sábado, 6 de março de 2021

Delírios da "subúrbia" - Crítica : WandaVision

 


A ascensão escarlate

 
por Alexandre César


 Série do Disney + abre novos caminhos no Universo Cinematográfico Marvel

  

Obs: Alguns spoilers

 

Comercial de margarina: Wanda Maximoff (Elisabeth Olsen) e Visão (Paul Bethany) vivem uma "vida perfeita" remontando às sitcons dos anos 50, 60, 70 e além

 Tendo surgido no agora distante ano de 2015 em Vingadores: Era de Ultron de Joss Whedon, Wanda Maximoff (Elisabeth Olsen de Godzilla) sempre foi uma sombra do verdadeiro potencial de sua persona heroica, a Feiticeira Escarlate, que nos quadrinhos foi de pivotal importância em sagas como Vingadores: a queda e Dinastia M, desempenhando praticamente apenas o papel da garota “estranha” que não controla bem as suas habilidades, e vive um amor proibido (e igualmente “estranho”) com Visão (Paul Bethany de Mestre dos Mares: O Lado Mais Distante do Mundo) o sintozóide feito de vibranium, cujo romance teve um desfecho trágico retratado nos eventos de Vingadores: Guerra Infinita (2018) e Vingadores: Ultimato (2019) de Anthony e Joe Russo, e após o conflito, ficamos sem saber como a imigrante de Sokovia seguiu a sua vida processando o luto das perdas de seu amado e de seu irmão Pietro Maximoff, o velocista Mercúrio

 

Mistérios no paraíso: Wanda e Visão vão ajustando a sua história para parecerem um casal "normal", mas pequenos "detalhes" vão surgindo...

Desde o início do primeiro episódio, ficava claro que Wandavision (2021) a minissérie da Disney+, escrita por Jac Schaeffer (As Trapaceiras) e dirigida por Matt Shakman (The Great), não seria facilmente digerida por novatos à franquia, pois logo de cara somos jogados na “vida perfeita” de Wanda Maximoff e do Visão, tentando passar por um casal comum na vizinhança suburbana de Westview, numa mise-en-scène similar à de sitcons como The Dick Van Dyke Show e I Love Lucy dos anos 1950 e 60 em preto-e-branco, com platéia e claques de riso, que causaram estranhamento e fizeram coro com as reclamações de que desde que o Universo Cinematográfico Marvel foi iniciado*1, “cada filme não concluía sua trama, e que sempre havia um gancho, ou perguntas que ficavam sem respostas.” 
 
No primeiro episódio à cores (parodiando "A Feiticeira" ) Wanda aparece grávida, em velocidade de gestação vertiginosa
 
 
 O que parte do público e da crítica não entendiam era que o UCM (como disse meu colega Sylvio Gançalves) "traduzia para as telas a narrativa contínua e entrelaçada com crossovers que foi iniciada lá atrás em 1963, quando, num dos primeiros números de sua revista, o Homem-Aranha conheceu o Tocha Humana" e que, gradativamente foi caracterizando o conceito de universo expandido, onde um indivíduo interagia com outro, afetando a sua história e vice-versa.
 
 
Além da versão oficial: Monica Rambeau (Teyonah Parris) e Darcy Lewis (Kat Dennings) se unem para apurar os fatos misteriosos

A despeito do desenrolar bobinho da trama, as coisas logo começam a ficar tensas e misteriosas (sendo o helicóptero de brinquedo colorido no contexto preto e branco com o símbolo de uma S.P.A.D.A. [S.W.O.R.D.*2] bem sugestivo), com pequenos detalhes que não se encaixam, levando à questionamentos quanto ao ambiente à sua volta, como a verdadeira razão de ser da firma onde o Visão trabalha ou quanto à data em que eles se casaram ou como no final do segundo episódio em que o tom foi ficando sinistro e então acontece um "voltar a fita" para deixá-lo num 'happy ending' quando ocorre a passagem do preto-e-branco para um colorido que remete ao technicolor

