sexta-feira, 4 de março de 2022

Reminiscências em meio ao conflito - Crítica - Filmes: Belfast (2021)

 


Alguém tem de abrir pubs pelo mundo...

por Alexandre César


Kenneth Branagh revisita suas raízes emocionais

 

#Oscar 2022

        Belfast - área 15, Irlanda do Norte,15 de agosto de 1969. Os irmãos Buddy (Jude Hill de Magpie Murders) e Will (Lewis McAskie de Here Before) brincam na sua rua. Sua família vive num modesto bairro (protestante em sua maioria) de classe trabalhadora, onde todos se conhecem (havendo uma profusão de “tios”, “tias”, “primos” e “primas” na vizinhança) há gerações. Muitos dos habitantes inclusive, se conheceram ainda crianças, casado e tido filhos, como no caso de seu Pai (Jamie Dornan da trilogia Cinquenta Tons de Cinza) que trabalha em Londres como carpinteiro (voltando para casa de duas em duas semanas), e sua Mãe (Caitriona Balfe de Outlander) que cuida do lar e tenta burlar as dificuldades financeiras.

 

Buddy (Jude Hill) brinca na vizinhança, se sentindo um cavaleiro andante...


 

 

Neste dia, brincando de cavaleiro, usando uma espada de madeira e uma tampa de lata e lixo como escudo, Buddy vê irromper em seu bairro uma multidão enfurecida gritando “Fora católicos!!!” e começa um turbilhão de depredações e violência, para desespero de sua Mãe, que desesperada, recolhe os filhos, e quem precisar de ajuda, para dentro de casa, evitando as janelas, enquanto carros são explodidos e moradores espancados, sejam de que religião for...

 

... e de repente, ele nota que seu mundo virou ao avesso

Buddy e seu irmão Will (Lewis McAskie) se escondem em casa durante  o "quebra-quebra"


Após a chegada do exército britânico para manter a ordem, os moradores erguem barricadas e se organizam em patrulhas para vigiar o quarteirão, enquanto o Pai e a Mãe discutem o que fazer: Ele temendo por sua família propõe imigrar para a Austrália ou Canadá; ela se opõe a ideia de deixar suas raízes para trás, num mundo onde seriam estigmatizados por seu sotaque e jeito de ser. O Avô (o ótimo Ciarán Hinds de Liga da Justiça de Zack Snyder) e a Avó (Judi Dench de Assassinato no Expresso do Oriente brilhando como sempre) entendem que a situação é difícil e como a própria matriarca diz “- Não há estradas para Shangri-la*1 na nossa parte de Belfast...”  De qualquer forma eles se planejam para até o final do ano tomarem uma decisão, enquanto as crianças vêm que seu mundo está mudando rápida e drasticamente...



mudar ou não mudar??? O Pai (Jamie Dornan) que trabalha em Londres, e a Mãe (Caitriona Balfe) começam a pesar as alternativas para a família

O Pai e Buddy têm uma ótima relação de cumplicidade


Escrito e dirigido por Kenneth Branagh (Morte no Nilo) e parcialmente baseado em suas lembranças de infância, Belfast (2021) segue a tradição de filmes como Amarcord (1973) de Federico Fellini, Esperança e Glória (1987) de John Borman e A Vida é Bela (1997) de Roberto Begnini, onde o recorte de um momento histórico é visto pela ótica de alguém muito jovem no período (assumindo o papel do “narrador não confiável”, por desconhecer a totalidade dos fatos) e apresentando o contraste de uma visão nostálgica em meio ao conflito. Coisa que quando bem feita transborda lirismo equilibrado com senso crítico, e quando feita de forma fácil e oportunista, acaba descambando num maniqueísmo fácil, de idealizar um passado dourado que nunca existiu, como o que vivemos agora, em que uma legião manipulada de dementes ressentidos arrastou o país para um buraco, do qual tão cedo sairemos... Felizmente Kenneth Branagh equilibra bem a nostalgia, embora não se aprofunde nas complexidades da questão política, optando por mostrar apenas o ponto de vista das pessoas comuns, que embora não entendam nada de política, vivem na carne as consequências dela.

