domingo, 6 de março de 2022

Correndo atrás do amor - Crítica - Filmes: Licorice Pizza (2021)


Essa é a mulher com quem vou me casar”

 
por Alexandre César

Paul Thomas Anderson aposta na poesia e no lirismo e acerta em cheio

 

 

O diálogo do título desta crítica é dito por Gary Valentine (o estreante Cooper Hoffman em ótima performance) ao conhecer Alana Kane (Alana Haim de Haim The Steps) durante a sessão de fotos do anuário de formatura de sua turma de colégio. Ele, com quinze anos; ela com vinte e cinco. Algo que remete ao nosso conhecido hit “Eduardo e Mônica” do Legião Urbana, só que ambientado em Encino, na Los Angeles do início dos anos 1970, com o melhor que a música do período pode proporcionar. Ele é sonhador, trabalhando em peças musicais e anúncios, mas decidido e de espírito empreendedor, disposto a encarar todas as situações que surgirem, caindo, levantando-se e começando tudo de novo, pois o que lhe importa é continuar, ganhar dinheiro, e garantir o seu lugar ao sol*1. Ela, a indecisa filha mais nova de três, de uma família judia de classe média-baixa, que compreende a vida da uma forma mais amarga e ácida.

 

Alana Kane (Alana Haim) e Gary Valentine (o estreante Cooper Hoffman) se conhecem numa sessão de fotos do anuário escolar da escola em que ele estuda

 

Desse encontro de personalidades distintas surge um dos grandes filmes desse ano (2021) que findou, explorando o primeiro amor desse casal completamente disfuncional, que não é nenhum ícone-padrão de beleza, mas cuja química é construída ao longo da narrativa de uma maneira que encanta a plateia, nos deixando ao final com uma sensação de leveza, e com um sorriso bobo nos lábios. Quem nunca teve um amor à primeira vista na juventude? 

 

O rapaz se encanta com a garota mais velha, e ao longo do filme não cansará de cortejá-la
Gary propoe a Alana que trabalhe com ele, pois planos não lhe faltam

 

 Escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson (Boogie Nights — Prazer Sem Limites) Licorice Pizza (2021) atesta a sua expertise em levar o espectador ao universo que está propondo, partindo do momento em que Gary enxerga Alana, e desta deixa, surgem uma sucessão de acontecimentos que tornariam quaisquer experiências cinematográficas difíceis de engolir, não fosse a vida tão cheia desses encadeamentos de absurdos... A despeito da diferença de idade dos protagonistas soar inicialmente estranha para um romance, a direção desenvolve um singelo, autêntico e volátil amor platônico.

 

Em bora trabalhe no escritório de sua mãe (Mary Elizabeth Ellis), Gary ambiciona ter o seu próprio negócio

A química entre o casal protagonista é ótima, sendo Hoffman (mostrando ter herdado o talento do pai, o falecido Phillip Seymour Hoffman de O Mestre) o jovem decidido, que muda os trilhos da vida de Alana desde que botou seus olhos nela e cujo olhar é sempre repleto de afeto e desejo, e Haim sendo uma força da natureza, de personalidade explosiva e tão perdida quanto doce, que transita de um espaço a outro com magnetismo*2. Aliás, além dos excelentes protagonistas, e de um elenco ótimo de apoio, o filme conta com participações especiais, destacando-se as que envolvem figuras bizarras do meio artístico, como o ator Jack Holden (Sean Penn de Milk: A Voz da Igualdade divertido) que parece um mix de William Holden com Steve McQueen, ou o desequilibrado produtor Jon Peters (Bradley Cooper de O Beco do Pesadelo, hilário), e principalmente, numa entrevista de Alana com Mary Grady (Harriet Sansom Harris de Hollywood) uma agente maníaca – personagens cujos close-ups enfatizam o humor facial e as besteiras que dizem (e que são muitas). 

 

Numa feira adolescente (uma pré-Comic-Con) Gary monta um stand para vender colchões dágua, uma novidade que virou febre no período

As convenções da época eram bem informais e sendo bastante improvisadas em comparação com as atuais 

 

Outro fato que fará com que o espectador se prenda à história é a edição de Andy Jurgensen (Anima), que potencializa o fluxo narrativo do roteiro de Anderson, que está mais interessado em simplesmente escrever sobre esses indivíduos, como eles são, o que eles fazem, suas ações e reações, e como se relacionam com as pessoas e o ambiente ao seu redor, do que oferecer uma trama, digamos, objetiva, fazendo com que a passagem do tempo seja sentida pelas ações de Gary e Alana. Ele, sempre insistindo em conquistá-la; ela, sempre se esquivando dele, por considerar o jovem imaturo demais, novo demais, chato demais, empreendedor demais (me lembrei um pouquinho da relação de Pepe Le Pew*3 com a gata), tendo uma leve desaceleração no segundo ato, quando ambos tentam seguir seus caminhos, tentando alcançar o “American dream way of life” (essa utopia que leva muitos para o moedor de carne).

