domingo, 5 de janeiro de 2020

Vida sem rumo - Crítica - Filmes: Coringa (2019)


 

O problema de não "pegar" ninguém...

   

por Alexandre César 

(Originalmente postado em 04/ 10/ 2019)


Todd Philips e Joaquin Phoenix mergulham de cabeça na loucura  da vida ordinária

 

Conrad Veidt em "O Homem que Ri" (1928). O personagem de Victor Hugo foi a semente original.

 
Tendo sido originalmente criado por Bil Finger, inspirado pelo personagem de Conrad Veidt no filme mudo O Homem Que Ri (The Man Who Laughs) de 1928 dirigido por Paul Leni, o Coringa rapidamente tornou-se o nêmesis de Batman, espelhando a loucura que na realidade também permeia o Guardião de Gotham. Tendo sido popularizado por Cesar Romero na série camp imortal de Adam West, em 1989 no filme de Tim Burton teve Jack Nicholson como o Palhaço do Crime, remetendo ao clássico das Hqs A Piada Mortal de Alan Moore & Brian Bolland, mas dando uma identidade diversa ao personagem: Jack Napier, um pistoleiro mafioso (identidade que seria usada na série Batman animated) e posteriormente teria novas encarnações com Heath Ledger em Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008) de Christopher Nolan cuja performance insana lhe renderia um Oscar e um Globo de Ouro póstumos, e Jared Leto em Esquadrão Suicida (2016) de David Ayer cuja caracterização gangsta dividiu opinões. Vilão camp, lunático pomposo, frio sociopata, criminoso psicótico, arauto do caos, espírito obsessivo que assombra a cidade de Gotham possuindo os párias mais sensíveis, como na série Gotham, onde o primeiro Coringa foi Jerome Valeska (Cameron Monaghan), parecia que todas as possíveis facetas do vilão já haviam sido exploradas, até o presente momento... ou não?
 

Cesar Romero, Jack Nicholson, Heath Ledger e Jared Leto. Quando parecia que todas as interpretações do vilão haviam sido esgotadas...

 
 
Dirigido por Todd Phillips (da trilogia Se Beber, Não Case!), Coringa (2019) recontextualiza o icônico vilão da DC Comics numa abordagem ainda não mostrada no cinema. Arthur Fleck (Joaquin Phoenix de O Mestre, Johnny & June, Gladiador numa interpretação para lá de visceral) é um homem lutando para se integrar à sociedade, na caótica e despedaçada cidade de Gotham. Trabalhando (e colecionando toda a sorte de humilhações...) como palhaço durante o dia, ele tenta a sorte como comediante de stand-up à noite, morando num conjunto de apartamentos de baixa renda com a sua mãe velha e doente Pennny Fleck (Frances Conroy das séries American Horror Story, Castle Rock, e A Sete Palmos) que insiste em querer pedir ajuda ao futuro candidato à prefeitura Thomas Wayne (Brett Cullen (42- A História De Uma Lenda, da série Narcos, e que já foi o pai do herói de Motoqueiro Fantasma), com quem segundo ela tem um vínculo não “revelado”.

... eis que surge Joaquin Phoenix mostrando que ainda se pode dizer algo mais sobre o "Palhaço do Crime".

Preso em uma existência que oscila entre a realidade e a loucura, Arthur tem como objeto de desejo Sophie Dumond (Zazie Beetz de Deadpool 2) sua vizinha de anda, e assiste toda a noite ao talk show de Murray Franklin (Robert De Niro (de Touro Indomável de 1980, O Poderoso Chefão 2 de 1974) como sinal de seus problemas, ele possui um distúrbio que o faz rir de forma incontrolável quando passa por instantes de ansiedade. Uma risada que vem do diafragma, gerando uma sensação de incômodo na plateia... Uma noite, após tomar uma decisão equivocada, ele inicia uma reação em cadeia, com consequências cada vez mais graves e letais, atraindo em seu encalço os Detetives Garrity (Bill Camp de Operação Red Sparrow, A Grande Jogada) e Burke (Shea Whigham de O Primeiro Homem, Kong: A Ilha da Caveira). Enquanto vai driblando estes inpecilhos, ele vai mergulhando cada vez mais na loucura ao descobrir que por mais que tentasse ser um cidadão bom e obediente às leis, a verdadeira piada era sempre ele mesmo...

 
Arthur (Joaquin Phoenix), como bom filho, cuida de sua mãe doente Penny Fleck (Frances Conroy).

