráter entra em conflito com o significado de honra e caráter. Lowery supera as expectativas ao dar vida a uma gritante sinestesia de cores, sons e acepções que deixa o público vidrado do começo ao fim – e enxuga duas horas em uma frenética luta do homem contra o homem, numa narrativa contemplativa que deverá irritar aqueles mais afeitos a um tratamento mais aventuresco e frenético...
 
 

A mãe de Gawain (Sarita Choudhury) é uma feiticeira (em algumas narrativas ele é filho de Morgana Le Fay)


Uma abordagem interessante do roteiro é impessoalizar os outros personagens e elementos arturianos de forma a não perdermos o foco em Gawain. Em momento algum, o rei é chamado de ‘Artur’, ou a rainha de ‘Guinevere’, e ninguém se refere à távola redonda como tal e, menos ainda a palavra ‘Excalibur’ é usada para nomear a espada usada pelo monarca, e símbolo de seu direito de governar. E tanto, o rei quanto a rainha, diferente das figuras altivas e fulgurantes da lenda, são pálidas figuras, se parecendo mais com mortos-vivos ou fantasmas, de olheiras profundas e comportamento cansado. Assim vemos Gawain como o único elemento realmente vivo na trama e temos mais facilidade de acompanha-lo em sua jornada, que tem como ponto fundamental a virtude cavalheiresca.
 
 
As locações na Irlanda, como o Castelo de Cahir na província de Munster no Condado de Tipperary, aliado ao bom uso de efeitos visuais, geraram ótimos visuiais

um Carniceiro (Barry Keoghan) e suas irmãs, capturam e roubam Gawain, deixando claro a sua inexperiência
 
 
Gawain segue sua jornada (pois é o que se espera dele), saindo de sua zona de conforto na corte e enfrentando obstáculos ao longo do caminho até alcançar seu destino (o que acreditamos ser a morte). Afinal, à época, enfrentar o que a predestinação aguardava era motivo de cobiça pelos cavaleiros e guerreiros medievais – e fugir dela era passível de desonra e de desmantelamento da reputação. Gawain sabe o que ele deve fazer e é tentado a desistir e voltar para casa em mais de uma ocasião: no meio do caminho, ele é enganado por um Carniceiro (Barry Keoghan de Eternos) e suas irmãs, que roubam as suas roupas, armas e o seu cavalo; auxilia uma alma penada Winifred (Erin Kellyman de Falcão e o Soldado Invernal) à encontrar o seu descanso final; pouco depois, é acompanhado por uma raposa, que, apesar de ajudá-lo em alguns momentos, mostra-se como uma manipuladora criatura que quer convencê-lo de que correr é a melhor solução; quando acolhido por um Lorde (Joel Edgerton de O Rei) tem sua honra testada pelas investidas propositais da Lady (a mesma Alicia Vikander que faz Essel, a prostituta por quem é apaixonado), além de ter atitudes parecidas com as da sua própria mãe. Ao fim, quando finalmente ele se depara com seu antagonista, a narrativa faz uso de um recurso similar ao clássico natalino A Felicidade Não se Compra (1946) *3 de Frank Capra. Gawain se dá conta de como seria a desonra de (mesmo que todos não saibam) de viver uma farsa como futuro Rei, empurrando a vida com a barriga (e na verdade, em desgraça, levando sua casa à ruína, e perdendo a cabeça de qualquer forma) antes de decidir que mais vale morrer honradamente. Uma inspiração que ao final lhe faz toda a diferença, num desfecho ambíguo, que abre interpretações diversas sobre o seu real destino.
 
 
Gawain auxilia uma alma penada Winifred (Erin Kellyman) a ter o seu repouso final

Durante um tempo uma raposa serve de companhia e guia


Os valores de produção criam um visual estonteante, de aspecto onírico e de tons frios, opondo seu protagonista a um pano de fundo ambíguo, igualmente sublime e aterrorizante, mergulhado em escuridão (reforçado pelo céu, sempre nebuloso) em que a lógica da imagem está a serviço da realidade embaralhada entre as fábulas e os mitos. 
 

