O Assombroso Multiverso!!!

Dr. Estranho de Sam Raimi traz o terror ao UCM.

As Muitas Faces da Lua

Spector, Grant, Cavaleiro da Lua, as múltiplas personalidades do avatar de Konshu.

Adeus, Mestre.

George Perez e sua fantástica trajetória.

Eu sou as sombras.

The Batman, de Matt Reeves, recria o universo sombrio do Homem-Morcego.

Ser legal não está com nada...Ou está?

Lobo, Tubarão, Aranha, Cobra, Piranha...Que medo!!! Mas eles querem mudar isso.

segunda-feira, 7 de março de 2022

Com vocês, o detetive!!! - Crítica – Filmes: O Batman (2022)

 


A volta triunfal do Morcego

 
por Alexandre César

Matt Reeves prioriza o conceito à frente da interpretação

 


Obs: texto com alguns spoilers.

Desde que surgiu em maio de 1939 na revista Detective Comics n° 27*1, Batman, ‘O Campeão de Gothan’, ‘O Maior Detetive do Mundo’, ‘O Cavaleiro das Trevas’, entre tantos outros epítetos, foi conquistando outras mídias nestes 83 anos existência, além de prosseguir a sua carreira vitoriosa nos quadrinhos. Como todo produto de cultura de massas, seu visual e suas características distintas foram o resultado da fusão de várias influências*2 que acabaram por lhe dar uma personalidade única, sendo referencial para a criação de inúmeros outros personagens.
 
À noite um  sinal nos céus de Gothan, alertando os meliantes que o predador está à solta
 
 

Além dos quadrinhos, a sua trajetória foi marcante nas animações, nos seriados, nos games e no cinema, tendo sido objeto de vários cineastas e atores que, no somatório, deram cada um a sua interpretação do personagem, refletindo a época, o mundo e as forças econômicas que o moviam. De sucessos absolutos, passando por fracassos e versões relativamente bem-sucedidas, mas que geraram controvérsias entre os fãs, por onde passasse a sombra do morcego a única coisa que não gerava era indiferença.
 
 
Prefeito Don Mitchell (Rupert Penry-Jones) é encontrado morto por seu filhinho
 
O Tenente James Gordon (Jeffrey Wright) pede ajuda à Batman (Robert Pattinson) para resolver o caso, apesar da oposição da polícia
 
 
 
Dirigido por Matt Reeves (Planeta dos Macacos: A Guerra, de 2017, e O Batman, de 2022) traz uma narrativa de suspense com forte inclinação noir, se preocupando em primeiramente estabelecer conceitualmente “o que é o Batman” e depois sim, fazer a sua interpretação pessoal do Batman. Isso cria um grande diferencial em relação aos diretores dos filmes anteriores, que sempre colocaram primeiro a sua interpretação e assinatura na frente da conceituação. Com seu ritmo lento, mas nunca parando, indo num crescendo gradativo graças à edição de William Hoy (Planeta dos Macacos: A Guerra) e Tyler Nelson (Contos do Loop), o filme conta em suas quase três horas uma trama investigativa plena de momentos marcantes, rivalizando com Batman - O Cavaleiro das Trevas (2008) de Christopher Nolan, apesar de tomar rumos distintos.
 
 
De dia, Bruce Wayne (Robert Pattinson) só se preocupa com o legado de sua família

 
O roteiro de Matt Reeves e Peter Craig (Atração Perigosa) resgata uma das facetas mais esquecidas do personagem em suas encarnações pregressas: Batman, o Detetive, privilegiando a sua capacidade analítica, reduzindo a importância de apresentar gadgets mirabolantes (mas eles aparecem, de acordo com a necessidade funcional da história) ou de resolver tudo na base do combate físico (e olha que ele bate, e muito...), investindo no lado investigativo e flertando bastante com o horror, construindo tal sentimento através de sons e na construção de uma atmosfera sufocante que tudo parece sempre acontecer à noite, com poucas luzes e chovendo quase sem parar. Isso é definindo logo nas primeiras cenas, usando o suspense para ilustrar o medo palpável que o bat-sinal causa nos meliantes (a primeira aparição do Batman é de gelar o sangue) e mostrar a cidade de Gotham como o habitat de caos social, como uma comunidade econômica, moral e socialmente estagnada, exalando um clima de desilusão que contamina seus habitantes e gera seres como o Batman, Charada, Duas-Caras, Coringa e tantos outros desta extensa galeria de personagens.
 