Agnes (Kahtryn Hahn) a "Vizinha enxerida" tem crucial importância na trama



Logo vão surgindo personagens recorrente de outros filmes da Marvel como Agente Jimmy Woo (Randll Park de Homem-Formiga e a Vespa) e a agora Doutora, Darcy Lewis (Kat Dennings de Thor: O Mundo Sombrio) cuja função é situar a nós espectadores o que de fato está acontecendo, não apresentando grandes desenvolvimentos de seus personagens (até porque as necessidades do roteiro da série não pedem isso) que unem forças com Monica Rambeau*3 (Teyonah Parris de Se a Rua Belle Falasse) para investigar o fenômeno que encapsulou a cidadezinha de Westview e que transmuta pessoas e objetos em versões “inofensivas” e dentro do contexto narrativo da época em que está se passando a trama. Logo fica claro para o trio que o Diretor da S.P.A.D.A. Tyler Hayward (Josh Stramberg de As Delícias da Tarde) tem intenções dúbias na maneira de abordar evento, manipulando as versões do fatos para que Wanda seja vilanizada, e assim ter a desculpa para poder usar de violência desmedida e, “armas de potencial poder de destruição”...

 

No Halloween, vemos os personagens trajados como suas versões dos quadrinhos

Enquanto isso em Westview Wanda e Visão lidam com seus vizinhos, que correspondem a tipos estereotipados como o esquisito, o gente-boa, ou Agnes (Kahtryn Hahn de Ms.Fletcher) a vizinha enxerida e o retorno do seu “falecido” irmão Pietro Maximoff/ (Evan Peters de X-Men: Apocalipse) agora repaginado*4. Além disso ela tem de lidar com o nascimeto e o crescimento acelerado de seus filhos Billy Maximoff (Julian Hilliard de Penny Dreadful: Cidade dos Anjos) e Tommy Maximoff (Jett Klyne de Arranha-Céu: Coragem Sem Limites) que logo manifestam seus poderes*5.
 
A direção de arte acerta ao mostrar a mudança tanto nos sets quanto nos figurinos de cada época

 Ao longo de seus nove episódios, conseguimos ver a heroína passando por todos os estágios do luto (o principal tema da série) da negação à aceitação, em uma crescente impressionante e ao mesmo tempo delicado, fugindo da solução fácil da “mulher louca”, explorando minuciosamente cada um dos traumas de Wanda Maximoff e explicando que suas ações vão muito além de um “surto” e mostrando o mais intenso desenvolvimento de Wanda e Visão desde suas estreias em Vingadores: A Era de Ultron de forma bem encaixada no contexto do UCM, ainda homenageando alguns dos maiores clássicos da comédia norte-americana, cuja fotografia de Jes Hall (Calmaria) brinca com os formatos de tela, adequando as proporções de acordo com o período histórico das sitcons referenciadas, em contraste com o das cenas exteriores à cidade, o mundo ”real” do UCM, onde o formato remete ao formato da tela de cinema. A edição de Zene Baker (É o Fim), Nona Khodai (Os Mercenários), Tim Roche (Silicon Valey), e Michael A. Weber (Amigos de Faculdade) da mesma forma reconstrói o ritmo narrativo, principalmente das aberturas, emulando cronologicamente o estilo narrativo de shows como A Feiticeira, Jeannie é Um Gênio,The Brad Bunch, Full House, Modern Family

 

Agnes (ou melhor, Agatha Harkness) dá uma aula de runas para Wanda...

Da mesma forma os figurinos de Mayes C. Rubeo (Thor: Ragnarok) marcam a transição das décadas, nos vestidos femininos de amplas saias rodadas dos anos 1950 e início dos 60, as pantalonas dos anos 1970 ou as coloridas e berrantes roupas de ginástica de Agnes (que mais adiante se revela sendo a feiticeira Agatha Harkness *6), bem dos anos 1980.

 

Billy e Tommy Maximoff (Julian Hilliard  e Jett Klyne) junto com os pais num momento "Os Incríveis"


O desenho de produção de Mark Worthington (Watchmen) auxiliado pela direção de arte de Sandra Doyle Carmola (Perseguição na Floresta), Sharon Davis (Criando Dion), Rachel Rob Kondrath (Por Que as Mulheres Matam), John Collins (Projeto Gemini) e Chikako Suzuki (Dollface), junto com a decoração de sets de Kathy Orlando (O Método Kominsky) passeando por estilos e gêneros de diferentes das sitcons de época, marcados pelas mudanças estéticas ocorridas no design de fachadas e interiores, seja no quesito arquitetônico, seja na mudança de estilo de móveis, utensílios, acessórios decorativos ou a disposição de elementos na decoração de interiores, fora os easter-eggs tanto em comerciais referenciando elementos do universo Marvel como em elemento cruciais como o Darkholm*7, o Livro dos Condenados que ainda deverá dar muito trabalho em futuras produções do estúdio.