Num momento onírico ele cruza com gigantes (entre eles, a brasileira Bel Friósi)


O desenho de produção de Jade Healy (O Sacrifício do Cervo Sagrado) Cria ambientes que traçam muito bem a coexistência entre essas camadas sociais (o rasteiro e o nobre) como o trajeto inicial do herói do prostíbulo até a respeitada residência da família, e mais tarde à corte do rei, e junto com a direção de arte de Louise Mathews (O Ritmo da Vingança) e Christine McDonagh (Into the Badlands) e a decoração de sets de Jenny Oman (Patriota) insere no detalhamento desses escuros e misteriosos cenários, cheios de obstáculos que testam a dignidade do herói durante o cumprimento da missão, os elementos que os ambientam no imaginário do Ciclo Arturiano, à despeito de sua atmosfera ser destoante das vistas nas abordagens mais reverentes dessa mesma tradição...
 
 
Gawain é acolhido por um Lorde (Joel Edgerton) que o vê em grande conta
Gawain é tentado pela Lady (Alicia Vikander) que deixa claro seu interesse nele

 
 
Os figurinos de Malgosia Turzanska (A Luz No Fim Do Mundo) fundem a estilização na caracterização de personagem, com materiais rústicos em sua maioria, excetuando os trajes do Rei, da Rainha (de tons sóbrios) e do Lorde e da Lady, que (tal qual os trajes dos camponeses) são mais realistas, dentro dos parâmetros da proposta do filme.
 
 
Tanto Essel quanto a Lady (Alicia Vikander) parecem faces de uma mesma moeda

Após perambular, Gawain finalmente encontra a "Catedral Verde" e vai encarar seu destino

 
 
A fotografia de Andrew Droz Palermo (Sombras da Vida) com uma palheta de cores fria e tons acinzentados, usa um filtro esverdeado e melancólico que acompanha os personagens, nos mostrando o visual de um mundo plenamente mergulhado na chamada Idade das Trevas*4, em vez de retratar os espaços com uma iluminação capaz de revelar cada detalhe, além de utilizar lentes para distorcer cenários, e quebrar o eixo visual das imagens, ou usar de planos oblíquos, enfatizando essa dubiedade entre o mítico, o real, de limites borrados, sublinhados pela música de Daniel Hart (A Última Carta de Amor) que dá atmosfera de maneira lírica e melancólica.
 
 
Em certa altura Gawain vislumbra um dos rumos que sua vida tomará se for numa direção, se tornando o escolhido do rei...
 
 
Os efeitos visuais da Weta Digital, Outpost FFX, Lucky Post, Maere Studios, supervisionados por Nicholas Ashe Bateman (Breaking Bread) e Kev Cahill (Han Solo: Uma História Star Wars) chamam a atenção pela construção visual sofisticada, com toques de poema épico, fazendo a indefinição bem calculada entre a realidade, a fábula e as possíveis alucinações, com na bela cena em que Gawain enxerga gigantes se deslocando à frente, indicando o quão misteriosa é essa terra forjada por narrativas de heroísmo (ou apenas o efeito colateral da ingestão de cogumelos que o fazem “enxergar” a mão deformada), além da figura do Cavaleiro Verde, que é uma figura imponente.
 

... e então Gawain herda o reino sucedendo o Rei e a Rainha

Ao final Gawain vislumbra que "de que adianta um homem ganhar o mundo se perder..."

 
A Lenda do Cavaleiro Verde apresenta um conjunto harmonioso, desde a atuação de Patel como o protagonista, passando pelas soluções visuais irretocáveis de seu time criativo, onde a fotografia e a montagem, ofuscam os mínimos deslizes da obra (como uma extensão um pouco maior de suas cenas que às vezes gera um certo cansaço) e convidam o espectador a se envolver em níveis intimistas de seus personagens, que embora esteja fadada a ser esnobada nas temporadas de premiações, deverá ter com o tempo seu real valor reconhecido, pelas camadas que se escondem sob a superfície de suas imagens, capazes de nos deixar pensativos por um bom tempo, numa tarde ou noite chuvosa...
 