 

Um dos clientes de Gary é o produtor  da "pá-virada" Jon Peters (Bradley Cooper)

 

E neste “pingue-pongue”, as desculpas seguem ao longo das 2 horas e 13 minutos do filme. Porém, enquanto ambos se aproximam e se afastam, salvando-se um ao outro de algumas “roubadas” *4 colocadas pela vida, persistindo um tom sempre dinâmico que dá gosto de acompanhar a narrativa. 

 

Caras mais velhos: Lance (Skyler Gisondo) chega brevemente a namorar Alana, para ciúme de Gary, mas o relacionamento não vai muito adiante...

... e Alana chega a flertar com o astro Jack Holden (Sean Penn) um narcisista incorrigível

Como de hábito em seus filmes, a fotografia do próprio Anderson e de Michael Bauman (The Kirkie) parece contar a história ao lado do espectador, transitando entre diferentes formas de romance , ora tendo a beleza estética e pureza das conversações reminiscentes dos romances da Hollywood clássica; a inocência de um primeiro amor por parte de Gary; a curiosidade de Alana por esse menino estranho e elogioso; o início de uma amizade tirada dos constrangimentos e descobertas de coming-of-ages; e o espelhamento da sequência final quando ambos correm (e correm...) um em busca do outro que, se fosse mais longa acabaria lembrando a sequência das escadarias da Filadélfia de Rocky, um Lutador (1976) de Jonh G. Avildsen.


Gary (no auge da moda) finalmente monta um negócio próprio, mas sente a falta de Alana na noite da inauguração


Visualmente rico em sua viagem no tempo, o filme tem o nome perfeito*5, em vista de seu significado ser tão aberto ao mesmo tempo carinhoso, com o casal improvável, acenando à punção de vida da juventude, o que é traduzido pelo excelente desenho de produção de Florencia Martin (Cherry) que recriam a Los Angeles setentista, plena de referências cinematográficas, que a direção de arte de Samantha Englender (Future Man) e Morgan Lindsey Price (The L Word: Generation Q)  complementa com o contexto político e econômico (como a questão da crise do petróleo*6) do período.  As equipes de decoração de sets chefiadas por Shaun Young (Eternos) Ryan Watson (GLOW) e Jeremy Cisneros (Algumas Garotas) resgatam os elementos kitsch que tanto retratavam a beleza brega da época, coisa que os efeitos visuais de Crafty Apes, supervisionados por Laura J. Hill (Doutor Sono) complementam na ampliação dos ambientes e no ajuste da palheta e cores e saturação da fotografia, resgatando esse mundo do ápice e, início do declínio do Império Americano.

 

"Pinball Arcade" de Fat Bernie, o segundo empreendimento de Gary neste mesmo espaço de negócios, após ter sido uma loja de colchões de água


A equipe de direção de arte  penou para conseguir Pinballs em boas condições de uso para a filmagem

 Na mesma linha, os figurinos de Mark Bridges (Coringa) resgatam as cores, texturas e materiais dos anos 70 em seus exotismos, exageros e a cafonália para os nosso olhar atual (daqui a trinta, cinquenta anos, como será que estarão vendo a nossa época e moda???) embalada pela trilha musical de Jonny Greenwood (Trama Fantasma) que cria inteligentemente a atmosfera de acordo com o tom de cada “episódio”,  da trama - seja dramático ou cômico – que a  supervisão musical  de Linda Cohen (Bar Doce Lar) acrescenta  músicas, que merecem ser apreciadas com calma, transmitindo a vibração dos anos 70 de forma essencial para embarcar nos sentimentos propostos com  canções como “July Tree” cantada por Nina Simone; ”I Whished On The Moon” por Rahsaan Roland Kirk;  “I Left My Heart In San Francisco”, “Sometimes I´m Happy”, “Gypsy in My Soul”, “You´ll Never Know” por Johnny Guarnieri; “Stumlin´In” por Suzi Quatro & Chris Norman; “At the Crossroads” por George Hamilton; “Ac-Cent-Tchu-Ate The Positive” por Bing Crosby; “13 Questions” por Seatrain; “Blue Sands” por Chico Hamilton; “But You´re Mine” por Sonny & Cher; “My Ding-A-Ling” por Chuck Berry; “Peace Frog” por The Doors; “If You Could Read My Mind” por Gordon Lightfoot; “Let Me Roll It” por Paul McCartney & Wings; “Life on Mars?” por David Bowie; “Slip Away” por Clarence Carter; ”7-Rooms Of Gloom” por Four Tops; “Greensleeves” por Mason Williams; “Barabajagal” por Donovan Leitch; “Walk Away” por The James Gang; “The Horse” por Cliff Nobles, ”Lisa, Listen to Me” por Blood, Sweat & Tears; “Tomorrow May Not Be Your Day” por Taj Mahal, dentre muuitas outras, aderindo ao Soul para manter o espírito groove da época.

