O Assombroso Multiverso!!!

Dr. Estranho de Sam Raimi traz o terror ao UCM.

As Muitas Faces da Lua

Spector, Grant, Cavaleiro da Lua, as múltiplas personalidades do avatar de Konshu.

Adeus, Mestre.

George Perez e sua fantástica trajetória.

Eu sou as sombras.

The Batman, de Matt Reeves, recria o universo sombrio do Homem-Morcego.

Ser legal não está com nada...Ou está?

Lobo, Tubarão, Aranha, Cobra, Piranha...Que medo!!! Mas eles querem mudar isso.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Sonhos, projetos e vidas à deriva - Crítica: Somente o Mar Sabe (2017)

 


Maré ruim...
 
por Alexandre César
(Originalmente publicado em 26/ 04/ 2018)

Collin Firth e Rachel Weisz em drama cativante

Donald e Clare Crowhurst (Colin Firth e Rachel Weisz): Belo casal, com uma química invejável
 

“A História é escrita por aqueles indivíduos que são capazes de superar todo e qualquer desafio, tornando-se assim maiores do que a vida e suas limitações, servindo de exemplo aos demais, iluminando tal qual um farol a nossa capacidade de forjar o nosso próprio destino!!!”

 

Pai e filhos: Amizade e cumplicidade

Pelo menos é assim que a sociedade no geral nos empurra o mito do self made man, do empreendedorismo e outros mitos correlatos, esquecendo-se de mencionar um dado: A Seleção Natural, a partir da qual para cada vencedor, existem centenas (ou milhares...) de indivíduos que perderam, desistiram ou ficaram pelo caminho. 
 
 
Os Crowhurst: Donald, o pai, Clare, a mãe e seus quatro filhos

Mas. como no geral, a sociedade se nutre do mito do vitorioso para continuar funcionando, quem costuma ficar do segundo lugar para trás não angaria muita atenção - a não ser que sua derrota adquira tons épicos ou trágicos.

 

o "Chamado da Aventura": O repórter Rodney Hallworth (David Thewlis) ajuda Crowhurst a captar publicidade e recursos para a empreitada

Dirigido por James Marsh (de A Teoria de Tudo, de 2014), Somente o Mar Sabe (2017), escrito por Scott Z. Burns (Contágio), conta a história real de Donald Crowhurst (Colin Firth, de Mama Mia! , inspiradíssimo numa performance que vai do sonhador ao desesperado com simples mudanças no olhar). empresário e inventor britânico, além de navegante amador. Ele se espelha nos feitos de Sir Francis Chischester (Simon McBurney de Jane Eyre) - pioneiro da aviação e marinheiro amador que circum-navegou sozinho o globo em nove meses e um dia de 1966 a 1967 - e decide investir no seu sonho e transformá-lo num acontecimento histórico. Seu objetivo era se tornar o primeiro homem a dar a volta ao mundo sem paradas, vencendo a Golden Globe Race de 1968 (uma importante competição de vela) e faturar um polpudo prêmio (10.000 libras) capaz de salvar seus negócios.

Pronto ou não nosso herói se lança à aventura com a  fé dos ingênuos e dos despreparados...

No intuito de se tornar o mais rápido competidor a dar a volta ao mundo, Crowhurst envolve sua família no seu audacioso plano e contata o jornalista e publicitário Rodney Hallworth (David Thewlis de Mulher-Maravilha, sempre competente) no intuito de captar investidores para viabilizar a construção de uma embarcação que possibilite sua rápida travessia pelos seis continentes. Apostando todas as suas fichas ele convence o empresário Stanley Best (Ken Stott da trilogia O Hobbit, perfeito) a financiar o seu projeto, empenhando a sua casa e seu negócio como garantia do investimento.  

 

Clare: Companheira fiel para o que der e vier

O projeto demora muito mais do que ele previa e Crowhurst se lança às águas mesmo sem o barco estar plenamente pronto como deveria, pois os outros concorrentes já haviam partido e as cobranças dos investidores e patrocinadores eram intensas.

 

A Triste constatação: Só o olhar diz tudo...

Deixando em terra a mulher Clare (Rachel Weisz da cinesérie A Múmia, bela, sensível e cativante) e três filhos, ele embarca em sua empreitada para circum-navegar o globo enfrentando sozinho as forças da natureza, numa aventura náutica marcada por problemas, inexperiência e desespero.