 
A saída será algo inesperado

 

 
 

Notas:



*1: Nos romances de cavalaria do ciclo arturiano, Gawain é um dos membros da Távola e, mais que isso, um dos companheiros e guerreiros mais próximos do Rei. É claro que, com o passar do tempo, as origens de sua história sofreram alterações, tornando o trabalho dos especialistas um pouco mais difícil do que o normal no tocante historiográfico. De qualquer maneira, costuma-se associar Gawain, também, a Morgause, irmã de Arthur, e a seus irmãos mais novos, Agravain, Gaheris, Gareth e o infame Mordred (uma das construções mais complexas e controversas deste tempo, agindo em egolatria para conquistar o trono da Bretanha).
 

*2: Joseph John Campbell (1904 - 1987) foi um mitologista, escritor, conferencista e professor universitário norte- americano, famoso por seus estudos de mitologia, e religião comparada e autor da obra O Herói de Mil Faces, publicado originalmente em 1949. 
 
 
 

*3: Neste clássico, o protagonista (James Stewart) num momento de desespero, prestes a se suicidar, ganha magicamente a possibilidade de avistar como seriam nefastos os desdobramentos da vida e dos habitantes de sua comunidade, se ele não tivesse nascido, e desse modo, acaba recebendo os subsídios para fazer “a escolha certa”.
 
 

*4: A “Idade das Trevas” (Baixa Idade Média, indo dos séculos V a X), mas designação da Europa entre o século IV e o XV que aqui é retomada, e da mesma forma, embora não façam referência direta ao Código de Cavalaria, um código informal de conduta desenvolvido entre os anos de 1170 e 1220.
 




sábado, 22 de janeiro de 2022

Fogo no convento - Crítica - Filmes: Benedetta (2021)

 


Fé, desejo, poder

por Alexandre César


Paul Verhoeven e a iconografia cristã

 



Que o Holandês Paul Verhoeven (Tropas Estelares, Instinto Selvagem) é um fetichista genial que não se furta a encher seus filmes de cenas provocativas de sexo, violência, é algo óbvio para qualquer cinéfilo. Sua capacidade de ligar isso a imagens de conotação religiosa-cristãs, em obras as mais aparentemente dispares como Robocop – O Policial do Futuro*1 (1987), então é chover no molhado.
Dito isto, Benedetta (2021) seu último filme que causou furor quando estreou no Festival de Cannes , mixa um grande número de imagens eróticas e sexualizadas, com outras mais heréticas, visando a exploração ora crítica, ora erótica e muitas vezes irônica do cineasta, responsável pelos controversos Conquista Sangrenta (1985), Showgirls (1995) e Elle (2018) entre outros. 
 
 
Midea (Clotilde Courau), a mãe,  e Giuliano (David Clavel) o pai, levam a menina Benedetta (Elena Plonka) para o Convento das Teatinas

À noite, rezando à imagem da Virgem Maria, ocorre o primeiro "milagre" de Benedetta


O roteiro, de Verhoeven e David Birke (Elle) se baseia no livro acadêmico "Atos Impuros: A Vida De Uma Freira Lésbica Na Itália Da Renascença", de Judith C. Brown, que documenta a história de uma freira lésbica - Benedetta Carlini - que se torna abadessa de um convento em plena Itália renascentista do século XVII, e cria uma sátira provocativa ao catolicismo no período da peste negra, com um enredo de libertinagem, corrupção e hipocrisia, mesclada a uma inteligente e joco-sa aproximação ao subgênero conhecido como nunsploitation*2.
 