 

Ao final, o casal sai correndo em busca um do outro e se encontram diante de um cinema onde está passando "Com 007 Viva e Deixe Morrer" (1973) de Guy Hamilton

Ao final, Licorice Pizzase firma como um fantástico trabalho de Paul Thomas Anderson que mostra uma perspectiva diferente daquelas que lhe são mais características, apostando mais num enfoque gentil e doce, sendo um filme sobre uma era, e sobre dois jovens vivendo nela e se conhecendo, e acima de tudo, sobre o sentimento e o laço que se forma entre eles. Eles vivem roubadas e aventuras juntos e se apaixonam. E à medida que também os conhecemos, rimos e nos divertimos das suas situações que atravessam uma jornada de memória e nostalgia, não tão diferente do que fazemos quando sentamos com amigos para relembrar histórias malucas (talvez as contando com exageros ou olhando o passado com lentes mágicas).

 

Família unida: Alana Haim e seus familiares na tela e na vida:As irmãs Danielle, Este e a mãe Donna e o pai Moti Haim


 No fim, eles se sentem tão conectados que precisam correr um atrás do outro de novo e de novo e de novo (e como eles correm...). Gary e Alana estão agora marcados na Sétima Arte como protagonistas de uma das suas melhores histórias de amor, única em seu paladar como uma pizza de alcaçuz. Afinal, por aqui nos rodízios de pizzas já estamos mais do que acostumados a pizzas doces e salgadas, dos sabores mais variados...

 

Ao fim, eles correram, correram, e se deram conta e que queriam ficar juntos!!!


 

Notas:

 

O jovem  e o adulto Gary Goetzman. No centro, o personagem

 

*1: O personagem Gary é baseado nas memórias de Paul Thomas Anderson e nas de Gary Goetzman – parceiro de produção de Tom Hanks, cuja carreira no showbiz começou ainda na adolescência, e retrata indiretamente em seu perfil, a indústria cinematográfica emergente da Nova Hollywood, sendo corajoso, inovador e com uma inteligência além de seus anos, tendo uma visão do sucesso capitalista, cuja maturidade precoce torna o romance com Alana mais natural. 

 

Alana e o astro Jack Holden (Sean Penn)

*2: Alana trilha uma interessante e complexa jornada de autodescoberta, revelando como os homens a veem (praticamente todas as figuras masculinas da obra a desejam e a descartam), incluindo uma sequência em que ela se sente sensual ao usar biquínis para vender colchões de água e logo entende como foi objetificada. A jovem também passa o filme todo testando novas profissões e estilos de vestimenta, tentando descobrir sua vocação e personalidade em meio a um universo masculino que sempre ignora seus desejos.

 


*3: Pepe Le Pew é um personagem animado que é um gambá francês cuja paixonite e total ausência de semancol o leva a sempre perseguir uma gata preta (que sempre acaba com uma faixa branca pintada nas suas costas) e que ele acredita ser uma fêmea da sua espécie. A Warner Bros recentemente resolveu cancelar o personagem por conta de declarações de grupos que alegam ser o personagem uma glamourização da cultura do estupro, apesar do personagem sempre se dar mal em cerca de 90 % dos desenhos.

 

*4: É particularmente assustador quando Gary e amigos estão montando um stand na teen age fair, uma feira adolescente (uma “Pré Comic-Con”) e surgem dois guardas que o prendem de forma brutal por corresponder à descrição de um suspeito de assassinato, sendo logo depois solto pelo engano sem um único pedido de desculpas. Coisa de polícia... 

 

*5: “Licorice Pizza” traduzindo do inglês seria “Pizza de Alcaçuz”. O regaliz (Glycyrrhiza glabra L.) ou alcaçuz é uma espécie de planta com flor pertencente à família Fabaceae. Possui raízes adocicadas, ricas em glicirrizina (Ácido glicosídico cristalino, C42H62O16, que é o constituinte doce de sua raiz) e das quais se extrai um xarope usado em confeitaria, em medicamentos para tosse e na produção de alguns tipos de cerveja. Fonte: Wikipédia https://pt.wikipedia.org/wiki/Regaliz

 

*6: Em outubro de 1973, os países árabes exportadores proclamaram um embargo às nações aliadas de Israel na Guerra do Yom Kipur, conflito militar entre estados árabes liderados por Egito e Síria contra Israel. Em cinco meses de embargo, o preço do barril de petróleo subiu de três dólares para 12 dólares (cerca de  400%) no mundo inteiro.

 

Capa do CD da trilha sonora do filme, imitando um pinball



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