 
Edward Nashton/ Charada (Paul Dano) segue aterrorizando a elite econômica e política de Gothan
 
Há muitas referências às pinturas de Edward Hooper, que retratava a solidão urbana

 
Acompanhamos neste filme Batman / Bruce Wayne (Robert Pattinson, de O Farol, de 2019, em intensa performance) no seu segundo ano de carreira contra o crime, ainda aprendendo aos trancos e barrancos, a “ser o Batman” e o que isto significa, com direito aos erros próprios da inexperiência e da juventude. Aqui ele já conquistou a confiança do Tenente James Gordon (Jeffrey Wright, de Westworld ótimo como sempre), tendo forjado com ele uma aliança (que é bastante testada no filme). A dupla une esforços para investigar o misterioso assassinato do Prefeito Don Mitchell (Rupert Penry-Jones, de The Commons), candidato à reeleição cujo passado foi exposto por um vídeo postado na web, revelando suas ligações com Carmine Falcone (John Turturro, de Ruptura, perfeito como um escroque mafioso), líder todo-poderoso da máfia local. O video também apresenta uma uma ligação indiscreta do prefeito com uma scort girl desaparecida (Iana Saliuk, de Ganapath), amiga da bela Selina Kyle (Zoë Kravitz, de Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald, naturalmente sensual até a medula), que trabalha no clube privê administrado por Oswald Cobblepot / Pinguin (Collin Farrell, de Magnatas do Crime, numa performance promissora).
 
 
Oswald Cobblepot / Pinguin (Collin Farrell) é o "Fredo Corleone"  da máfia de Gothan

 
À medida que suas pesquisas avançam, o recluso herdeiro/justiceiro, que praticamente não sai de casa durante o dia (como um vampiro ou, como ele mesmo reconhece, um animal noturno), vai esbarrando com ligações entre a família Wayne e Carmine Falcone. Isso o leva a questionar o passado de seu pai, à despeito do que o fiel Alfred Pennyworth (Andy Serkis, de Planeta dos Macacos: A Origem, numa caracterização interessante) sempre lhe ensinara.
 
 
A base de Batman, abaixo da Torre Gothan,se situa num terminal ferroviário desativado

Todos os equipamentos de Batman são essencialmente funcionais, feitos por ele mesmo


 
A ligação de Batman com Selina ocorre de forma orgânica, com ela auxiliando-o a espionar o Iceberg Lounge (o clube de Falcone) e sua clientela. Entre os frequentadores está o Promotor Gil Colson (Peter Sarsgaard, de A Filha Perdida), cuja presença acaba desencadeado uma sequência de fatos que levam ao confronto entre Batman e Edward Nashton/ Charada (Paul Dano, de Sangue Negro, assustador em sua interpretação). A caracterização desse antagonista nos remete ao Assassino do Zodíaco*3 e seus planos se revelam mais assustadores do que aparentavam.
 
 
A bela Selina Kyle (Zoë Kravitz) procura sua amiga desaparecida nesta luta pelo poder

 
Robert Pattinson, que já havia deixado o vampiro Edward para trás há muito tempo, domina o filme em cada cena. Ainda que os personagens à sua volta sejam bem definidos e com o tempo necessário para que os entendamos, o personagem principal nunca sai de foco, deixando assim de lado o ‘calcanhar de Aquiles’ de boa parte dos filmes anteriores do herói, onde aconteciam aquela história do ‘vilão roubando o filme’. A despeito de termos um Bruce Wayne recluso, reservado e depressivo (chegando próximo de um ‘emo’*4...), não muito diferente do próprio Batman, destoando do que já está estabelecido no imaginário dos fãs ou mesmo dos que conhecem o personagem superficialmente. Diferente de Superman (que é a máscara que Clark Kent usa para ajudar as pessoas), Bruce Wayne é que seria a máscara através da qual  Batman se esconde do mundo (algo que o próprio Charada observa no filme) e, por isso, deveria adotar aquele perfil de playboy frívolo para desviar suspeitas. Podemos especular que, como aqui ainda se está num processo de construção de personas, ainda deveremos futuramente ver esta dualidade se formar.
 
