Caótico caleidoscópio cósmico
por Alexandre César
Sam Raimi firma o pé direito no MCU em grande estilo
Desde os seu surgimento no Universo Cinematográfico Marvel em 2016, Stephen Strange (Benedict Cumberbatch, de Ataque dos Cães, mostrando ser o maior ator do UCM) ou Doutor Estranho, o Mestre das Artes Místicas, foi gradativamente mostrando o seu valor enquanto personagem, ganhando o público com sua postura cerimoniosa, temperada com ironia e uma sutil e arrogante vaidade. Seu estilo é contrabalançado pelo bom senso do fiel, mas não subserviente Wong (Benedict Wong, de Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis), que agora é o Mago Supremo - cargo que ele passou a ocupar nos cinco anos em que Stephen (e metade do universo) havia sido desmaterializado pelo “estalar de dedos” de Thanos.
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A jovem America Chavez (Xochitl Gomez) é auxiliada por Wong (Benedict Wong) e Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) contra a grande ameaça que a persegue |
Comparecendo ao casamento de Christine Palmer (Rachel McAdams, de A Noite do Jogo), seu antigo amor de juventude, ele tem de encarar o fato de tudo que perdeu pelo somatório de suas escolhas de vida, como é bem apontado na cerimônia pelo Dr. Nicodemus West (Michael Stuhlbarg, de A Forma da Água), o seu antigo concorrente dos tempos de medicina. Logo o Doutor conhece a jovem America Chavez (Xochitl Gomez, de O Clube das Babás), que é perseguida por um monstro lovecraftiano*1. A garota possui o poder de viajar por entre os planos dimensionai - um poder cobiçado por Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen, de Terra Selvagem, dando vida e emoção a cada cena que aparece), a Feiticeira Escarlate, que, após os eventos de Westview em WandaVision, mergulhou de cabeça nos estudos do Darkhold*2 pois assim poderia ter acesso a seus filhos Billy (Julian Hilliard, de Penny Dreadful: Cidade dos Anjos) e Tommy Maximoff (Jett Klyne, de WandaVision)*3, frutos e sua união com o finado Visão, e inexistentes nesta realidade, mas não em outros universos.
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Strange vai ao casamento de Christine Palmer (Rachel McAdams) e tem de reconhecer que a perdeu por conta das escolhas de sua vida |
Uma vez que se fica evidenciado sua obsessão por esta ideia, Wanda não desistirá deste plano e resta a Stephen e Wong organizar as defesas do santuário de Kamar Taj*4, para proteger America Chavez. Durante esta jornada Estranho passa por várias realidades, conhecendo versões distintas de si mesmo e de entes queridos seus e dos fãs do Universo Marvel...
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Gargantus, como nos quadrinhos, é apenas um "Pau-mandado" e não a esperada versão do temível Shuma-Gorath |
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Logo
se descobre que quem está por trás disso é Wanda Maximoff (Elizabeth
Olsen) ,a Feiticeira Escarlate, possuída pelo Darkhold, o Livro maligno |
Dirigido por Sam Raimi (Trilogia Homem-Aranha, Darkman: Vingança sem Rosto), Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022) firma os dois pés do diretor no Universo Cinematográfico Marvel com a segurança narrativa que ele domina como poucos, aliando a sua vivência no terror dos tempos de Evil Dead, adaptando-a de forma a forçar os limites do PG-13. Raimi entrega uma aventura divertida que, graças ao roteiro de Michael Waldron (Loki) e Jade Halley Bartlett, sabe honrar o histórico do personagem criado pela dupla Stan Lee e Steve Ditko (que Raimi já havia referenciado anteriormente*5), e que, mesmo ainda envelopado na Fórmula Marvel, transpira em cada fotograma a sua assinatura autoral.
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Billy (Julian Hilliard) e Tommy Maximoff (Jett Klyne), os filhos de Wanda não existem no seu universo, mas em vários outros, o que a leva à querer tomar o poder de America Chavez |
Começando de forma vertiginosa, graças à edição de Bob Murawski (Oz: Mágico e Poderoso) e Tia Nolan (Sexy por Acidente) - que impõem um ritmo de urgência, mesmo nos momentos de respiro -, o filme nos leva a conhecer várias realidades e variantes de personagens conhecidos, como Karl Mordo (Chiwetel Ejiofor, de 12 Anos de Escravidão), que apresenta Strange aos Iluminati*6, equipe de seres notáveis que haviam sido reunidos pelo próprio Strange daquele mundo. Todos são bem caracterizados pelos figurinos de Graham Churchyard (Grotesque: Mistério e Assassinato), que materializa e reinterpreta os conceitos dos personagens nos quadrinhos e das animações para o live-action.