 

Como voltar não era uma opção,Crowhurst resolve "fabricar" o relato de uma jornada heróica

O tema já havia sido abordado no drama Crowhurst (2017, de Simon Rumley) e de Simon Rumley) e em Deep Water (2006), documentário de Jerry Rothwell e Louise Osmond sobre Crowhurst, a Sunday Times Golden Race de 1968 e o seu destino.

A família Crowhurst: Esperança na volta de Donald. Elenco mirim impecável

 

Aqui, Marsh, auxiliado por um elenco sensacional, se debruça sobre as expectativas comuns a todos nós ao tocar nossos projetos de vida, lidando com os fatores como frustração, desespero por decisões erradas (e encarar as consequências por essas decisões...), insegurança por saber se estamos ou não  estamos, “dando um passo maior do que a própria perna”, medo de fracassar e decepcionar aqueles que dependem de nós e outras tantas questões que se impõem a todos nós mortais, sejamos vencedores ou não. E aqui vemos o quanto os fatores solidão e desespero podem levar a resultados catastróficos para os indivíduos. A fotografia de Éric Gautier (Diários de Motocicleta) e a montagem de Jinx Godfrey (A Teoria do Tudo) e Joan Sobel (Direito de Amar) enfatizam a expectativa do que deveria acontecer com belas paisagens solares e o contraste delas com o interior do barco, que vai gradativamente se tornando claustrofóbico na medida que o trajeto avança (ou não) e o belo veículo vai se deteriorando em face às intempéries. Essa gradativa mudança reflete o estado mental de Crowhurst que, embalado pelos acordes de Jóhann Jóhannsson (A Chegada) e Rutger Hoedemaekers, vai percebendo o choque entre o que se planeja e o que acaba de fato conseguindo.

 

O verdadeiro Donald Crowhurst: tragédia com tons épicos

É um filme belo e ao mesmo tempo triste, que nos ajuda a ponderar sobre as decisões cotidianas que muitas vezes tomamos e as suas consequências. Pois, muitas das vezes, a vida se resume a isso: nadar na esperança de não ficar à deriva, ou morrer na praia. Simples e assustador, mesmo que estejamos em terra firme.

 


 


Fábula inteligente e sagaz - Crítica - Séries: Desventuras em Série 1ª temporada

 


Crianças brilhantes, adultos... idiotas


por Alexandre César 
 (Originalmente postado em 27/ 03/ 2018)


Série surpreende com ótima adaptação dos livros
 
 
 

Os Baudelaire: Klaus (Louis Hynes) Sunny (Presley Smith) e Violet 
(Malina Weissman). Enfrentando os desafios de uma vida muito, muito triste


Crianças são seres inteligentes e de alta percepção do ambiente à sua volta. Se estimulados e orientados adequadamente serão capazes de grandes feitos ainda jovens ou mais tarde na maturidade. O problema é que na maioria das vezes esse enorme potencial é desperdiçado, levando-as gradativamente a se tornarem adolescentes tolos e depois, adultos idiotas. 
 

Conde Olaf (Neil Patrick Harris): Entre a canastrice farsesca e os seus
 planos "infalíveis" para roubar a fortuna dos órfãos Baudelaire


Esta é a idéia que (pelo menos para mim) fica patente assistindo a Desventuras em Série, seja na sua adaptação cinematográfica de 2004 dirigida por Brad Silberling com Jim Carrey ou, objeto desta crítica, na primeira temporada da série da Netflix, tendo Neil Patrick Harris como o vilanesco Conde Olaf, que não mede esforços para pôr as mãos na herança dos órfãos Baudelaire, seus sobrinhos Violet (Malina Weissman) capaz de inventar qualquer dispositivo de que necessite, Klaus (Louis Weissman) gênio erudito capaz de absorver qualquer conhecimento dos livros e, Sunny (Presley Smith) bebê que tem dentes super afiados, e se comunica na clássico “linguagem dos bebês”, que apenas os seus irmãos entendem. Tendo aparentemente perdido seus pais num incêndio que destruiu a sua mansão devem ficar com o parente mais próximo até Violet, a mais velha, completar 18 anos quando poderão usufruir da herança. O correto e tolo Sr. Poe (K. Todd Freeman), o testamenteiro oficial,que se encarrega de encontrar um lar para as crianças, inicialmente deixando-as com um parente distante, o tio Olaf (Harris, ótimo) um megalômano e péssimo e ator, misto de Dick Vigarista com Dr. Smith, que chefia uma trupe de malfeitores-atores tão ridículos e toscos quanto ele, que explora as crianças de forma cruel. Desmascarado, ele foge, mas jura não descansar até tomar a herança dos Baudelaire, da qual se julga merecedor.
 