 
O Batmóvel, um "muscle car" customizado com o máximo de motor e blindagem

Bruce Wayne descobre ligações de seu pai com o poderoso Carmine Falcone (John Turturro) chefe da máfia, e de Oswald Cobllepot

 
Embora o ator esteja em ótima forma, e com uma intensa fisicalidade (nas cenas de luta em especial), aqui temos uma versão mais light do personagem, remetendo aos desenhos de Ernie Chua, Jim Aparo, José Luiz Garcia Lopez e Neal Adams. Bem diferente do perfil parrudo de Christian Bale e Ben Affleck, que dialogam mais com a visão nos quadrinhos de Bernie Wrightson e Frank Miller. É claro que, desde Batman (1989), de Tim Burton, aceitamos que o combatente do crime tem de adotar um traje tático que proteja o seu corpo da grande variedade de traumas que a luta contra o crime acarreta, implicando com isso em diferentes graus de perda de mobilidade - algo que difere do icônico e cult Clark Bartram*5 que só usava a clássica malha colante, como nas HQs. 
 
 
Selina, a "Gata Ladra" desenvolve uma intensa ligação com o vigilante, unindo esforços
 
 
A incrível e atmosférica trilha musical de Michael Giacchino (Jojo Rabbit) cria um tema marcante para o personagem, com poucos acordes, mas que, repetidos, criam uma marca sonora sinistra e assustadora, similar ao tema de Tubarão (1975) ou a Marcha Imperial de Star Wars: Episódio V: O Império Contra-Ataca (1980) já figurando como um dos grandes temas do cinema por sua simplicidade impactante. Tem também o uso perturbador de Ave Maria, de Schubert, destacando a versão sinistra entoada pelo Charada que compõe bem com a imagética de Gotham. Batman sempre funcionou melhor num universo de iconografia visual católica, tal qual o Demolidor da Marvel.
 
 
O Promotor Gil Colson (Peter Sarsgaard) é capturado pelo Charada, que envia uma mensagem (e um desafio) ao Batman

Bruce começa a montar um quadro esquemático dos alvos do Charada

 
A ótima fotografia de Greig Fraser (Duna) cria uma atmosfera sufocante, de tons frios. A fotografia compõe, com o desenho de produção de James Chinlund (Planeta dos Macacos: O Confronto), ambientações carregadas por mobiliário ou elementos de cena, que a direção de arte de Grant Armstrong (Kingsman: O Círculo Dourado), James Lewis (A Fantástica Fábrica de Chocolate), Oliver Benson (Kingsman: A Origem), Trinity Tad Davis, Joseph Hiura (Pantera Negra); Gary Jopling (Missão: Impossível - Efeito Fallout), Joe Howard (Kingsman: O Círculo Dourado), Mathew Kerly (Kingsman: A Origem) e Will Newton (The Great Fire) caracterizam, dentro de um parâmetro realista, a posição social ou o estado psicológico de seus personagens. A decoração de sets de Laura Ng (Thor: Ragnarok) define bem os cenários, como o pequeno, bagunçado e cheio de roupas (e de gatos) apartamento de Selina Kyle, o Iceberg Lounge, cheio de grã-finos viciados em gota (droga sintética tipo ecstasy), a residência Wayne que remete à um mausoléu, ou os abarrotados espaços públicos, como a Chefatura de Polícia e a Catedral de Gothan, que combina com o pequeno apartamento de Edward Nashton, que (como todo apartamento de psicopata) é entulhado de elementos em todas as paredes, refletindo seus processos mentais obsessivos.
 