 
18 anos se passam e Benedetta (Virginie Efira) é uma mulher que fantasia ser esposa do poderoso Jesus (Jonathan Cousiné)

A rotina da vida no convento cosiste na dediação à fé

À pedido de Benedetta, a Madre Superiora Felicita (Charlotte Rampling acolhe a camponesa Bartolomea (Daphne Patakia) no convento
 
 
Logo no início do filme somos apresentados a uma bem jovem Benedetta (Elena Plonka de J´ai 10 ans) com nove anos que, inteligente, sempre tem uma resposta afiada para tudo e maneja muito bem a reação alheia, que é levada pelo pai (David Clavel de Capsules: Juin) ao convento da Ordem das Teatinas, na cidade de Pescia, onde negocia com a Madre Superior Felicita (Charlotte Rampling de Duna), a entrega de sua filha à vida como esposa de Jesus Cristo (afinal, ter um filho ou filha na Igreja é um sinal de status para subir na hierarquia social) e assim a Reverenda Madre não a acolhe pela bondade de seu coração, mas sim pelo ouro que ela pode render a seus cofres.
 
 
A presença da espevitada Bartolomea vai fazendo aflorar o desejo latente de Benedetta

Aos poucos, as duas vão se aproximando e descobrindo o amor
 
 
Dezoito anos depois, a já adulta Benedetta Virginie Efira de (Um Amor Impossível). passa a constantemente ter visões milagrosas – e bem eróticas – de Jesus Cristo (Jonathan Couzinié de Revenir, personificado como um cavalheiro de branco e pronto para salvar sua esposa Benedetta) e intercede para com seus pais que pague a entrada da desamparada camponesa Bartolomea (Daphne Patakia de Nimic) para o convento, fugindo de uma vida familiar de abuso. O relacionamento entre as duas não aparenta ser sedutor, amoroso ou cordial a princípio, embora se note o quanto a jovem desperta o desejo latente da mulher. 
 
 
As visões de Benedetta vão se intensificando, com sua visões, sempre ameaçada...

...sempre sendo salva pelo seu amado, o poderoso Jesus, Paladino da Justiça

A Madre Superiora designa Bartolomea para cuidar da combalida Benedetta
 
 
À medida que o desejo entre as duas vai crescendo, mais as visões de Benedetta se intensificam, com transes, que lhe marcam as chagas do sofrimento de Jesus na cruz. Os milagres são aceitos, não por serem verdadeiramente aceitos como milagres, mas sim, como peças de interesse próprio dentro da hierarquia religiosa. São essas visões, também, que fazem com que a rebelde noviça Bartolomea passe a dividir o “quarto” com Benedetta, por ordem da abadessa, e o relacionamento que a princípio, é uma estripulia infantil, um jogo de provocação, vai caminhando para um encontro carnal em busca do prazer e poder. 
 
A ascensão de Benedetta na ordem vai sendo gradual e constante...

...da mesma forma como vai crescendo o seu desejo por Bartolomea

 
Com o aparecimento dos estigmas em suas mãos e pés, ela trilha o caminho para o posto mais alto de uma mulher na igreja, (sendo inclusive considerada Santa). Começam então as dúvidas, a inveja e as angústias das outras freiras, que não confiam que Benedetta assuma a liderança e seja a escolhida por Deus para o cargo ocupado por Felicita, que se torna uma das suas principais oponentes, junto com sua filha e também freira Christina (Louise Chevillotte de Amante por um Dia).
 
 
As fantasias de Benedetta sobre Jesus mesclam o sagrado e o erótico

A população passa a considerar Benedetta um santa, e fazem oferendas a ela

Pelo prestígio que Benedetta alcança, o bispo Alphoso Cecchi (Olivier Rabourdin) A nomeia como a nova Madre Superiora,para a surpresa de Felicita

 
Após um incidente dramático, a rebaixada Felicita vai a Florença, ao encontro do Núncio Papal (Lambert Wilson de Matrix Ressurections) denunciar as irregularidades de Benedetta, bem como a sua conjunção carnal com Bartolomea, originando um julgamento enquanto a peste negra varre a região, o que faz Benedetta mandar fechar as entradas de Pescia, com o objetivo de isolar a cidade.
 