Lemon Snicket (Patrick Warburton) narra os infortúnios dos herdeiros


A primeira temporada de 8 capítulos adapta os 4 primeiros livros (Um Mau Começo, A Sala dos Répteis, O Lago das Sanguessugas e Serraria Baixo-Astral) da série de 13 livros de mesmo nome escritos por Daniel Handler (pseudônimo de Lemony Snicket) aqui personificado por Patrick Warburton (que já foi o super herói The Tick) que vai narrando as tragédias dos Baudelaire com sua postura séria e pessimista sempre lembrando, para nossa diversão, o quão triste é a história, recomendando que troquemos de canal se estamos a procura de histórias felizes. A escolha de um livro para cada dois episódios se mostrou acertada, dando a exata medida de ajuste da história sem cortar ou encher barriga em termos narrativos.  


Sr. Poe (K. Todd Freeman), o testamenteiro oficial, e a meiga Juíza Strauss
 (Joan Cusack) tentam ajudar os órfãos mas a sua tolice facilita as vilanias de Olaf


Ao longo da série caberá às crianças desmascarar Olaf em cada vez que ele se disfarçar (de forma ridícula e cartunesca) para ludibriar os adultos idiotas (que não o reconhecem) e tentar atormentar os órfãos Baudelaire com estratagemas mirabolantes que nos sujeitam a maus-tratos que vão de cárcere privado, lavagem cerebral a exploração do trabalho infantil, em situações dignas dos desenhos da Hanna-Barbera ou da Warner, além de desvendar os segredos de uma misteriosa sociedade secreta, que tem como símbolo um olho, da qual seus pais, Olaf e o próprio Lemony Snicket faziam parte.


Olaf e Lemon Snicket: Membros da mesma sociedade secreta



Tendo à frente Barry Sonnenfeld (diretor das cineséries A Família Adams e Homens de Preto) e o designer de produção Bo Welch, costumaz colaborador de Tim Burton, a série é um deleite visual, criando um mundo surreal indefinido no tempo e no espaço tornando palpável uma ambientação de ilustração de livro infantil.
 

Os capangas de Olaf são um caso à parte...


Com a boa recepção por parte do público e crítica, uma segunda temporada já está em andamento. Bom, pois como ainda existem 9 livros a serem adaptados, tão cedo deixaremos de ouvir falar nas mazelas dos pobres irmãos Baudelaire. Relaxemos e esperemos mais perdas, desgraças, momentos melancólicos, encantadores e divertidos neste universo onde os adultos nunca prestam atenção ao que as crianças falam, lembrando-os (com um pouco de sorte) de que quando eram pequenos, eles mesmos já estiveram nesta posição. 

Quem sabe eles não revejam algumas atitudes?

"-É uma história muito triste..."



Ele atira primeiro!!! - Han Solo - Uma História Star Wars (2018)

Ótimo piloto mas ruim no trato com a nave

 
por Alexandre César 
(originalmente publicado em 30/ 05/ 2018)

quinta-feira, 9 de maio de 2019

"Fanfilm Vague" - Crítica - Filmes: O Amante por Um Dia (2017)

 
Amores simples, ordinários e reais... 

por Alexandre César

(Originalmente postado em 16 /03/ 2018)


  Philippe Garrel realiza filme simples, acessível e atemporal 

 

Philippe Garrel e as idas e vindas de um relacionamento

 

Logo na sequência de abertura, vemos Gilles (Éric Caravaca), um professor divorciado de meia idade, com cabelo meio desgrenhado e barba por fazer (como todo intelectual de filme francês...), chegar ao trabalho. Antes de iniciar uma aula, leva a sua aluna Ariane (Louise Chevillotte), de 23 anos, para o banheiro dos docentes e tem um com ela um encontro sexual, rápido e intenso, embalado pelo fato de estarem fazendo algo que ninguém na faculdade deve saber. O discreto e o proibido. Gemidos que parecem dor, mas revelam prazer. Vida apenas. Assim é o tom de O Amante por Um Dia (2017), filme dirigido por Philippe Garrel, cineasta de ponta do movimento cinematográfico conhecido como Nouvelle Vague, mas pouco conhecido por aqui. 