 
Os efeitos visuais e os valores de produção criaram cenas impactantes

 
Os figurinos de Jaqueline Durran (1917), dão um ar de atemporalidade, com leves toques de anos 70, como no traje do Charada, que remete aos slasher movies*6 daquele período. Os trajes colantes de Selina Kyle (aqui, a ‘Gata-Ladra’) e o extremamente funcional e intimidante bat-traje, criado por David Crossman (Rogue One: Uma História Star Wars) e Glyn Dillon (Han Solo: Uma História Star Wars), cujos sons de couro, tecido e metal roçando enquanto o herói se move é um elemento intimidante visto nas cenas em que não vemos o Batman, mas ouvimos o seu movimento, chegando como um monstro de filme de horror. A diferença de como ele e a ‘Gata-Ladra’ se movimentam ao lutar é incrível, mostrando o contraste da fluidez sensual de uma e o brutal e mecânico jeito do outro.
 
 
Alfred Pennyworth (Andy Serkis) o fiel mordomo e ex-MI-6 que criou Bruce, protegendo o legado dos Wayne

As cenas de ação são intensas e brutais, não deixando pedra sobre pedra

 
Dentro desse parâmetro de realismo, os efeitos visuais de Scanline VFX, Industrial Light Magic (ILM), Weta Digital, Gentle Giant Studios, Halon Entertainment , Crafty Apes e Territory Studio, supervisionados por Dan Lemmon (Planeta dos Macacos: A Origem), Russell Earl (Vingadores: Ultimato), Malcolm Humphreys (Star Wars: A Ascensão Skywalker) e Dominic Tuohy (Dolittle), além de tornarem críveis os aparatos tecnológicos do herói, como o Batmóvel (um muscle car customizado digno de Chrsitine, o Carro Assassino*7), expandem satisfatoriamente a ambientação cenográfica numa escala que chama a atenção para os desastres que surgem e ocorrem de forma crível mas de aspecto sóbrio, sem passar aquela ideia de “olhem para mim, sou um incrível efeito visual, não?!”
 
 
O "sinal do morcego" é uma ferramenta de combate destacável 

 
O Batman ja figura como um dos grandes filmes do ano. Merece ser visto como uma das grandes abordagens do personagem e que abre grandes possibilidades para ele e seu leque de oponentes (já esboçado). Esperemos agora que parem de esquecer que, antes de ser o Campeão de Gotham, que luta muito, e o Cavaleiro das Trevas, cheio de brinquedos incríveis, Batman é O Maior Detetive do Mundo...


A Cidade de Gothan é um mix de gótico e estilos arquitetônicos modernos, de forte viés setentista

Em matéria de "salto de fé" ninguém supera o morcego...




Notas:
 
 

 
*1: O personagem foi criado pelo escritor Bill Finger e pelo desenhista Bob Kane em 1939 com a missão de repetir o sucesso do Superman, que começara a ser publicado no ano anterior. Ele foi elaborado a pedido do editor Vin Sullivan e surgiu originalmente com o nome "Bat-Man". Sua primeira história foi The Case of the Chemical Syndicate, seguindo os parâmetros narrativos da época contidos nas revistas pulps.
 
 

*2: Batman foi influenciado em sua gênese por outros personagens, como o Zorro (do qual tirou a sua identidade secreta frívola), o Sombra (de onde veio os seus métodos justiceiros) e Drácula (com seu apelo misterioso e assustador). Também tem como referência filmes, como The Bat (1926), O Fantasma da Ópera (1925) e O Homem que ri (1928), que inspiraram elementos que formam o seu universo ficcional, como o seu visual do herói emulando um morcego, a atmosfera gótica de suas histórias e caraterísticas do seu grande arqui-inimigo, o Coringa.
 
 
 

 
*3: O Assassino do Zodíaco (em inglês: Zodiac Killer), retratado no filme Zodíaco (2007), de David Fincher, é o pseudônimo de um assassino serial que atuou no Norte da Califórnia, nos EUA, no final da década de 1960. Teve quatorze vítimas reconhecidas em Benicia, Vallejo, Lago Berryessa, e San Francisco, mortas entre dezembro de 1968 e outubro de 1969. Ele assinou com o nome que criou para si uma série de cartas ameaçadoras que enviou à imprensa até 1974. Seus crimes são descritos como o caso de assassinatos não resolvido mais famoso dos EUA, devido a falta de precisão no número de vítimas, às cartas criptografadas que ainda não foram decifradas e a falha na busca de suspeitos. O caso é considerado por muitos como um crime perfeito e tornou-se um elemento recorrente na cultura pop, inspirando filmes, episódios de seriados de televisão, romances e videogames. O caso permanece em aberto até hoje. 
 