 
Um cometa risca os céus, prenunciando tragédias

 Felicita vai a Florença, procurar o Núncio Papal denunciando o pecado das duas freiras


A performance de Virginie Efira é uma mistura perfeita de sarcasmo e luxúria, pontos exatos de exploração da sua imagem em tela com grandes doses de ambiguidade, pois inicialmente Bendetta sempre se mostra arredia e alucinada, em seus sonhos acordada aos braços de Jesus (a quem ela se direciona como seu marido) indo do ingênuo ao cínico, sendo capaz de uma transformação corporal incrível (bem típica dos filmes de Verhoeven, ainda que sutil) – pois da freira frágil toda coberta, no início, ela até parece até ganhar mais estatura quando nua (transmitindo mais segurança e empoderamento que muita amazona das telas...), além de sua voz, durante as possessões ter uma rouquidão aterrorizadora
Verhoeven espertamente joga com essa sensação de transitar entre o que é velado e o que é dissimulado, sendo o grande trunfo do filme fazer o espectador, ora desconfiar, ora acreditar na freira, deixando para nós decidir se ela é inescrupulosa e cínica, se suas visões são genuínas, maquiavelicamente inventadas ou fruto de uma mente doente, ou se Benedetta Carlini está realmente em contato com o divino...
 
Procissões seguem, em vista do avanço do grande mal por todo lado...

...a peste negra, que vai devorando tudo e todos à volta

O Núncio Papal (Lambert Wilson) "enquadra" Benedetta, que havia "morrido" e voltado à vida

 
Os valores de produção são de ótima qualidade, sendo a narrativa de Verhoeven complementada pela edição de Job ter Burg (A Espiã) com cortes precisos, que aos longo das 2 horas e 11 minutos do filme, dá o tempo necessário à cada sequência de forma a entendermos os desdobramentos da história, sublinhada pela música de Anne Dudley (Elle) que dá a atmosfera (com seus cantos gregorianos e acordes) desse contexto de penitência e de subjugação da carne e do espírito frente ao dogma e de seu conflito com o desejo, contrastando do tom de filme de ação nos delírio da protagonista com seus Jesus, herói de ação...
A bela fotografia de Jeanne Lapoirie (Mescaline) valoriza tanto as formas de suas atrizes (mas não mostrando sexo explícito), quanto as belas locações da Itália. Historicamente correto, o desenho de produção de Katia Wyszkop (Versailles) constrói espaços cênicos sólidos, que a dire-ção de arte de Eric Bourges (O Mistério de Henri Pick) valoriza revelando detalhes de mobiliário da época, de seus instrumentos de trabalho (e de tortura) e das instalações do convento, como os dormitórios, as latrinas (e o que era usado como papel higiênico), além dos detalhados figurinos de Pierre-Jean Larroque (Os Meninos Que Enganavam Nazistas) mostrarem as classes sociais envolvidas no tipo de tecido e nível de acabamento como os trajes luxuosos dos pais e Benedetta e do Núncio Papal, diferente dos austeros hábitos das freiras, os trajes funcionais dos guardas e dos camponeses, passando pelos trapos dos penitentes e infectados pela peste negra*3, que recriam atmosfera das pinturas de Brueghel e Bosch*4, principalmente nos momentos que revelam a desgraça da contaminação, tendo destaque a maquiagem de efeitos de Guillaume Castagné (A Noite Devorou o Mundo) ao mostrar o aspecto quase zumbificado dos portadores da praga, com suas equimoses, e pele acinzentada e varicosa.
 
 
O Núncio dá início a um julgamento eclesiástico

Apenas o amor poderá salvar Benedetta


Embora perca um pouco com a sequência climática na praça central de Pescia - que dá uma abordagem mais simplista para criar tensão e ação onde não era realmente necessário e que acaba levando a um fim –, explicado em legendas ao final (e que efetivamente aconteceu com a personagem real*5, mas não decorre exatamente da forma como é mostrado), Benedetta se mostra um filme vigoroso e tão feminino quanto possível ao tratar de um amor lésbico entre mulheres que não podem se assumir como tal. Mas ele usa a homossexualidade de um freira no século XVII não para discutir o preconceito contra homossexuais, ou a visão retrógrada de religiões em geral na qual as pessoas viram o rosto para este tipo de situação, mas não quando alguém se autoflagela diante delas (tirando disso uma secreta satisfação...) ou para refletir sobre o tema no passado e hoje em dia. O tema é abordado para, em essência, desvelar a hipocrisia do Homem, trabalhando cada personagem da história em tons de cinza - sem que ninguém seja exatamente santo ou diabo -  e, no processo, atestando que o que nos impulsiona não é o bem comum, mas sim o nosso próprio interesse, nosso egoísmo.