 

Gilles (Éric Caravaca) e Ariane (Louise Chevillotte): o professor e sua aluna


Garrel encerra neste filme a sua Trilogia dos Amantes, sobre relacionamentos amorosos e relações interpessoais. Além da temática, o filme tem com Ciúme (2013) e À Sombra das Mulheres (2015), outro denominador em comum: a belíssima fotografia em preto e branco (aqui a cargo de Roberto Berta) com sutis granulados que dão a ideia de que a história se passa em algum universo paralelo. Apesar dos personagens usarem smartphones e os carros e a paisagem serem contemporâneos, parece que estamos vendo uma história na Paris do início dos anos 60, pois a caracterização dos personagens - figurinos, penteados e acessórios - é bem neutra. Isso, aliado a outros recursos, como uma narrativa em off, cenas de caminhadas na rua e outras sutilezas, criam um aspecto atemporal para a obra.

 

Giles e Ariane vivenciam todas as fases de um romance, de seu início ao seu final


Ao casal se junta Jeanne (Esther Garrel), filha de Gilles, também com 23 anos, arrasada e consumida pela dor do fim de um relacionamento intenso com o namorado com quem vivia. As duas jovens rapidamente se tornam amigas, dividindo confidências e cumplicidades próprias da faixa etária. Começamos a acompanhar o cotidiano dos três e vemos amor, amizade, sexo, infidelidade, mágoa e alegria se incorporando ao desenrolar de suas vidas. A narrativa elegante conta esta história extremamente simples, mas palpável. Não espere grandes reviravoltas ou momentos maiores do que a vida.

 

Ariane (Louise Chevillotte) e Jeanne (Esther Garrel): cotidiano


O roteiro de Philippe Garrel e Jean-Claude Carrière cria em 76 minutos personagens palpáveis, sem idealizações. Eles possuem uma boa dose de complexidade, apesar de parecerem viver no clichê: o universo de franceses burgueses entediados, só preocupados com o amor, sem se importarem com as contas a pagar. Não fosse o elenco afiado e a direção precisa e segura, teríamos um completo desastre, como em certos momentos em que o filme derrapa. Um é quando alguém tenta se suicidar, mas o ato soa tão falso, que dá uma pontada de orgulho lembrar das nossas telenovelas. Mesmo os mestres não são infalíveis...

E é só isso. Uma história simples, mas estruturada e narrada de forma complexa. 

 

Ariane (Louise Chevillotte) e Jeanne (Esther Garrel): confidências e cumplicidades

Uma impressão curiosa que veio à mente é que, caso o filme não fosse realizado por um cineasta consagrado, poderia muito bem passar por um fanfilm (produção feita por amadores, mas que atualmente podem contar com alto grau de competência técnica, nada devendo a muitos filmes profissionais) que, ao invés de utilizar algum personagem ou universo pop, saído de obras como o universo da DC Comics ou de Star Wars, quisesse homenagear a Nouvelle Vague francesa dos anos 60. Com a qualidade de algumas produções do gênero que vemos por aí, isso não seria demérito algum.

 

Um filme honesto



quarta-feira, 8 de maio de 2019

Nova velha geração - Crítica: - Séries: Star Trek: Discovery - 1ª Temporada

 

 


Ao se olhar no espelho, o que te olha de volta?

por Alexandre César

Entre trancos  barrancos a série se impõe

Compilação das matérias publicadas originalmente em 05/ 10/ 2017,30/ 11/ 2017 e 20/ 02/ 2018 na página do Facebook.



Gene Roddenberry: o homem por trás do conceito de Star Trek


No vídeo Viver sem medo, ao responder sobre utopias, o historiador uruguaio Eduardo Galeano lembra sobre uma resposta de seu amigo, o cineasta argentino Fernando Birri, a uma pergunta a ele feita. Para que serviam as utopias? Afinal elas habitam o horizonte – a medida que você avança, elas se afastavam na mesma velocidade, permanecendo inatingíveis, pois esta é a natureza delas. Na realidade as utopias não existiriam no plano material, prático, servindo de matéria-prima dos poetas e de todo aquele tipo de gente que não costuma ter uma história de vida estável, segura e com carteira assinada.



A Capitã Philippa Georgiou (Michelle Yeoh) e Michael Burnham (Sonequa Martin-Green): sete anos de aventuras que só deveremos ver nos produtos do universo expandido


Eugene Wesley Roddenberry (1921-1991) ao longo de sua vida como piloto de aviação na segunda guerra mundial e piloto comercial na Pan Am -, como policial e como roteirista e produtor televisivo, procurou, ao seu modo, criar a sua própria utopia, que lhe permitisse discutir temas e ideias que lhe eram caras. O resultado dessa busca, incorporando várias contribuições de terceiros e fruto de vários embates pessoais, veio ao mundo com o nome de Star Trek.