 
 

 
*4: Emo ou emocore é um gênero de rock surgido no final dos anos 80. Uma variação do hardcore com letras emotivas e confessionais. Seus fãs são  reconhecidos por ter os olhos carregados de lápis preto, cabelo completamente colorido e por suas roupas acompanhadas de spikes, tachinhas e elementos quadriculados. Elementos da cultura pop, como Jack Esqueleto de O Estranho Mundo de Jack (1993) acabaram tornando-se marca registrada do grupo, além de suas roupas pretas acompanhadas de estampas de caveiras ou camisetas de bandas do gênero. que fizeram sucesso no movimento. Muitos deles são conhecidos por serem introvertidos e por isso ter grande dificuldade de fazer amizade.
 
 

 
*5: Clark Bartram, modelo e campeão de fitness, estrelou o fanfilm Batman: Dead End (2003), dirigido por Sandy Collora (diretor, designer e técnico de efeitos especiais). Nele, o herói, ao perseguir o Coringa (Andrew Koenig) que fugira do Asilo Arkhan, se depara com Aliens e Predadores, num duelo fatal. O diretor e Clark  ainda se reuniriam em World´s Finnest (2004), fanfilm feito em formato de um trailer fictício de um filme que reuniria Batman (Bartram) e Superman (Michael O´Hearn) contra Lex Luthor (Kurt Carley) e Duas-Caras (Michael Antonik).
 
 

 
*6: Slasher movies é um subgênero do cinema de horror surgido no início dos anos 1970, protagonizado por criminosos homicidas que saem fatiando jovens e quem passar pelo caminho. Os filmes O Massacre da Serra Elétrica (1974), Halloween (1978), Sexta-Feira 13 (1980) são os maiores expoentes do estilo e Pânico (1996) e Jogos Mortais (2004) figuram como exemplos de atualizações de seus conceitos.
 
 

 
*7: Christine, o Carro Assassino (1984), de John Carpenter (Fuga de Nova York), é um filme baseado num livro de Stephen King que conta a história de um jovem tímido que compra e reforma um velho Plymouth 1955 que é possuído pelo espírito de seu dono original, desenvolvendo uma relação destrutiva com todos à sua volta.
 
 
 

 
 

"- É comigo ???"


domingo, 6 de março de 2022

Correndo atrás do amor - Crítica - Filmes: Licorice Pizza (2021)


Essa é a mulher com quem vou me casar”

 
por Alexandre César

Paul Thomas Anderson aposta na poesia e no lirismo e acerta em cheio

 

 

O diálogo do título desta crítica é dito por Gary Valentine (o estreante Cooper Hoffman em ótima performance) ao conhecer Alana Kane (Alana Haim de Haim The Steps) durante a sessão de fotos do anuário de formatura de sua turma de colégio. Ele, com quinze anos; ela com vinte e cinco. Algo que remete ao nosso conhecido hit “Eduardo e Mônica” do Legião Urbana, só que ambientado em Encino, na Los Angeles do início dos anos 1970, com o melhor que a música do período pode proporcionar. Ele é sonhador, trabalhando em peças musicais e anúncios, mas decidido e de espírito empreendedor, disposto a encarar todas as situações que surgirem, caindo, levantando-se e começando tudo de novo, pois o que lhe importa é continuar, ganhar dinheiro, e garantir o seu lugar ao sol*1. Ela, a indecisa filha mais nova de três, de uma família judia de classe média-baixa, que compreende a vida da uma forma mais amarga e ácida.

 

Alana Kane (Alana Haim) e Gary Valentine (o estreante Cooper Hoffman) se conhecem numa sessão de fotos do anuário escolar da escola em que ele estuda

 

Desse encontro de personalidades distintas surge um dos grandes filmes desse ano (2021) que findou, explorando o primeiro amor desse casal completamente disfuncional, que não é nenhum ícone-padrão de beleza, mas cuja química é construída ao longo da narrativa de uma maneira que encanta a plateia, nos deixando ao final com uma sensação de leveza, e com um sorriso bobo nos lábios. Quem nunca teve um amor à primeira vista na juventude? 