 

Loga a rua se fortifica por temor a novos ataques

Moira (Lara McDonnell) a amiga encrenqueira de Buddy, está sempre aprontando e, arrastando-o para roubadas


Ancorado num ótimo e afiado elenco, Branagh passeia por sua galeria de tipos, como Frankie West (Michael Maloney de A Brixton Tale) o morador que cuida da barricada; o casal “Tia” Violet (Josie Walker de White House Farm) que cantarola nas festas de rua, e o “Tio” Mackie (Gerard Horan de Outlander) que adora frituras e se orgulha que a Irlanda seja a n° 1 em colesterol; o Sr. Stewart (Chris MCurry de Torvill & Dean) o típico irlandês apostador que vive tomando chá na rua entre outros. Dornan e Balfe têm ótima química e convencem como um casal que se gosta e se curte, da mesma maneira que o casal de idosos Hinds, simpático e bonachão (ensinando formas de malandramente, induzir a professora dar notas melhores) e Dench, sempre firme e desconfiada, mas mimando o neto, despidos de qualquer glamour, dominando cada milímetro da cena. Ainda temos, como a sombra ameaçadora que paira sobre suas cabeças, a dupla Billy Clanton (Colin Morgan de Lendas do Crime) e seu assecla McLaury (Conor MacNeill de Industry) agitadores (possivelmente ligados ao I.R.A.).

 

A Avó (Judi Dench) e o Avô (Ciarán Hinds) também sentem de forma preocupante o andar dos eventos

O Avô ajuda Buddy nas lições de matemática, e dando dicas de como lidar com as questões do amor

 

Mas quem se destaca mesmo é o jovem Jude Hill, que apesar da pouca idade segura bem o papel, colocando o seu Buddy, como uma das grandes personificações da infância no cinema, demonstrando inteligência e sagacidade, temperados com uma inocência lúdica, nos seus relacionamentos com Moira (Lara McDonnell de Artemis Fowl: O Mundo Secreto) sua amiga encrenqueira, e Catherine (Olive Tennant) sua amada (que é católica) e com quem ele se une para fazer um trabalho escolar sobre a ida da Apolo XI a Lua, coisa de que sua Avó duvida...

 

A rotina se readapta, com os vizinhos fazendo suas reuniões...

... enquanto a dupla de agitadores Billy Clanton (Colin Morgan) e seu assecla McLaury (Conor MacNeill) vivem a cercar a família, cobrando um posicionamento

 

Através das crianças acompanhamos o desenrolar dos acontecimentos, entre rápidas mostras de suas brincadeiras na rua, como pique, amarelinha, pular corda, jogar bola ou andar de patinetes, evocando um tempo em que isso era rotina, e quando o cinema era uma diversão mais acessível e democrática, ou quando as crianças se esforçavam para tirar boas notas e conquistar um lugar na carteira mais próxima da professora. Tais momentos são decupados pela edição de Úna Ní Dhonghaíle (Morte no Nilo) mantém o ritmo narrativo fluido e constante, mais rápido ou devagar de acordo com a necessidade dramática da narrativa.

 

As notícias vão ficando preocupantes, com o agravamento das tensões. A fotografia referencia os enquadramentos e composições das fotos de revistas e jornais da época

Apesar das dificuldades, a família se mantém unida


A bela e luminosa fotografia de Haris Zambarloukos (Assassinato no Expresso do Oriente) começa ilustrando em vistas aéreas e cores vivas a Belfast atual, mostrando seus estaleiros e monumentos modernos, até subitamente se focar no modesto bairro operário, onde assume o preto e branco, cujo tom remete aos filmes da fase inicial de Ingmar Bergman, assumindo muitas vezes um tom documental, realçando os figurinos de Charlotte Walter (Watchmen) que parecem saídos das fotos das revistas e jornais da época, por seus enquadramentos, e composição de personagens no ambiente (é particularmente uma graça ver Buddy usando no natal, um traje de tripulante dos Thunderbirds que ganhou de presente).

