A volta triunfal do Morcego
por Alexandre César
Matt Reeves prioriza o conceito à frente da interpretação
Obs: texto com alguns spoilers.
Desde que surgiu em maio de 1939 na revista Detective Comics n° 27*1, Batman, ‘O Campeão de Gothan’, ‘O Maior Detetive do Mundo’, ‘O Cavaleiro das Trevas’, entre tantos outros epítetos, foi conquistando outras mídias nestes 83 anos existência, além de prosseguir a sua carreira vitoriosa nos quadrinhos. Como todo produto de cultura de massas, seu visual e suas características distintas foram o resultado da fusão de várias influências*2 que acabaram por lhe dar uma personalidade única, sendo referencial para a criação de inúmeros outros personagens.
À noite um sinal nos céus de Gothan, alertando os meliantes que o predador está à solta |
Além dos quadrinhos, a sua trajetória foi marcante nas animações, nos seriados, nos games e no cinema, tendo sido objeto de vários cineastas e atores que, no somatório, deram cada um a sua interpretação do personagem, refletindo a época, o mundo e as forças econômicas que o moviam. De sucessos absolutos, passando por fracassos e versões relativamente bem-sucedidas, mas que geraram controvérsias entre os fãs, por onde passasse a sombra do morcego a única coisa que não gerava era indiferença.
Prefeito Don Mitchell (Rupert Penry-Jones) é encontrado morto por seu filhinho |
O Tenente James Gordon (Jeffrey Wright) pede ajuda à Batman (Robert Pattinson) para resolver o caso, apesar da oposição da polícia |
Dirigido por Matt Reeves (Planeta dos Macacos: A Guerra, de 2017, e O Batman, de 2022) traz uma narrativa de suspense com forte inclinação noir, se preocupando em primeiramente estabelecer conceitualmente “o que é o Batman” e depois sim, fazer a sua interpretação pessoal do Batman. Isso cria um grande diferencial em relação aos diretores dos filmes anteriores, que sempre colocaram primeiro a sua interpretação e assinatura na frente da conceituação. Com seu ritmo lento, mas nunca parando, indo num crescendo gradativo graças à edição de William Hoy (Planeta dos Macacos: A Guerra) e Tyler Nelson (Contos do Loop), o filme conta em suas quase três horas uma trama investigativa plena de momentos marcantes, rivalizando com Batman - O Cavaleiro das Trevas (2008) de Christopher Nolan, apesar de tomar rumos distintos.
O roteiro de Matt Reeves e Peter Craig (Atração Perigosa) resgata uma das facetas mais esquecidas do personagem em suas encarnações pregressas: Batman, o Detetive, privilegiando a sua capacidade analítica, reduzindo a importância de apresentar gadgets mirabolantes (mas eles aparecem, de acordo com a necessidade funcional da história) ou de resolver tudo na base do combate físico (e olha que ele bate, e muito...), investindo no lado investigativo e flertando bastante com o horror, construindo tal sentimento através de sons e na construção de uma atmosfera sufocante que tudo parece sempre acontecer à noite, com poucas luzes e chovendo quase sem parar. Isso é definindo logo nas primeiras cenas, usando o suspense para ilustrar o medo palpável que o bat-sinal causa nos meliantes (a primeira aparição do Batman é de gelar o sangue) e mostrar a cidade de Gotham como o habitat de caos social, como uma comunidade econômica, moral e socialmente estagnada, exalando um clima de desilusão que contamina seus habitantes e gera seres como o Batman, Charada, Duas-Caras, Coringa e tantos outros desta extensa galeria de personagens.
Acompanhamos neste filme Batman / Bruce Wayne (Robert Pattinson, de O Farol, de 2019, em intensa performance) no seu segundo ano de carreira contra o crime, ainda aprendendo aos trancos e barrancos, a “ser o Batman” e o que isto significa, com direito aos erros próprios da inexperiência e da juventude. Aqui ele já conquistou a confiança do Tenente James Gordon (Jeffrey Wright, de Westworld , ótimo como sempre), tendo forjado com ele uma aliança (que é bastante testada no filme). A dupla une esforços para investigar o misterioso assassinato do Prefeito Don Mitchell (Rupert Penry-Jones, de The Commons), candidato à reeleição cujo passado foi exposto por um vídeo postado na web, revelando suas ligações com Carmine Falcone (John Turturro, de Ruptura, perfeito como um escroque mafioso), líder todo-poderoso da máfia local. O video também apresenta uma uma ligação indiscreta do prefeito com uma scort girl desaparecida (Iana Saliuk, de Ganapath), amiga da bela Selina Kyle (Zoë Kravitz, de Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald, naturalmente sensual até a medula), que trabalha no clube privê administrado por Oswald Cobblepot / Pinguin (Collin Farrell, de Magnatas do Crime, numa performance promissora).