 

O rapaz se encanta com a garota mais velha, e ao longo do filme não cansará de cortejá-la
Gary propoe a Alana que trabalhe com ele, pois planos não lhe faltam

 

 Escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson (Boogie Nights — Prazer Sem Limites) Licorice Pizza (2021) atesta a sua expertise em levar o espectador ao universo que está propondo, partindo do momento em que Gary enxerga Alana, e desta deixa, surgem uma sucessão de acontecimentos que tornariam quaisquer experiências cinematográficas difíceis de engolir, não fosse a vida tão cheia desses encadeamentos de absurdos... A despeito da diferença de idade dos protagonistas soar inicialmente estranha para um romance, a direção desenvolve um singelo, autêntico e volátil amor platônico.

 

Em bora trabalhe no escritório de sua mãe (Mary Elizabeth Ellis), Gary ambiciona ter o seu próprio negócio

A química entre o casal protagonista é ótima, sendo Hoffman (mostrando ter herdado o talento do pai, o falecido Phillip Seymour Hoffman de O Mestre) o jovem decidido, que muda os trilhos da vida de Alana desde que botou seus olhos nela e cujo olhar é sempre repleto de afeto e desejo, e Haim sendo uma força da natureza, de personalidade explosiva e tão perdida quanto doce, que transita de um espaço a outro com magnetismo*2. Aliás, além dos excelentes protagonistas, e de um elenco ótimo de apoio, o filme conta com participações especiais, destacando-se as que envolvem figuras bizarras do meio artístico, como o ator Jack Holden (Sean Penn de Milk: A Voz da Igualdade divertido) que parece um mix de William Holden com Steve McQueen, ou o desequilibrado produtor Jon Peters (Bradley Cooper de O Beco do Pesadelo, hilário), e principalmente, numa entrevista de Alana com Mary Grady (Harriet Sansom Harris de Hollywood) uma agente maníaca – personagens cujos close-ups enfatizam o humor facial e as besteiras que dizem (e que são muitas). 

 

Numa feira adolescente (uma pré-Comic-Con) Gary monta um stand para vender colchões dágua, uma novidade que virou febre no período

As convenções da época eram bem informais e sendo bastante improvisadas em comparação com as atuais 

 

Outro fato que fará com que o espectador se prenda à história é a edição de Andy Jurgensen (Anima), que potencializa o fluxo narrativo do roteiro de Anderson, que está mais interessado em simplesmente escrever sobre esses indivíduos, como eles são, o que eles fazem, suas ações e reações, e como se relacionam com as pessoas e o ambiente ao seu redor, do que oferecer uma trama, digamos, objetiva, fazendo com que a passagem do tempo seja sentida pelas ações de Gary e Alana. Ele, sempre insistindo em conquistá-la; ela, sempre se esquivando dele, por considerar o jovem imaturo demais, novo demais, chato demais, empreendedor demais (me lembrei um pouquinho da relação de Pepe Le Pew*3 com a gata), tendo uma leve desaceleração no segundo ato, quando ambos tentam seguir seus caminhos, tentando alcançar o “American dream way of life” (essa utopia que leva muitos para o moedor de carne).

 

Um dos clientes de Gary é o produtor  da "pá-virada" Jon Peters (Bradley Cooper)

 

E neste “pingue-pongue”, as desculpas seguem ao longo das 2 horas e 13 minutos do filme. Porém, enquanto ambos se aproximam e se afastam, salvando-se um ao outro de algumas “roubadas” *4 colocadas pela vida, persistindo um tom sempre dinâmico que dá gosto de acompanhar a narrativa. 

 

Caras mais velhos: Lance (Skyler Gisondo) chega brevemente a namorar Alana, para ciúme de Gary, mas o relacionamento não vai muito adiante...

... e Alana chega a flertar com o astro Jack Holden (Sean Penn) um narcisista incorrigível

Como de hábito em seus filmes, a fotografia do próprio Anderson e de Michael Bauman (The Kirkie) parece contar a história ao lado do espectador, transitando entre diferentes formas de romance , ora tendo a beleza estética e pureza das conversações reminiscentes dos romances da Hollywood clássica; a inocência de um primeiro amor por parte de Gary; a curiosidade de Alana por esse menino estranho e elogioso; o início de uma amizade tirada dos constrangimentos e descobertas de coming-of-ages; e o espelhamento da sequência final quando ambos correm (e correm...) um em busca do outro que, se fosse mais longa acabaria lembrando a sequência das escadarias da Filadélfia de Rocky, um Lutador (1976) de Jonh G. Avildsen.