 

Buddy segue com seus estudos, procurando se destacar na turma...

...e ganhar o coração de sua amada Catherine (Olive Tennant) uma menina católica


 

A fotografia também faz um bom uso dos efeitos visuais das empresas Absolute Effects UK, Dunton Projection FX , supervisionados por Matthew Glen (Morte no Nilo) que são usados de forma sutil, fazendo a transição de cenários com o resto das paisagens, bem como no contraste da imagem colorida das telas do cinema ou dos palcos dos teatros, que se refletem nas lentes dos óculos da Avó, na imagem em preto e branco, enfatizando o que ela diz que “- Quando eu era nova e ia ao cinema, eu sentia que me podia transportar para dentro da tela! ” enfatizando o escapismo que a arte proporciona, face a uma realidade difícil. Dentre os filmes que a família vê no cinema, aparecem clássicos nas telas como O Calhambeque Mágico (1968) de Ken Hughes e Mil Séculos Antes de Cristo (1966) de Don Chaffey, que o Pai diz ser educativo para os meninos (por causa dos dinossauros do Ray Harryhausen) e a Mãe diz ser “uma educação dos infernos!” (por causa da Raquel Welch naquele biquíni de peles...)

 

O Pai e os Avós estudam as possibilidades. A direção de arte é precisa na construção de cenários simples mas impactantes na fotografia em preto e branco

A química entre Jamie Dornan e Caitriona Balfe é boa, convencendo como um casal que discute, mas se ama e segue em frente

 

O soberbo desenho de produção de Jim Clay (Morte no Nilo), amparado pela direção de arte de Dominic Masters (ArtemisFowl: O Mundo Secreto), Stephen Swain (1917) e Robert Voysey (Star Wars: A Ascensão Skywalker) cria espaços reais e palpáveis como as casas de vila, com as texturas de suas paredes de tijolos, e seus banheiros externos; a oficina do Pai, “organizadamente” desarrumada; o mercadinho da rua, ou a clínica pública, onde um personagem é internado, e que a decoração de sets de Claire Nia Richards (Aladdin) enriquece com elementos de época como os móveis de pino, a TV de tubo, onde as crianças vêm a Star Trek original e westerns como O Homem que Matou o Facínora (1962) de John Ford e Matar ou Morrer (1952) de Fred Zinnemann, ou a maleta em que a Mãe guarda as contas (cada vez mais atrasadas) e a maletinha onde Buddy guarda seus carrinhos Matchbox, ou a caixa de sabão em pó OMO, que ele pega num mercado sendo saqueado. Pequenos detalhes que dão vida a ambientação.

No Natal, Bauddy ganha entre outros presentes, um traje do "Salvamento Internacional" do seriado "Thunderbirds"

Na época os brinquedos dos "Thunderbirds" eram muito populares na Inglaterra e Europa

 

A trilha musical de Van Morrison (Além das Nuvens) incorpora muitos de seus hits como “Caledonia Swing”,”Bright Side of the Road”,”Warm Love”, “Jackie Wilson Said”, “Days Like This”, “Stranded”, “Carrickfergus” , “And the Healing Has Begun” , “Down to joy” ,além de “Everlasting Love” por The Love Affair, “Real Love” por Ruby Murray, celebrando acima de tudo a gana de viver irlandesa, que mantém uma olho em suas raízes mas se aventura para a frente, pois como diz a Avó “- Os irlandeses nasceram para ir embora, pois alguém tem que abrir pubs pelo mundo afora...”