 
O roteiro de Phillips e Scott Silver (O Vencedor), embora livre do maniqueísmo comum ao “cinema de heróis”, mergulha na vida e na psique de seu protagonista,apresenta o futuro vilão na mesma proposta original de A Piada Mortal: Um “perdedor” em todos os sentidos, um “homem que virou suco”*1 que paulatinamente vai sucumbindo ao descaso daqueles à sua volta, e que acaba se tornando o gatilho de movimentos sociais, como as revoltas de Los Angeles na década de 1990 ou, o mais recente Occupy Wall Street, acabando por representar os excluídos do sistema, as vítimas da recessão econômica, da falência das políticas públicas e da falta de oportunidades de conquistar um lugar ao sol, os “palhaços” da sociedade como um personagem declara num noticiário a certa altura do filme.

"Romance"??? A "namorada" Sophie Dumond (Zazie Beetz) reflete a identificação do personagem com a subcultura "InCel"...

 
Ilustrando esse universo de excluídos temos a agência em que Fleck trabalha reproduz em escala os vícios da sociedade em que está inserida, com o patrão abusivo Hoyt Vaughn (Josh Pais de Brooklyn Sem Pai Nem Mãe, Despedida em Grande Estilo), Randall, o palhaço grande (Glenn Fleshler das séries Billions e Barry) que se diz amigo, mas fala pelas costas de todos e humilha Gary, o palhaço anão (Leigh Gill de Game of Thrones). No “mundo da alegria” as flores só tem espinhos...

Nesta Gotham suja e decadente, a agência de palhaços reflete a sociedade, com palhaços como Randall (Glenn Fleshler) que é falso e arrogante...

 
Phillips dosa os momentos de tragédia com os de comédia agridoce (foi indicado ao Oscar pelo roteiro de Borat - O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América) de forma primorosa, pontuando a forma como Fleck recorre aos musicais de Fred Astaire ou à música de Frank Sinatra ou uma dança inspirada em Charles Chaplin (podemos dizer que ele “dança com a loucura”) para criar o seu mundinho próprio, onde em seus devaneios ele tem todo o seu valor reconhecido, sendo amigo do ídolo, o apresentador de televisão, tendo os seus esforços recompensados e sendo feliz no amor.

Arthur sonha se tornar uma estrela da comédia "Stand Up", embora sempre seja visto como a verdadeira piada...

 
Neste processo fica facilmente reconhecida a influência de Martin Scorcese, sendo Afleck um similar dos personagens de dois de seus clássicos: Taxi Driver (1975) e O Rei da Comédia (1982) obras seminais na discussão sobre o fascínio que o mundo das celebridades exerce sobre o indivíduo comum, gerando muitas vezes no processo de descoberta da diferença entre sonho e realidade reações adversas e até destrutivas por conta da inevitável decepção. Some a isso os fracassos de uma massa de descontentes na vida pessoal, profissional e e afetiva, somadas à possibilidade de portar armas e bem, podemos intuir o resultado...

Numa noite, no trem, a sua risada involuntária desencadeia a sua descida final à insanidade...

Na construção da sua Gotham, bem anos 1970, desprovida de qualquer estilismo gótico ou expressionista, parecendo assim, uma típica cidade americana como Nova York, Chicago, Boston, etc... o design de produção de Mark Friedberg (Se a Rua Beale Falasse, Selma - Uma Luta pela Igualdade) cria ambientes urbanos geométricos e estreitos, procurando nas suas locações ruas com escadarias, prédios de escritórios apertados com escadas de incêndio, dando para becos e estações de trem (praticamente todos os personagens só usam o transporte público) fazendo vizinhança com muitos inferninhos e cinemas pornô, retratando o ambiente, o mundo dos sem perspectivas que vivem no subemprego numa cidade coberta de lixo (os garis estão em greve, então não faltam sacos pretos ao longo das ruas e calçadas...) coisa que a granulação e a palheta de cores de tons frios (e puxando para o âmbar nos momentos mais idílicos com grandes closes de Fleck, permitindo-nos apreciar seus dentes tortos e a sua magreza...) do diretor de fotografia Lawrence Sher (Godzilla II: Rei dos Monstros), capta na película 70 mm a sujeira da cidade, praticamente envolvendo o público nas suas imagens vívidas e plenas de camadas, criando o confronto sonho x realidade e, agindo em consonância com o editor Jeff Groth (Cães De Guerra) nos remete à filmes clássicos de perseguição como Operação França (1971), como na seqência em que Afleck foge pelas ruas e escadarias de Garrity e Whigham já paramentado como o icônico personagem, que o figurinista Mark Bridges (Trama Fantasma, O Artista) magistralmente reinventa de forma própria, diferenciada de todas as anteriores, Tudo isto embalado pela música de Hildur Guðnadóttir (Sicario: Dia do Soldado e da série Chernobyl) que sutilmente acompanha a espiral decadente de Fleck sustentando a ansiedade constante desde o início com acordes impactantes, aludindo aos distúrbios psiquiátricos mais profundos do protagonista.