A U.S.S. Shenzou, a primeira nave em Michael serviu, por 7anos.


E tantos anos depois - e após tantas transformações no conceito, fruto das mudanças no mundo e na própria forma de ver e conceituar séries e filmes - tivemos agora o encerramento da primeira temporada da última encarnação da franquia - Star Trek: Discovery, que levantou polêmicas (para variar...), sendo abraçada por parte do fandon e odiada por outra parte. No frigir dos ovos, independente do resultado, lá do Nexus, Rodenberry deve estar feliz de ver que os frutos de sua obra continuam suscitando reações tão apaixonadas, mesmo estando sempre "às portas da morte"*1 .
 

Família: Amanda (Mia Kirshner), Sarek (James Frain) e Michael Bhurman...


Fruto do esforço, entre outros, de Bryan Fuller (que já deixou a série), Alex Kurtzman e Nicholas Meyer (Jornada nas Estrelas II - A Ira de Khan, de 1982; Jornada nas Estrelas VI - A Terra Desconhecida, de 1991), a série se propõe a ser um prequel da fase mais conhecida da franquia, ambientada dez anos antes das jornadas de Kirk, Spock e Mc Coy. 

 
A U.S.S. Discovery, que inicialmente parecia ter ligações com a sinistra "Seção 31"...


Apesar de irritar os fãs mais xiitas, a série se mostra mais canônica do que parece à primeira vista, atualizando alguns conceitos que, ou estavam datados ou pouco desenvolvidos na série e nos filmes originais, como o katra vulcaniano, o uso de hologramas ou o próprio visual dos uniformes e do design da cenografia das naves, que transpira um aspecto mais tecnológico, fruto de um orçamento (8,5 milhões de dólares) por episódio que qualquer série dos anos 60 jamais imaginaria vir a ter. Isso possibilitou inclusive mostrar de forma convincente uma criatura (o tardígrado*2) vista inicialmente como monstro – Context Is For Kings (Episódio 3) - num episódio do tipo "o monstro da semana", digna de Arquivo X ou dos filmes da franquia Alien, e depois revelando que a sua natureza era outra – The Butcher’s Knife Care Not For The Lamb’s Cry (Ep. 4). Isto é o espírito de Star Trek.

Saru (Doug Jones) a "face alienígena" da série: Ótima presença, mas ainda sub-aproveitado...


Refletindo o espírito de inclusão - tão em voga, mas que a franquia sempre abraçou - temos Michael Bhurman Rainsford (Sonequa-Martin-Green), uma protagonista feminina e negra que não é Capitã da nave e está fraturada emocionalmente, fazendo uma grande esforço para encontrar "a parte que lhe cabe nesse latifúndio" a bordo da U.S.S. Discovery (NCC-1031), sendo esta jornada uma montanha-russa de desafios e superação em relação aos seus fantasmas pessoais, quanto à sua criação em Vulcano sob os cuidados de Sarek (James Frain) quanto ao lidar com o sentimento de culpa por sentir-se responsável pela guerra entre a Federação Unida de Planetas e o Império Klingon e pela morte de sua antiga capitã e amiga Phillipa Georgiu (Michelle Yeoh), quando era primeira oficial na U.S.S. Shenzon. Esta jornada nunca foi "uma estrada de tijolos amarelos"...
Somente no terceiro episódio, é que conhecemos a U.S.S.Discovery, elaborada a partir da atualização de um design original de Ralph McQuarrie (designer conceitual da trilogia clássica de Star Wars) criado para Star Trek - Phase II, continuação da série original, um projeto que deveria ter ido ao ar na década de 70, mas não vingou. 


A heterogênea tripulação, como em toda a série de "Star Trek"...


A tripulação da nave, que inicialmente parecia sinistra, rapidamente se revelou uma equipe em processo de maturação, com todos dando o melhor de si para se tornarem oficiais de ponta da Frota Estelar, com um forte senso de “família” entre eles, destacando-se Saru (Doug Jones,ótimo, embora pouco aproveitado) o alienígena-símbolo da série, a simpática alferes Sylvia Tilly (Mary Wiseman), o engenheiro-chefe Paul Stamets (Anthony Rapp) cujo conceito do "motor de sporos"*3 gerou polêmica, e seu companheiro, o Dr. Culber (Wilson Cruz) ficando os outros tripulantes mais como parte do cenário...


T´kuma (Chris Obi) o líder que reunifica os klingons contra a Federação.


