por Alexandre César
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Iain Glen (Dan Dreiberg) e Ray Stevenson (Rorschach) no teste
da versão (cancelada) de 2003 de David Hayter. Vários
diretores tentaram sem sucesso levar a história aos cinemas...
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Incensada como a maior e melhor História em Quadrinhos do gênero Super-Heróis de toos os tempos,Watchmen, escrita por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons foi divisor de águas ao longo de seus 12 números, desconstruindo o gênero numa premissa de como seria um mundo em que os heróis mascarados existissem no mundo real e qual o seu impacto na sociedade do ponto de vista cultural, legal, político, científico e ideológico. Neste universo alternativo o surgimento do Dr. Manhattan, um super-herói semi-divino levou os EUA a ganharem a Guerra do Vietnã (que acabou sendo anexado como o 51°estado) entre outras diferenciações históricas...
Inúmeras obras de várias mídias beberam dela como fonte, de The Boys até Os Incríveis, mas nunca aprofundando tanto a discussão quanto o original. Após anos de várias tentativas de levar a obra para a tela grande coube a Zack Snyder (O Homem de Aço) dirigir a adaptação em 2009, que se do ponto de vista visual foi impecável na sua transposição e recriação dos personagens para o live action, muitos torceram o nariz para as mudanças do argumento de forma a ser mais inteligível para um público médio de cinema mais acostumado a blockbusters genéricos. O fato é que Snyder fêz a melhor adaptação possível de uma obra complexa para o formato filme, tanto que ele formou nestes dez anos uma nova geração de leitores, que não fosse o filme, provavelmente não se interessariam em conhecer a obra, permanecendo no gueto dos quadrinhos.
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34 anos depois, Angela Abar (Regina King) é Sister Night,
representante de uma nova geração de mascarados...
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Agora, Damon Lindeloff (Lost, The Leftovers, Prometheus, Além da Escuridão: Star Trek) fã de carteirinha da obra, retoma este universo narrativo, tendo Dave Gibbons como consultor (Moore não quer ser creditado por estar “de mal” com a indústria das HQs de super-heróis) em Watchmen, a série da HBO ambientada cerca de 34 anos desde os eventos passados na HQ (a série segue a HQ original, e não o filme de Snyder) num resultado mais do que satisfatório complementando e recontextualizando a obra, dialogando com o momento político-social presente, de uma forma que o próprio Moore deveria engolir o orgulho e a atitude blasé e admitir que desse vez eles souberam fazer as coisas direito...
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Espelhado/ / Looking Glass (Tim Blake Nelson) é basicamente o
"herdeiro" do Rorschach original, no visual e na metodologia de trabalho...
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Se a obra original se focava na paranoia da guerra nuclear, coisa natural pois era a guerra fria, com Estados Unidos e a União Soviética competindo para ver quem tinha o maior arsenal de mísseis balísticos de longo alcance, o foco desta sequência num 2019 alternativo é na questão do racismo crônico da sociedade (americana no particular) dialogando com este nosso momento em que a extrema direita chega ao poder em muitos países, apoiada por poderosos lobbys financeiros, religiosos e midiáticos, demonizando minorias, a intelectualidade, a arte e a cultura, num pesadelo orweliano* crescente.
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Alem de Sister Night, outros policiais mascarados são Pirata Jenny
(Jessica Camacho) e Red Scare / Terror Vermelho
(Andrew Howard), pouco desenvolvidos na temporada. |
O foco da trama é Angela Abar (Regina King) policial que mudou-se do Vietnã com o marido Carl (Yahya Abdul-Mateen II) para Tulsa e após os eventos da “Noite Branca” quando um grupo supremacista (7ª Kavalaria) mataram vários menbros da força policial, quando o Senador Joe Keane (James Wolk) institui que os policiais passem a usar máscaras para preservar as suas identidades (coisa em oposição ao ato de seu pai de 1977 que criminalizava os vigilantes mascarados) e assim ela assume a identidade de Sister Night, uma vigilante similar a um certo “homem-morcego” bem conhecido.
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A maneira criativa com que sempre era tratado o logo da série em cada episódio rivaliza com "The Umbrella Academy" da Netflix... |
Após três anos de paz, a 7ª Kavalaria volta a dar as caras, e após alguns confrontos Angela investiga o assassinato de seu superior e amigo Chefe Judd Crawford (Don Johnson) e a partir daí vão se avolumando descobertas, reviravoltas e idiossincrasias desse 2019 alternativo que tem grandes avanços tecnológicos no campo da engenharia genética, mas não tem internet e telefones celulares, entre outras diferenças.