"Starksy & Hutch"? Nada mais setentista do que uma dupla de detetives como Burke (Shea Whigham) e Garrity (Bill Camp)...

A direção de arte cria um Gotham despida de estilos góticos e expressionistas, apesar de alguns sutis "Easter-eggs" como o do figurante acima...

 
Como fanservice, temos pequenas e rápidas aparições de um jovem Bruce Wayne (Dante Pereira-Olson) com direito a um “Bat-poste” e Alfred Pennyworth (Douglas Hodge de Operação Red Sparrow”, e da série Penny Dreadful) e a citação de que a orquestra de Murray Franklin tem o pianista Chandell (vilão da série televisiva interpretado por Liberace) e é claro, a cena da morte do casal Wayne (é óbvio que haveria ela...), remete ao clássico das HQs Batman O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller, e ainda temos uma sutil piada metalinguística sobre a sexualidade do futuro herói, pois o filme do qual eles saem do cinema não é o clássico A Marca do Zorro (1940) com Tyrone Power, mas sim, As Duas Faces de Zorro*2 (1981) com George Hamilton.
 

O design de produção e a fotografia criam um ambiente urbano caótico, não muito diferente da mente de Fleck...
 
 
Mas, se no inicialmente o roteiro nos promete possíveis reviravoltas que poderiam tornar a jornada de Fleck algo inesquecível no cânone DC, logo o material cai em uma estrutura mais segura, e assim, não estranharemos se mais à frente quiserem ligá-lo ao futuro filme do Guardião de Gotham, tal é o histórico de Hollywood na sua busca por dinheiro, em usar o cinema não como veículo para contar histórias, mas sim como plataforma para lançar franquias...


E com vocês, a nova encarnação do mais icônico vilão da DC Comics!!!

Em que pese toda a polêmica que o filme está gerando, principalmente quanto à identificação dos In Cels*3 (também chamados “virjões” ) e o suposto estímulo do filme a propagar os seus pontos de vista e a da própria violência (similar ao que já foi dito sobre Laranja Mecânica, Clube da Luta e Matrix no passado...) a proposta de Phillips nunca é a de glamourizar o famoso “Palhaço do Crime”, embora decida mostrar o seu ponto de vista da narrativa, deixando óbvio que Fleck é um sujeito perturbado como aqueles que sempre lemos em jornais ou vemos dissecados em programas criminais como Investigação Discovery, cuja trajetória, no pano de fundo socioeconômico desta versão estagnada de Gotham City, o faz entrar uma relação de antagonismo contra o empresariado, representado por Thomas Wayne, que reflete a visão neoliberal, da “meritocracia”, e aqui a própria violência de Arthur é que se torna o espetáculo, com suas ações levando-nos a indagar sobre o quanto é necessário para este vilão tornar-se símbolo, ou mesmo uma celebridade, servindo como a fagulha que faltava em uma sociedade à beira do colapso social — algo com enorme ressonância nos dias atuais (cheios de polarização e intolerância), mas tal choque evoca uma provocação para refletirmos sobre o quanto é necessário para “quebrarmos” também? Um dia ruim? Um período ruim? Uma vida inteira ruim?... Ou talvez, nunca...

Afleck aparece no show de seu ídolo Murray Franklin (Robert De Niro à direita) apesar das desconfianças do produtor Gene Ufland (Marc Maron)...

 
Notas:
 
*1: Filme de 1981 dirigido por João Batista de Andrade, onde Deraldo (José Dumont) um poeta popular nordestino que sobrevive de suas poesias e folhetos é confundido com um operário de uma multinacional que matou o seu patrão numa festa, sofrendo um processo de esmagamento pela sociedade.
  

"Não haverá sanidade... mas haverá dança!!!"


 *2: Comédia de 1981 dirigido por Peter Medak, onde Don Diego Vega (George Hamilton) um nobre espanhol combate a opressão do Governador de México, alternando o papel de Zorro com seu irmão Gêmeo Ramon, que havia sido mandado por seu pai para a Marinha Inglesa “para aprender a ser um homem de verdade!!!”, retornando mais gay do que outra coisa, usando várias e coloridas versões do tradicional traje do justiceiro em sua luta contra a injustiça...


"Taxi Driver", "Coringa" e "Laranja Mecânica": Sempre haverá um filme que os retrógrados dirão que "- Não deveria ter sido feito..."


 *3: Diminutivo da expressão “Involuntary Celibates” (“Celibatários Involuntários) grupos de homens entre os 20 e 40 anos que por serem incapazes de se relacionar sexual e amorosamente culpam as mulheres e os homens sexualmente ativos por isso, difundindo na interneta misoginia e até provocando atentados armados.


"- Porque você está tão sério???"

 

0 comentários:

Postar um comentário