À medida que suas pesquisas avançam, o recluso herdeiro/justiceiro, que praticamente não sai de casa durante o dia (como um vampiro ou, como ele mesmo reconhece, um animal noturno), vai esbarrando com ligações entre a família Wayne e Carmine Falcone. Isso o leva a questionar o passado de seu pai, à despeito do que o fiel Alfred Pennyworth (Andy Serkis, de Planeta dos Macacos: A Origem, numa caracterização interessante) sempre lhe ensinara.
A ligação de Batman com Selina ocorre de forma orgânica, com ela auxiliando-o a espionar o Iceberg Lounge (o clube de Falcone) e sua clientela. Entre os frequentadores está o Promotor Gil Colson (Peter Sarsgaard, de A Filha Perdida), cuja presença acaba desencadeado uma sequência de fatos que levam ao confronto entre Batman e Edward Nashton/ Charada (Paul Dano, de Sangue Negro, assustador em sua interpretação). A caracterização desse antagonista nos remete ao Assassino do Zodíaco*3 e seus planos se revelam mais assustadores do que aparentavam.
Robert Pattinson, que já havia deixado o vampiro Edward para trás há muito tempo, domina o filme em cada cena. Ainda que os personagens à sua volta sejam bem definidos e com o tempo necessário para que os entendamos, o personagem principal nunca sai de foco, deixando assim de lado o ‘calcanhar de Aquiles’ de boa parte dos filmes anteriores do herói, onde aconteciam aquela história do ‘vilão roubando o filme’. A despeito de termos um Bruce Wayne recluso, reservado e depressivo (chegando próximo de um ‘emo’*4...), não muito diferente do próprio Batman, destoando do que já está estabelecido no imaginário dos fãs ou mesmo dos que conhecem o personagem superficialmente. Diferente de Superman (que é a máscara que Clark Kent usa para ajudar as pessoas), Bruce Wayne é que seria a máscara através da qual Batman se esconde do mundo (algo que o próprio Charada observa no filme) e, por isso, deveria adotar aquele perfil de playboy frívolo para desviar suspeitas. Podemos especular que, como aqui ainda se está num processo de construção de personas, ainda deveremos futuramente ver esta dualidade se formar.
Bruce Wayne descobre ligações de seu pai com o poderoso Carmine Falcone (John Turturro) chefe da máfia, e de Oswald Cobllepot |
Embora o ator esteja em ótima forma, e com uma intensa fisicalidade (nas cenas de luta em especial), aqui temos uma versão mais light do personagem, remetendo aos desenhos de Ernie Chua, Jim Aparo, José Luiz Garcia Lopez e Neal Adams. Bem diferente do perfil parrudo de Christian Bale e Ben Affleck, que dialogam mais com a visão nos quadrinhos de Bernie Wrightson e Frank Miller. É claro que, desde Batman (1989), de Tim Burton, aceitamos que o combatente do crime tem de adotar um traje tático que proteja o seu corpo da grande variedade de traumas que a luta contra o crime acarreta, implicando com isso em diferentes graus de perda de mobilidade - algo que difere do icônico e cult Clark Bartram*5 que só usava a clássica malha colante, como nas HQs.
Selina, a "Gata Ladra" desenvolve uma intensa ligação com o vigilante, unindo esforços |
A incrível e atmosférica trilha musical de Michael Giacchino (Jojo Rabbit) cria um tema marcante para o personagem, com poucos acordes, mas que, repetidos, criam uma marca sonora sinistra e assustadora, similar ao tema de Tubarão (1975) ou a Marcha Imperial de Star Wars: Episódio V: O Império Contra-Ataca (1980) já figurando como um dos grandes temas do cinema por sua simplicidade impactante. Tem também o uso perturbador de Ave Maria, de Schubert, destacando a versão sinistra entoada pelo Charada que compõe bem com a imagética de Gotham. Batman sempre funcionou melhor num universo de iconografia visual católica, tal qual o Demolidor da Marvel.