Gary (no auge da moda) finalmente monta um negócio próprio, mas sente a falta de Alana na noite da inauguração


Visualmente rico em sua viagem no tempo, o filme tem o nome perfeito*5, em vista de seu significado ser tão aberto ao mesmo tempo carinhoso, com o casal improvável, acenando à punção de vida da juventude, o que é traduzido pelo excelente desenho de produção de Florencia Martin (Cherry) que recriam a Los Angeles setentista, plena de referências cinematográficas, que a direção de arte de Samantha Englender (Future Man) e Morgan Lindsey Price (The L Word: Generation Q)  complementa com o contexto político e econômico (como a questão da crise do petróleo*6) do período.  As equipes de decoração de sets chefiadas por Shaun Young (Eternos) Ryan Watson (GLOW) e Jeremy Cisneros (Algumas Garotas) resgatam os elementos kitsch que tanto retratavam a beleza brega da época, coisa que os efeitos visuais de Crafty Apes, supervisionados por Laura J. Hill (Doutor Sono) complementam na ampliação dos ambientes e no ajuste da palheta e cores e saturação da fotografia, resgatando esse mundo do ápice e, início do declínio do Império Americano.

 

"Pinball Arcade" de Fat Bernie, o segundo empreendimento de Gary neste mesmo espaço de negócios, após ter sido uma loja de colchões de água


A equipe de direção de arte  penou para conseguir Pinballs em boas condições de uso para a filmagem

 Na mesma linha, os figurinos de Mark Bridges (Coringa) resgatam as cores, texturas e materiais dos anos 70 em seus exotismos, exageros e a cafonália para os nosso olhar atual (daqui a trinta, cinquenta anos, como será que estarão vendo a nossa época e moda???) embalada pela trilha musical de Jonny Greenwood (Trama Fantasma) que cria inteligentemente a atmosfera de acordo com o tom de cada “episódio”,  da trama - seja dramático ou cômico – que a  supervisão musical  de Linda Cohen (Bar Doce Lar) acrescenta  músicas, que merecem ser apreciadas com calma, transmitindo a vibração dos anos 70 de forma essencial para embarcar nos sentimentos propostos com  canções como “July Tree” cantada por Nina Simone; ”I Whished On The Moon” por Rahsaan Roland Kirk;  “I Left My Heart In San Francisco”, “Sometimes I´m Happy”, “Gypsy in My Soul”, “You´ll Never Know” por Johnny Guarnieri; “Stumlin´In” por Suzi Quatro & Chris Norman; “At the Crossroads” por George Hamilton; “Ac-Cent-Tchu-Ate The Positive” por Bing Crosby; “13 Questions” por Seatrain; “Blue Sands” por Chico Hamilton; “But You´re Mine” por Sonny & Cher; “My Ding-A-Ling” por Chuck Berry; “Peace Frog” por The Doors; “If You Could Read My Mind” por Gordon Lightfoot; “Let Me Roll It” por Paul McCartney & Wings; “Life on Mars?” por David Bowie; “Slip Away” por Clarence Carter; ”7-Rooms Of Gloom” por Four Tops; “Greensleeves” por Mason Williams; “Barabajagal” por Donovan Leitch; “Walk Away” por The James Gang; “The Horse” por Cliff Nobles, ”Lisa, Listen to Me” por Blood, Sweat & Tears; “Tomorrow May Not Be Your Day” por Taj Mahal, dentre muuitas outras, aderindo ao Soul para manter o espírito groove da época.