A fotografia, a direção de arte e os figurinos são um show à parte




Notas:
 

*1: Em seu primeiro filme americano, Verhoeven fez todas as cenas da torturante execução de Alex Murph (Peter Weller) calcadas em pinturas sacras, mostrando martírio de Jesus Cristo. Nos comentários do DVD do filme, Verhoeven declara que via Robocop como o “Jesus Americano”, pois ele morre, e renasce para salvar os homens (inclusive numa cena ele anda sobre um filete de água, lembrando Cristo andando sobre o mar) mas “- Como ele é o Jesus Americano, ele tem que ter armas!”
 
 

*2: Nunsploitation é um subgênero dos filmes de exploitation que seguiu um curso paralelo ao lado de filmes de mulheres em filmes de prisão (nas décadas de 1970 e 1980). Este subgênero teve seu auge na Europa na década de 1970. Esses filmes geralmente envolvem freiras cristãs (Nuns, em inglês) que vivem em conventos isolados, semelhantes a fortalezas, durante a Idade Média. O principal conflito da história é geralmente de natureza religiosa ou sexual, como opressão religiosa ou supressão sexual por viver em celibato. A Inquisição é outro tema comum nestes filmes cujo elemento da culpa religiosa permite representações sombrias de "mortificar a carne", como autoflagelação e rituais dolorosos e masoquistas. A madre superiora geralmente é uma déspota cruel e corrupta, semelhante a uma diretora de prisão, que impõe disciplina estrita (mais oportunidades para açoites e punições no estilo medieval) e muitas vezes deseja suas acusadas. Um padre igualmente sádico e lascivo é frequentemente incluído para adicionar um elemento de ameaça masculina à história. Esses filmes, embora frequentemente vistos como filmes de pura exploração, geralmente contêm críticas contra a religião em geral e à Igreja Católica em particular. De fato, algum diálogo das protagonistas expressou a consciência feminista e a rejeição de seu papel social subordinado. Muitos desses filmes foram feitos em países onde a Igreja Católica é influente, como Itália e Espanha. Um exemplo atípico do gênero, Killer Nun (Suor Omicidi), foi ambientado na Itália atual (1978). Este subgênero de filmes de exploração de freiras católicas é bem popular no cinema japonês desde pelo menos o início dos anos 1970.
 
 
*3: A Peste Negra foi a pandemia mais devastadora registrada na história humana, tenho o seu pico na Europa entre1347 e 1351, resultado na morte de 75 a 200 milhões de pessoas entre os continentes europeu e asiático. Acredita-se que a causa da praga era a bactéria Yersina pestis, transmitida pelas pulgas que viviam em ratos, que viajaram em navios mercantes genoveses, espalhando-se pela bacia do Mar Mediterrâneo e atingindo o resto da Europa através da península italiana. Estima-se que ela tenha matado entre 30 a 60% da população europeia. 
 

*4: Pieter Brueghel (1525-1569) foi o mais importante artista da pintura renascentista flamenga e brantina, sendo conhecido por suas pinturas registrando o cotidiano dos camponeses
 

 
Hieronymous Bosch (1450-1516) foi um pintor holandês que se destacava por seus quadros de influência religiosa, vivendo o período de transição entre a Idade Média e a Renascença. Seus quadros são plenos de figuras humanas nuas que se misturam com animais fantásticos e monstros devoradores de corpos.
 
 
*5: Benedetta Carlini não foi martirizada, permanecendo enclausurada no Convento das Teatinas, onde às vezes, lhe era permitido assistir à missa e a jantar com as outras freiras, mas sentada no chão. Ela veio a falecer aos 70 anos de idade. A vila de Pescia foi devastada pela peste negra, diferente de outras comunidades da região.



Nunca uma mulher vestida, cresceu tanto em altura, ao ficar nua...