 

Da galeria de tipos se destacam a cantarolante “Tia” Violet (Josie Walker), o “Tio” Mackie (Gerard Horan) que adora frituras, a engraçada Sra. Ford (Rachel Feeney)e a espevitada Moira

Logo um distúrbio, envolvendo Moira e Buddy leva a família tomar uma decisão


Dedicado “aos que ficaram, aos que foram embora, e a todos aqueles que foram perdidos”, Belfast, em seu cômputo final, embora não aprofunde a reflexão das origens dos conflitos na Irlanda do Norte (que remontam desde loonga data*2) reflete um quadro melancolicamente doce da memória afetiva de seu autor, e emociona por  ser de apelo universal, pois em todas as partes do mundo, de Belfast ao Rio de Janeiro, passando por Moscou, Cabul ou San Diego, sempre haverá aqueles que deixaram a sua terra natal para recomeçar a vida e, alguém que se lembrará com saudades “da aurora da sua vida e da sua infância querida...”

 

Após uma perda, uma última festa celebra a vida e o amor do jovem casal...

... que segue em frente desafiando o mundo!!!

 

Notas:


*1: Shangri-La é o paradisíaco reino fictício no himalaia do filme Horizonte Perdido (1937) de Frank Capra, com Ronald Colman e Jane Wyatt, baseado no livro homônimo de James Hilton, tendo sido refilmado em 1973 por Charles Jarrott com Peter Finch e Liv Ulman.

 


 

*2: O conflito entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte é uma combinação de fatores étnicos, políticos, econômicos, religiosos e sociais que surgiram ainda na Idade Média. Localizada à oeste da Inglaterra, a Irlanda passou a ter interferência política externa a partir de 1175. Neste ano, o monarca Henrique II, da Inglaterra, conquistou a região, determinando que a partir daquele momento a Irlanda ficaria sujeito às leis inglesas.

Quando em 1534, no contexto da Reforma Protestante, Henrique VIII rompeu com a Igreja Católica e funda a Igreja Anglicana, a Irlanda, que era de maioria católica, viu-se obrigada a adotar a mesma “religião” da Inglaterra: o Anglicanismo. Apesar da imposição inglesa, é importante destacar que não é a questão religiosa, o maior problema entre Irlanda e Inglaterra e sim, a questão política, territorial e nacionalista dos irlandeses. A religião apenas foi incorporada ao conflito já existente. Assim, manter a religião católica passou a ser encarado como uma forma de protesto contra os ingleses. O que é perfeitamente compreensível se entendermos que naquela época a religião era ligada ao estado, sendo muitas vezes utilizada como forma de garantir o poder.

O impasse entre uma parte da população da Irlanda, de maioria católica, e outra parte, de maioria protestante, fez surgir um movimento conhecido como “Sinn Féin” (Nós Sozinhos), em 1905, que depois, de eleição de maioria irlandesa ao Parlamento britânico em 1918, criou as condições para que acontecesse a independência da Irlanda, e reconhecida pela Inglaterra, em 1921. Com isto, a região do Ulster (Norte), de maioria protestante, aceitou e continuou como parte do Reino Unido. Juntamente com a luta do “Sinn Féin”, surgiu também um grupo político radical, paramilitar católico e reintegralista, conhecido como IRA ou Exército Republicano Irlandês, responsável por uma série de atentados aos protestantes da região de Ulster (Irlanda do Norte). 


 

Passados várias décadas de embates, atualmente a Irlanda do Norte vive em paz, com os católicos, representados, pelo inativo IRA (e agora, Partido Sinn Fein) agora conhecidos como nacionalistas, e os protestantes, representados pelo Partido Unionista, frequentemente chamados de leais – ou unionistas. Ao que parece, estes dois segmentos políticos estão conseguindo manter a paz entre eles (católicos e protestantes), pelo menos, por enquanto, principalmente após o chamado Acordo da Sexta-Feira Santa, de 10 de abril de 1998 e, da consequente formação do Parlamento de Belfast, que procura cuidar dos interesses de todos os habitantes do país.

 


"♪♫ Sunday, bloodly sunday! ♪♫ Sunday, bloodly sunday... ♪♫ Sundayyy!!! ♪♫ Sunday, bloodly sunday...♪♫"


 

 

0 comentários:

Postar um comentário