Como todo filme de Sam Raimi, temos uma participação especial de seu parceiro e amigo Bruce Campbell (Ash vs. The Evil Dead) nesta narrativa vertiginosa onde o humor é dosado de forma orgânica, não saindo da dose certa - o que é um grande mérito considerando-se as alterações ocorridas pela mudança da ordem de lançamento do filme e de seu anterior *7.
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Numa das realidades alternativas Stephen encontra Karl Mordo (Chiwetel Ejiofor) |
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Mordo leva Strange perante os Iluminati para ser julgado. A direção de arte é muito criativa no desenvolvimento dos universos altternativos |
A inspirada música de Danny Elfman (Dolittle) mostra saber (como poucas) a arte da criação de uma trilha sonora de filme de super-herói, com vários temas à serviço da trama, destacando a “batalha sinfônica”, que remete aos experimentalismos visuais de Fantasia (1940) da Disney, demonstrando uma criatividade ímpar.
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Em certo momento, Stephen tem de encarar uma versão alternativa sua que perdeu o rumo |
A bela e variada fotografia de John Mathieson (Pokémon – Detetive Pikachu) valoriza as locações na Columbia Britânica (Canadá), Surrey e Somerset (Inglaterra), Islândia e Noruega e, é claro, Nova York. O rico desenho de produção é de Charles Wood (Viúva Negra), com grande influência surrealista na sua transposição dos elementos do vocabulário formal do gênero terror. A decoração de sets de John Bush (MIB: Homens de Preto Internacional) detalha com os elementos de cena o Sanctum Sanctorum como uma casa mal-assombrada. A direção de arte de Julian Ashby (Vingadores: Ultimato), Thomas Brown (Vingadores: Guerra Infinita). Alice Biddle, Peter James (Liga da Justiça de Zack Snyder), Patrick Harris (Eternos), Julia Dehoff (Silent Witness), Mike Stallion (Artemis Fowl: O Mundo Secreto) e Mark Swain (Viúva Negra) criam ambientes saídos de sonhos e pesadelos, mesclando estilos arquitetônicos e históricos diversos em sua criação de mundos.
Visualmente rico, tanto na beleza quanto na feiura, os efeitos visuais de Capital T, Digital Domain, Framestore, Industrial Light & Magic (ILM), Luma Pictures, Perception, Proof, Snow Business International, Sony Pictures Imageworks, Crafty Apes e Trixter, supervisionados por Janek Sirrs (Homem-Aranha: De Volta ao Lar), Joel Behrens (Morbius) e Alexandre Cancado (Homem-Aranha: Sem Volta para Casa), dão sentido ao espírito do título do filme *8 ao ilustrar rapidamente as grandes possibilidades do conceito de multiverso - algo que, se bem explorado, poderá servir para se contar grandes e ricas histórias. Desde que que este conceito não se torne uma muleta narrativa, como muitas vezes fazem com o conceito da viagem no tempo.
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Os efeitos visuais, mantendo o padrão Marvel de qualidade, criam mundos fantásticos e palpáveis, plenos de realismo... |
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...contrastando com outros psicodélicos, dignos de uma viagem de ácido |
Embora não seja a enxurrada de fanservice pelo fanservice, que o marketing fez meio mundo acreditar, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura entrega grandes e bem colocadas referências à mitologia dos quadrinhos, aos livros de poder da Marvel, e à mitologia da Feiticeira Escarlate, que aparentemente conclui aqui seu ciclo trágico de forma digna e satisfatória (mas como é a Marvel sempre poderemos esperar um retorno) e ainda aponta ao final os novos rumos que o Mestre da Magia poderá tomar. Não perca uma das cenas de pós-créditos, que já pisa no acelerador apostando nisso e nos fazendo esperar que não demore a chegada de sua próxima aventura...