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Finalmente vimos o estrago que a lula gigante transdimensional
fake (omitida no filme de 2009) causou em Nova York... |
Personagens clássicos da obra original são citados, ou aparecem agora mais velhos como Laurie Blake (Jean Smart) a Spectral, agora uma sarcástica agente do FBI, Adrian Veidt (Jeremy Irons) o Ozymandias, exilado numa “utopia” criada Pelo Dr. Manhattan, um ser de poderes semi-divinos, e temos momentos clássicos do quadrinho original como a fatídica noite de 02 de novembro 1985 quando o relógio do Juízo Final apontava para meia hora antes da meia-noite e pouco depois a famigerada lula gigante transdimensional cai em Nova York matando 3 milhões de pessoas e traumatizando psiquicamente outras centenas de milhares, mas que preveniu a inevitável guerra nuclear, de acordo com o plano de Veidt, bem como os preparativos deste plano, quando ele pré gravou uma mensagem para o futuro presidente Robert Redford (uma brincadeira com o presidente da época em que o quadrinho foi lançado, Ronald Reagan, também ator).
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O asassinato do Chefe Judd Crawford (Don Johnson)
é o estopim da trama, similar à morte do Comediante na HQ...
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Dialogando com o momento atual, temos a reconstituição do Massacre de Tulsa** em 1921, dado que até cerca de 15 anos atrás não figurava nos livros de história, e mais adiante num incrível episódio passado em 1938 (ano do lançamento de Action Comics nº 1 com a estréia do Superman) vemos os ancestrais do gupo, os Minutemen e o membro fundador Hooded Justice, bem como a origem da 7ª Kavalaria, na verdade uma atualização de um braço da Ku Klux Klan chamada Cyclops cujos planos são bem preocupantes...
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Laurie Blake (Jean Smart) a Spectral, agora agente
do FBI, roubou a cena em diversos momentos...
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Além dos personagens clássicos, novos rostos como Wade Tillman / Looking Glass (Tim Blake Nelson) cujo layout remete ao Rorschach original e a cientista trilionária Lady Trieu (Hong Chau) enriquecem a narrativa e ilustram vários aspectos deste mundo peculiar.
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SERIE DENTRO DA SÉRIE "American Hero Story" mostrou
como funciona a prática do "whitewashing"...
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O roteiro da série, tendo Lindeloff como chefe da equipe, além de showrunner, montou arcos que foram escrupulosamente seguidos, lançando perguntas que foram sendo respondidas gradativamente a partir da segunda metade, não deixando nenhuma ideia ”largada”, salvo aquelas que ficaram propositadamente em aberto, visando uma possível temporada seguinte, da mesma forma que a metalinguagem é explorada nos trechos dos episódios de American Hero Story, série de TV focada nas origens dos heróis mascarados, notadamente em “Hooded Justice”, o precursor de todo o movimento, que aqui serve para se discutir coisas como o withewashing***
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Ms Crokshanks (Sara Vickers) e Mr. Phillips (Tom Mison)
compartilharam com Adrian Veidt (Jeremy Irons) alguns dos
momentos mais insólitos da temporada...
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A direção de atores foi precisa, tirando interpretações memoráveis do elenco afiado defendendo os seus personagens, com destaque para King, Smart, Hong Chau e Jolie Hoang-Rapapport do lado feminino e Irons, Nelson, Yahya Abdul-Mateen II e Louis Gosset Jr. como Will Reaves, o velho e sofrido avô de Angela de participação crucial na trama, e não podemos deixar de citar os clones, tendo Tom Mison (Sleep Hollow) como Mr. Phillips e o Guarda-Caças e Sara Vickers e Christie Amery como Ms. Crookshanks e a sua matriz, Erika Manson, que renderam momentos inusitados e surreais com Jeremy Irons, fora o tom mauricinho de James Wolk como o Senador Joe Keane e o Fanboy Agente Petey (Dustin Ingran) que assume um papel de sidekick de Laurie Blake na sua investigação.
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A misteriosa trilionária Lady Trieu (Hong Chau) revela
conhecer muito da história de Angela para surpresa dela...
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Os valores de produção foram impecáveis, fazendo a fotografia um uso inteligente tanto da cor, como do preto e branco, como no episódio calcado nas origens de Hooded Justice, um perfeito episódio noir. Trabalhando em conjunto com uma edição que dava o tom certo à narrativa,sem estender ou, cortar as cenas antes de sua necessidade de conclusão. O desenho de produção, a direção de arte e os figurinos acertaram em cheio ao recriar os trajes dos mascarados da década de 1930, bem como caracterizar esse universo ficcional em que cada enquadramento revela num canto de cenário, um utensílio ou objeto na mesa, etc... algo do passado dos personagens ou alguma citação ao pasado destes ou referências cruzadas a elementos do universo Pop ou da narrativa da obra original. Cada centavo foi bem gasto, como o mostra a sequência da Lula-gigante em Hoboken (omitida do filme de Snyder) fora a música de Trent Reznor e Atticus Ross, cuja seleção de clássicos permeia a narrativa, sublinhando-a e acrescentando detalhes de forma sutil.
No cômputo geral Watchmen honrou o legado de Moore e Gibbons e atualizou-o de forma inteligente e sagaz, fechando a temporada de forma auto-contida mas permitindo expansões futuras para qualquer explorador audacioso que queira se aventurar neste rico universo narrativo onde super-deuses azuis coabitam a terra com homens-lubrificantes...
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O episódio ambientado em 1938 mostra os
"Minutemen", os precursores dos grupos mascarados... |
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