O Promotor Gil Colson (Peter Sarsgaard) é capturado pelo Charada, que envia uma mensagem (e um desafio) ao Batman |
Bruce começa a montar um quadro esquemático dos alvos do Charada |
A ótima fotografia de Greig Fraser (Duna) cria uma atmosfera sufocante, de tons frios. A fotografia compõe, com o desenho de produção de James Chinlund (Planeta dos Macacos: O Confronto), ambientações carregadas por mobiliário ou elementos de cena, que a direção de arte de Grant Armstrong (Kingsman: O Círculo Dourado), James Lewis (A Fantástica Fábrica de Chocolate), Oliver Benson (Kingsman: A Origem), Trinity Tad Davis, Joseph Hiura (Pantera Negra); Gary Jopling (Missão: Impossível - Efeito Fallout), Joe Howard (Kingsman: O Círculo Dourado), Mathew Kerly (Kingsman: A Origem) e Will Newton (The Great Fire) caracterizam, dentro de um parâmetro realista, a posição social ou o estado psicológico de seus personagens. A decoração de sets de Laura Ng (Thor: Ragnarok) define bem os cenários, como o pequeno, bagunçado e cheio de roupas (e de gatos) apartamento de Selina Kyle, o Iceberg Lounge, cheio de grã-finos viciados em gota (droga sintética tipo ecstasy), a residência Wayne que remete à um mausoléu, ou os abarrotados espaços públicos, como a Chefatura de Polícia e a Catedral de Gothan, que combina com o pequeno apartamento de Edward Nashton, que (como todo apartamento de psicopata) é entulhado de elementos em todas as paredes, refletindo seus processos mentais obsessivos.
Os figurinos de Jaqueline Durran (1917), dão um ar de atemporalidade, com leves toques de anos 70, como no traje do Charada, que remete aos slasher movies*6 daquele período. Os trajes colantes de Selina Kyle (aqui, a ‘Gata-Ladra’) e o extremamente funcional e intimidante bat-traje, criado por David Crossman (Rogue One: Uma História Star Wars) e Glyn Dillon (Han Solo: Uma História Star Wars), cujos sons de couro, tecido e metal roçando enquanto o herói se move é um elemento intimidante visto nas cenas em que não vemos o Batman, mas ouvimos o seu movimento, chegando como um monstro de filme de horror. A diferença de como ele e a ‘Gata-Ladra’ se movimentam ao lutar é incrível, mostrando o contraste da fluidez sensual de uma e o brutal e mecânico jeito do outro.
Alfred Pennyworth (Andy Serkis) o fiel mordomo e ex-MI-6 que criou Bruce, protegendo o legado dos Wayne |
As cenas de ação são intensas e brutais, não deixando pedra sobre pedra |
Dentro desse parâmetro de realismo, os efeitos visuais de Scanline VFX, Industrial Light Magic (ILM), Weta Digital, Gentle Giant Studios, Halon Entertainment , Crafty Apes e Territory Studio, supervisionados por Dan Lemmon (Planeta dos Macacos: A Origem), Russell Earl (Vingadores: Ultimato), Malcolm Humphreys (Star Wars: A Ascensão Skywalker) e Dominic Tuohy (Dolittle), além de tornarem críveis os aparatos tecnológicos do herói, como o Batmóvel (um muscle car customizado digno de Chrsitine, o Carro Assassino*7), expandem satisfatoriamente a ambientação cenográfica numa escala que chama a atenção para os desastres que surgem e ocorrem de forma crível mas de aspecto sóbrio, sem passar aquela ideia de “olhem para mim, sou um incrível efeito visual, não?!”
O Batman ja figura como um dos grandes filmes do ano. Merece ser visto como uma das grandes abordagens do personagem e que abre grandes possibilidades para ele e seu leque de oponentes (já esboçado). Esperemos agora que parem de esquecer que, antes de ser o Campeão de Gotham, que luta muito, e o Cavaleiro das Trevas, cheio de brinquedos incríveis, Batman é O Maior Detetive do Mundo...