Notas:
*1: Muitos fãs acreditavam que o monstro tentacular de um olho só no filme, com tanto destaque nos trailers, seria uma versão da criatura dos quadrinhos da Marvel, que é um dos grandes vilões clássicos do Dr. Estranho conhecida como Shuma-Gorath, que ganhou este nome a partir de uma frase do conto de Robert E. Howard: A Maldição da Caveira de Ouro. Nos anos 90, chegou a ser um dos destaques nos video games da Marvel lançados pela Capcom. Talvez devido a questões de direitos entre a Marvel e o espólio de Howard, o monstro foi tenha sido renomeado como Gargantos, um outro monstro marinho nos quadrinhos da editora que apareceu apenas uma vez em uma aventura de Namor, o Príncipe Submarino. Curiosamente, no cinema o monstro é um vilão secundário, de menor importância, tal como o Gargantos dos quadrinhos.
*2: A primeira aparição do Darkhold nas HQS aconteceu no ano de 1972, no número 4 da revista Marvel Spotlight. O livro foi escrito por Chthon, o Deus Ancião que aprendeu os segredos da Magia do Caos há bilhões de anos, Após ele ser banido para outra dimensão, o livro como um “presente de grego” para a humanidade (e que pode como uma porta de retorno do velho deus ao nosso mundo). O tomo amaldiçoado já foi apresentado, logo de cara, como uma das mais poderosas ferramentas do mundo sobrenatural. Por esse motivo, o Doutor Estranho o mantinha guardado a sete chaves. Na quarta de temporada de Marvel´s Agents of S.H.I.E.L.D. o livro teve participação crucial na trama, num dos melhores arcos da Marvel fora do cinema.
*3: Nos quadrinhos, Billy Maximoff se torna o herói Wiccano com poderes similares aos de sua mãe e Tommy Maximof se torna o herói Célere, um velocista tal qual seu tio Pietro. Ambos estão entre os fundadores do grupo de heróis adolescentes Jovens Vingadores.
*4: Nas HQs, Kamar-Taj foi uma cidade criada como um lugar para feiticeiros e feiticeiras treinarem e controlarem seus poderes. As pessoas muitas vezes vão lá depois de serem quebradas ou danificadas, física e psicologicamente. Uma vez curados de suas feridas, eles podem escolher entre ingressar como Mestres das Artes Místicas ou retornar às suas vidas anteriores. ela surgiu pela primeira vez edição 110 da revista Strange Tales, nas HQs do Dr Estranho, ainda sob a batuta da dupla Stan Lee e Steve Ditko.
*5: Em Homem-Aranha 2 (2004), nos filmes antes do surgimento do MCU, Sam Raimi adicionou duas referências ao personagem Doutor Estranho: Joe's Pizza (onde Peter Parker está trabalhando no início da história) e o outdoor que mostra Mary Jane estão localizados na Bleecker Street - a rua onde o Sanctum Santorum está localizado nos quadrinhos. O título de “Doutor Estranho” para o vilão foi sugerido a J. Jonah Jameson como um possível nome para o Dr. Octavius, ao qual Jameson responde: "Já está registrado!"
*6: Nos quadrinhos, Os Illuminati era um grupo secreto originalmente composto do Senhor Fantástico, Homem de Ferro, Professor X, Doutor Estranho, Raio Negro e Namor. Eles se encontraram em segredo por vários anos, compartilhando informações e estratégias, além de agir de forma pontual, com o objetivo de evitar ou reduzir ações que poderiam causar perigo a toda a toda a Humanidade. O grupo foi relativamente bem sucedida inicialmente, apesar das características únicas e diferenças consideráveis em quase todos os sentidos dos membros do grupo. O Pantera Negra foi convidado a integrar a equipe, mas recusou dizendo que todos eles estavam sendo hipócritas por terem visões distintas de como deveria ser o futuro da Humanidade e que eles não tinham o direito de tomar para si o futuro do mundo.
*7: O filme, que é o 28° do Universo Cinematográfico Marvel, originalmente era para ser o 27°. A ordem de lançamento foi mudada por conta da pandemia da COVID-19. Por conta disso, muitos elementos do seu roteiro foram transportados para Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa, havendo mudanças da causalidade da fratura entre os universos, entre outros eventos.
*8: O título do filme No Multiverso da Loucura é uma brincadeira com o romance de terror de H.P. Lovecraft Nas Montanhas da Loucura, servindo como uma oportunidade de usar no título original em inglês (Doctor Strange in the Multiverse of Madness) uma aliteração, recurso que é marca registrada de Stan Lee (Stephen Strange, Bruce Banner, Matt Murdock, Peter Parker, Reed Richards, Susan Storm, etc.).
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"- Até que eu fiquei bonito no metal fundido..." |
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