 

Ao final, o casal sai correndo em busca um do outro e se encontram diante de um cinema onde está passando "Com 007 Viva e Deixe Morrer" (1973) de Guy Hamilton

Ao final, Licorice Pizzase firma como um fantástico trabalho de Paul Thomas Anderson que mostra uma perspectiva diferente daquelas que lhe são mais características, apostando mais num enfoque gentil e doce, sendo um filme sobre uma era, e sobre dois jovens vivendo nela e se conhecendo, e acima de tudo, sobre o sentimento e o laço que se forma entre eles. Eles vivem roubadas e aventuras juntos e se apaixonam. E à medida que também os conhecemos, rimos e nos divertimos das suas situações que atravessam uma jornada de memória e nostalgia, não tão diferente do que fazemos quando sentamos com amigos para relembrar histórias malucas (talvez as contando com exageros ou olhando o passado com lentes mágicas).

 

Família unida: Alana Haim e seus familiares na tela e na vida:As irmãs Danielle, Este e a mãe Donna e o pai Moti Haim


 No fim, eles se sentem tão conectados que precisam correr um atrás do outro de novo e de novo e de novo (e como eles correm...). Gary e Alana estão agora marcados na Sétima Arte como protagonistas de uma das suas melhores histórias de amor, única em seu paladar como uma pizza de alcaçuz. Afinal, por aqui nos rodízios de pizzas já estamos mais do que acostumados a pizzas doces e salgadas, dos sabores mais variados...

 

Ao fim, eles correram, correram, e se deram conta e que queriam ficar juntos!!!


 

Notas:

 

O jovem  e o adulto Gary Goetzman. No centro, o personagem

 

*1: O personagem Gary é baseado nas memórias de Paul Thomas Anderson e nas de Gary Goetzman – parceiro de produção de Tom Hanks, cuja carreira no showbiz começou ainda na adolescência, e retrata indiretamente em seu perfil, a indústria cinematográfica emergente da Nova Hollywood, sendo corajoso, inovador e com uma inteligência além de seus anos, tendo uma visão do sucesso capitalista, cuja maturidade precoce torna o romance com Alana mais natural. 

 

Alana e o astro Jack Holden (Sean Penn)

*2: Alana trilha uma interessante e complexa jornada de autodescoberta, revelando como os homens a veem (praticamente todas as figuras masculinas da obra a desejam e a descartam), incluindo uma sequência em que ela se sente sensual ao usar biquínis para vender colchões de água e logo entende como foi objetificada. A jovem também passa o filme todo testando novas profissões e estilos de vestimenta, tentando descobrir sua vocação e personalidade em meio a um universo masculino que sempre ignora seus desejos.

 


*3: Pepe Le Pew é um personagem animado que é um gambá francês cuja paixonite e total ausência de semancol o leva a sempre perseguir uma gata preta (que sempre acaba com uma faixa branca pintada nas suas costas) e que ele acredita ser uma fêmea da sua espécie. A Warner Bros recentemente resolveu cancelar o personagem por conta de declarações de grupos que alegam ser o personagem uma glamourização da cultura do estupro, apesar do personagem sempre se dar mal em cerca de 90 % dos desenhos.

 

*4: É particularmente assustador quando Gary e amigos estão montando um stand na teen age fair, uma feira adolescente (uma “Pré Comic-Con”) e surgem dois guardas que o prendem de forma brutal por corresponder à descrição de um suspeito de assassinato, sendo logo depois solto pelo engano sem um único pedido de desculpas. Coisa de polícia... 

 

*5: “Licorice Pizza” traduzindo do inglês seria “Pizza de Alcaçuz”. O regaliz (Glycyrrhiza glabra L.) ou alcaçuz é uma espécie de planta com flor pertencente à família Fabaceae. Possui raízes adocicadas, ricas em glicirrizina (Ácido glicosídico cristalino, C42H62O16, que é o constituinte doce de sua raiz) e das quais se extrai um xarope usado em confeitaria, em medicamentos para tosse e na produção de alguns tipos de cerveja. Fonte: Wikipédia https://pt.wikipedia.org/wiki/Regaliz

 

*6: Em outubro de 1973, os países árabes exportadores proclamaram um embargo às nações aliadas de Israel na Guerra do Yom Kipur, conflito militar entre estados árabes liderados por Egito e Síria contra Israel. Em cinco meses de embargo, o preço do barril de petróleo subiu de três dólares para 12 dólares (cerca de  400%) no mundo inteiro.

 

Capa do CD da trilha sonora do filme, imitando um pinball