Notas:
*1: O personagem foi criado pelo escritor Bill Finger e pelo desenhista Bob Kane em 1939 com a missão de repetir o sucesso do Superman, que começara a ser publicado no ano anterior. Ele foi elaborado a pedido do editor Vin Sullivan e surgiu originalmente com o nome "Bat-Man". Sua primeira história foi The Case of the Chemical Syndicate, seguindo os parâmetros narrativos da época contidos nas revistas pulps.
*2: Batman foi influenciado em sua gênese por outros personagens, como o Zorro (do qual tirou a sua identidade secreta frívola), o Sombra (de onde veio os seus métodos justiceiros) e Drácula (com seu apelo misterioso e assustador). Também tem como referência filmes, como The Bat (1926), O Fantasma da Ópera (1925) e O Homem que ri (1928), que inspiraram elementos que formam o seu universo ficcional, como o seu visual do herói emulando um morcego, a atmosfera gótica de suas histórias e caraterísticas do seu grande arqui-inimigo, o Coringa.
*3: O Assassino do Zodíaco (em inglês: Zodiac Killer), retratado no filme Zodíaco (2007), de David Fincher, é o pseudônimo de um assassino serial que atuou no Norte da Califórnia, nos EUA, no final da década de 1960. Teve quatorze vítimas reconhecidas em Benicia, Vallejo, Lago Berryessa, e San Francisco, mortas entre dezembro de 1968 e outubro de 1969. Ele assinou com o nome que criou para si uma série de cartas ameaçadoras que enviou à imprensa até 1974. Seus crimes são descritos como o caso de assassinatos não resolvido mais famoso dos EUA, devido a falta de precisão no número de vítimas, às cartas criptografadas que ainda não foram decifradas e a falha na busca de suspeitos. O caso é considerado por muitos como um crime perfeito e tornou-se um elemento recorrente na cultura pop, inspirando filmes, episódios de seriados de televisão, romances e videogames. O caso permanece em aberto até hoje.
*4: Emo ou emocore é um gênero de rock surgido no final dos anos 80. Uma variação do hardcore com letras emotivas e confessionais. Seus fãs são reconhecidos por ter os olhos carregados de lápis preto, cabelo completamente colorido e por suas roupas acompanhadas de spikes, tachinhas e elementos quadriculados. Elementos da cultura pop, como Jack Esqueleto de O Estranho Mundo de Jack (1993) acabaram tornando-se marca registrada do grupo, além de suas roupas pretas acompanhadas de estampas de caveiras ou camisetas de bandas do gênero. que fizeram sucesso no movimento. Muitos deles são conhecidos por serem introvertidos e por isso ter grande dificuldade de fazer amizade.
*5: Clark Bartram, modelo e campeão de fitness, estrelou o fanfilm Batman: Dead End (2003), dirigido por Sandy Collora (diretor, designer e técnico de efeitos especiais). Nele, o herói, ao perseguir o Coringa (Andrew Koenig) que fugira do Asilo Arkhan, se depara com Aliens e Predadores, num duelo fatal. O diretor e Clark ainda se reuniriam em World´s Finnest (2004), fanfilm feito em formato de um trailer fictício de um filme que reuniria Batman (Bartram) e Superman (Michael O´Hearn) contra Lex Luthor (Kurt Carley) e Duas-Caras (Michael Antonik).
*6: Slasher movies é um subgênero do cinema de horror surgido no início dos anos 1970, protagonizado por criminosos homicidas que saem fatiando jovens e quem passar pelo caminho. Os filmes O Massacre da Serra Elétrica (1974), Halloween (1978), Sexta-Feira 13 (1980) são os maiores expoentes do estilo e Pânico (1996) e Jogos Mortais (2004) figuram como exemplos de atualizações de seus conceitos.
*7: Christine, o Carro Assassino (1984), de John Carpenter (Fuga de Nova York), é um filme baseado num livro de Stephen King que conta a história de um jovem tímido que compra e reforma um velho Plymouth 1955 que é possuído pelo espírito de seu dono original, desenvolvendo uma relação destrutiva com todos à sua volta.
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