E temos o Capitão Gabriel Lorca (o ótimo Jason Isaacs, que rouba cada cena em que aparece) cuja postura de capitão tradicional "estilo naval", lembra a dos comandantes dos sécs XVIII e XIX, como o Capitão Cook ou os fictícios Horatio Hornblower (protagonista de uma série de romances navais de C.S.Forrester), ou o Capitão Jack Aubrey (da série de romances "Mestre dos Mares" de Patrick O´Brian, que inspirou o filme de Peter Weir de 2003 com Russel Crowe). Tais capitães tinham bastante autonomia em suas longas viagens exploratórias e usavam-na de acordo com a sua personalidade, prática esta que ele exerce, ora autocrático, ora paternal, conduzindo seus tripulantes a satisfazerem os seus objetivos como uma máquina bem azeitada.


Parecem orcs de "O Senhor dos Anéis", mas são klingons...
 

Algumas coisas ficaram estranhas, como o núcleo narrativo dos klingons, que se esperava ter um peso maior na saga, dando mais detalhes de sua sociedade e lançando novas luzes sobre a espécie. Mas, para decepção geral, a atenção dada entre eles ficou restrita a poucos personagens. Além disso, o novo visual deles, mais alienígenas agora (com figurinos pouco práticos para guerreiros), nos faz pensar que, para surgir uma interação que produza uma mestiça como a Be´llana Torres de Star Trek: Voyager, o humano incauto terá de ingerir uma dose industrial de cerveja romulana para encarar a fêmea em questão. Mas deixemos o preconceito de lado.


Michael e a amiga SylviaTilly (Mary Wiseman) se enturmam com  Ash Tyler (Shazad Latif): Deu match?


A adição ao elenco do Ten. Ash Tyler (Shazad Latif) – Choose Your Pain (Ep. 5) - introduziu dúvidas e mistério quanto a suas origens e motivações, bem como o surgimento do icônico Harkon Fenton Mudd (Rainn Wilson), numa caracterização menos camp em relação à versão original da série clássica, mas igualmente picareta, retornando pouco depois – Magic to Make The Sanest Man go Mad (Ep. 7) -, serviu de respiro, aproximando-nos mais da série clássica, quando se achava que  Star Trek: Discovery estaria desconectada de suas raízes, ficando dark em demasia.

Mas tivemos momentos memoráveis de inclusão, como quando vemos um casal gay escovando juntos os dentes enquanto conversam sobre os acontecimentos do dia de forma trivial. Sem beijinhos ou glamourizações, mas extremamente eficaz e concisa, mostrando que “inclusão” não é necessariamente “confrontação”. 


Inclusão: O casal Dr. Culber (Wilson Cruz) e Paul Stamets (Anthony Rapp) mostrou naturalidade sem panfletarismos...


Com o acirramento da guerra, Lorca mostra saber jogar o "xadrez" do poder para conseguir o que quer, ora estimulando, ora pressionando e manipulando (Nicolau Machiavel aprovaria). Mas, apesar de não ser o tipo ideal que a Frota Estelar quer, Lorca com certeza se mostra o tipo de capitão que ela precisa naquele momento: Aquele que vence guerras embora flertando com o perigo, pois, como ele mesmo disse a Michael: "- O regulamento é para as pessoas comuns, o contexto é para os reis!".

Mas que objetivos são estes? James Tiberius Kirk e (principalmente) Jean-Luc-Picard discordariam de seus métodos, principalmente pela revelação de suas origens e propósitos reais. 

James T. Kik (William Shatner), Jean-Luc Picard (Patrick Stewart) e Gabriel Lorca (Jason Isaacs): Estilos bem distintos de comandar...


A primeira metade da temporada se focou na guerra “Federação Unida dos Planetas x Império Klingon”, terminando com um salto surpreendente da U.S.S. Discovery para o lendário Universo Espelho – tema de episódios de várias séries da franquia -, onde, ao invés da progressista Federação, temos o cruel e belicista Império Terrano (ou Terrestre), no qual as contrapartes de nossos heróis são, na maioria das vezes, o seu oposto moral e ético. Nunca houve um arco de episódios (cinco) tão longo passado neste universo. Dialogando com o atual momento global, onde o sectarismo e o conservadorismo estão em ascensão, ele serviu para mostrar a verdadeira mensagem da temporada: O que você quer ser? Qual a sua escolha? Cooperação, inclusão e abraçar o outro, aceitando que suas diferenças - que não são defeitos (nem qualidades), apenas características - ou separar, excluir, combater e dominar aquilo que não bata com suas concepções de moral, sexualidade e religião? Que líderes você resolve seguir? Aquele que acena para o entendimento ou aquele que te manda para guerra com a mesma indiferença que faz acordos com aqueles que te exploram de fato?



Capitão Gabriel Lorca: postura de antigos e lendários comandantes da marinha inglesa e, "algo mais"...


Nunca o Império Terrano, com a sua direção de arte à la Flash Gordon, serviu tanto de metáfora para as nossas escolhas. Vemos, por exemplo, que Voq, o líder klingon que no “nosso” universo prega a manutenção da “pureza” e a busca da unificação de sua espécie através da guerra com a Federação, no Universo Espelho ele é o grande líder da coalizão dos povos alienígenas contra a opressão terrestre. Isto nos remete à uma das questões do mundo islâmico, onde você vê a polarização entre as interpretações pacifistas dos princípios de Maomé e a ação de extremistas como os do ISIS – o Estado Islâmico. Nesta série, os klingons (que na série clássica representavam a União Soviética e o Pacto de Varsóvia) também nos remetem a esta mesma questão, nos lembrando que boa parte dos ocidentais vê o Islã como um “outro universo”, cheio de mistérios e diferenças. E vemos que uma ideologia pode ser usada tanto para unir quanto para afastar os povos. Quando você se olha no espelho, o que você vê? E quem te olha de volta?



A polêmica e mastodôntica versão do tardígrado em Star Trek - Discovery: navegador biológico


Contudo, a partir da metade da 1ª parte da Temporada o ritmo da edição dos episódios ficou mais picotado, aparentemente num esforço de acelerar a trama, mas que prejudicou certos arcos narrativos. Todos os centrados nos klingons em especial, deixando-os truncados e na sua resolução com pouca empatia emocional ou entendimento da situação*4


Império Terrano no Universo Espelho: O que você vê?


No final da temporada, apesar de corrido e um pouco morno, fica evidente a mensagem dos autores colocada pela própria Michael de que não devemos abrir mão de nossos princípios nem nos momentos de desespero, pois é justamente quando tudo parece ruir que somos mais testados. E se cedemos, caímos numa espiral decadente e iremos nos perder cada vez mais e mais como naquele verso da música “Ideologia”, de Cazuza:  “ Os meus sonhos estão todos vendidos! / Tão barato que eu nem acredito... / que eu nem acredito! ”
 
Esta foi a trajetória desta primeira temporada de Star Trek: Discovery: Correr pelos rumos distópicos que a ficção científica televisiva e cinematográfica tomou nestes anos pós-11 de setembro, sacudindo e abalando os conceitos e cânones do universo de Star Trek, para, ao final, abraçá-los com força e convicção como que estivesse dizendo: “- É isso que eu sou! É isso que eu escolho ser!”. E, apesar de tudo isso soar velho e datado, é isto que seus fãs sempre gostaram e levou Star Trek audaciosamente aonde nenhuma outra franquia jamais esteve, ou estará. A cena final com o encontro da U.S.S. Discovery com a U.S.S. Enterprise, sutilmente repaginada (de forma muito melhor do que nos filmes de J.J. Abrams), mostra isso de forma sutil e elegante, firmando a adesão da série ao cânon*****. E o quanto ela o enriqueceu mais ainda!



Os efeitos visuais são de qualidade cinematográfica, mostrando naves e batalhas em riqueza de detalhes...


Voltando ao vídeo de Eduardo Galeano e a sua resposta à pergunta “Para que servem as utopias, já que elas nunca serão alcançadas? ”. Elas servem para nos manter caminhando para tentarmos sempre ir adiante do quadro presente. Não precisamos de Star Trek para acreditar que um dia teremos a Federação Unida dos Planetas. Precisamos de séries como esta para nos servir de parâmetro ético e nos alertar sobre a possibilidade de surgir entre nós um Império Terrano do universo Espelho, a Primeira Ordem de Star Wars ou um dos vários Impérios galácticos totalitários, não importando a sua roupagem. 


"-É assim que se repagina um ícone da FC J.J.Abrams!!!"





Notas:

 *1: Não faz muito tempo, muitos diziam: “- Star Trek está morta! ”. Na realidade, muitos disseram isso quando a série original terminou em 1969. No lançamento de Jornada nas Estrelas – O Filme (1979, dirigido por Robert Wise), o primeiro filme baseado na série, disseram que seu ritmo lento e arrastado "matou Star Trek". Quando a Frota Estelar foi militarizada em Jornada nas Estrelas II – a Ira de Khan (de 1982, dirigido por Nicholas Meyer) novamente falaram: “- Star Trek está morta!". Em 1987, quando o próprio Gene Rodenberry, criador da série original, lançou o segundo seriado da franquia - Jornada nas Estrelas – A Nova Geração -, houve quem falasse: "- Sem Kirk, Spock & McCoy e com um capitão careca?!? Star Trek está morta!". Quando, em 2005, foi cancelada Jornada nas Estrelas – Enterprise, a quinta série da franquia, disseram: "- Star Trek está morta!". Quando J. J. Abrams reiniciou a franquia nos cinemas repaginando o conceito para o público do novo milênio em Star Trek (2009, quando deixaram efetivamente de traduzir seu nome por aqui), disseram mais uma vez: "- Star Trek está morta!". E agora, para não sair do padrão, quando se anunciou e começaram a surgir as imagens da nova série Star Trek - Discovery, novamente alardearam "- Esta não é a série que eu lembro. Star Trek está morta!". Donde concluímos que que a série está "morta" nada mais natural do que ter uma protagonista egressa de The Walking Dead...

*2: O sistema de propulsão por esporos e o uso de um “navegador biológico” (o “tardígrado” e depois, o próprio Ten. Stamets) criou a sua dose de polêmica por parte dos mais ortodoxos, que o batizaram de “pó de pirlimpimpim” em clara referência a Peter Pan, de J. M. Barrie, ou O Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato. Isto ocorreu por considerarem o uso dos esporos um artifício “muito viajante”, similar ao uso da “especiaria” em Duna, de Frank Herbert. Mas o conceito de dobra espacial nos anos 60, especulada com base na Teoria da Relatividade, parecia também algo “viajandão”, até os matemáticos o conceituarem como teoricamente possível. Então... Lembremo-nos que mostrar apenas “mais do mesmo” só por ser canônico não tem a ver com o espírito desbravador de Star Trek, afinal onde fica o “audaciosamente indo” ?

*3: Baseado nas pesquisas do Dr. Paul Stamets (homenageado no personagem da série) a partir de observações através do telescópio Hubble, interligamos conceitos da Biofísica Quântica, estudando a matéria, a energia, o espaço e o tempo. Somos apresentados a um elo entre a Física e a Biologia, que nos remete a uma a rede de cogumelos e fungos da Terra (o tal “Micélio”) que serve de modelo para a rede de estruturas que permeia o espaço-tempo (a “Cosmic WEB”), interligando todos os objetos a nível cósmico, possibilitando verdadeiros “túneis” de matéria escura. Seriam as estradas, veias, músculos e demais componentes do universo. Uau! Não sei se Gene Rodenberry ficaria fascinado com isso (provavelmente...), mas o Rei Jack Kirby soltaria rojões com esta conceituação teórica: “Assim como é em cima é em baixo”, a simetria entre o Microscópico e o Macroscópico.

*4: Exemplo disso é o momento estranho da tentativa de fuga da almirante Cornwell (Jayne Brooke) da nave klingon Si Vis Pacem, Para Bellum (Ep. 8) -, que ficou com parecendo um quadro de Os Trapalhões (só vendo...). Outro exemplo ocorre neste mesmo episódio, que seria para expandir Saru enquanto personagem, mas deixa muito a desejar neste quesito.

*5: Podemos dizer que, a despeito dos problemas, o saldo é positivo, lançando novas direções para a franquia com o estilo de série em longos arcos (em oposição ao estilo de episódios auto-contidos da maioria das séries anteriores). Mesmo com a concorrência de The Orville, uma série humorística com produção de Seth McFarlane (Family Guy) que emula visual e narrativamente Star Trek: The Next Generation e que está atraindo os fãs canônicos que apenas anseiam por mais do mesmo. Coisa similar ocorreu nos anos 90 quando Star Trek: Deep Space Nine concorria com Babylon 5, série de J. Michael Straczynski. São séries com muitas semelhanças estruturais e narrativas, mas todos saíram ganhando, pois cada uma a seu jeito possui ótimas narrativas de ficção científica, aventura, intriga política e especulações místico-filosóficas. Com uma honesta e saudável concorrência ninguém sai perdendo, afinal o opositor é só “o outro time”, não “o inimigo”.




Os fãs mais nostálgicos ainda tem a web-série Star Trek – Phase II (também chamado de Star Trek – New Voyages): um produto bem acabado com uma fidelidade extraordinária as premissas originais da franquia e que conta com o apoio e participação de vários membros do cast de atores, roteiristas e produtores da série dos anos 60. Um produto feito por fãs e para fãs da velha geração.