 

Mulher de fases: ao logo da temporada percebemos as nuances do histórico de Wanda

 Olsen brilha as mostrar as facetas de sua protagonista, da mesma forma que Bethany tem momentos agora imortalizados como quando Visão reflete sobre a natureza do luto (“O que é o luto, senão o amor que perdura?”) e ao confrontar seu adversário levanta a questão filosófica do Barco de Teseu*8, acabando assim com a necessidade de luta; fora o belo momento de despedida do casal (“Você é minha tristeza e minha esperança, mas principalmente, você é meu amor”).

 

Do seu jeito vil, Agatha Harkness ajuda Wanda em sua jornada de auto-conhecimento

Complementando o aspecto visual da série os efeitos visuais da empresas Capital T, Monsters Aliens Robots Zombies, RISE Visual Effects Studios, Rodeo FX mantém o padrão Marvel de qualidade, mostrando o momento em que as pessoas “apagadas”, (entre elas Monica Rambeau) por Thanos ressurgem após os eventos de Guerra Infinita e Ultimato, os efeitos de transformação dos indivíduos e coisas quando adentram (ou são tragados) pela “bolha” de Westiview ou, quando os heróis e seus adversários partem para o confronto, embalados pela música de Christophe Beck (Frozen II) e Alex Kovacs (Horas de Agonia) que alternam os temas característicos às épocas televisivas com os típicos acordes de cenas heróicas de acordo com a necessidade narrativa, indo do grandiloquente ao minimalista, quando a série torna-se finalmente o equivalente a um longa-metragem de supers da Marvel (um dos melhores diga-se de passagem).

 

Página em branco: Descobrimos que Wanda não roubou o corpo do Visão...

Embora não tenha abordado em nenhum momento multiverso, os mutantes ou até o tão esperado (e especulado) Mephisto, Wandavision deixou todas essas portas ligeiramente abertas (sendo como todo bom filme do UCM, mais uma peça desse intricado quebra-cabeças) para serem escancaradas no futuro, contando uma história de perda, luto e aceitação, onde Wanda Maximoff finalmente se torna a Feiticeira Escarlate, seja para o bem, seja para o mal...

 

Ensino à distância: Wanda (agora realmente a Feiticeira Escarlate) segue seus estudos

 

Notas:
 
*1: Desde 2008 com a estréia de Homem de Ferro de Jon Favreau, até aqui (2021), o Marvel Studios e a agora extinta Marvel Television lideraram o movimento nerd de Hollywood com (até este momento) 23 filmes e 11 séries ligados à franquia baseada nos heróis dos quadrinhos da ‘Casa das Ideias’.
 
 

 
*2: A E.S.P.A.D.A. (um acrônimo para Equipe de Supervisão, Pesquisa, Avaliação e Defesa Alienigena) é uma agência de contraterrorismo e inteligência que lida com ameaças extraterrestres à segurança do mundo. A E.S.P.A.D.A. era uma subdivisão da S.H.I.E.L.D. mas parece ser altamente autônoma em relação a sua organização de origem. 
 
 

 
*3: Que nos quadrinhos adotou a identidade de Capitã Marvel (antes de Carol Danvers) e Fóton, aqui assumindo poderes mais condizentes com esta última encarnação. 
 
 

 
*4: Quando a 20th Century Fox (agora 20th Century Studios) detinha os direitos dos X-Men e do universo mutante, Evan Peters viveu o mutante Pietro Maximoff, o Mercúrio nos filmes X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido (2014), X-Men: Apocalipse (2016) e X-Men: Fênix Negra (2019) e neste período a Marvel reescreveu as origens tanto de Pietro quanto de Wanda como não-mutantes, mas indivíduos “aprimorados” por experimentos da H.Y.D.R.A. e sem vínculo com o mutante Magneto, que nos quadrinhos era seu pai. Com a compra tanto da Marvel quanto da Fox pela Disney, esse impedimento caiu por terra, e esperamos futuros projetos com os mutantes.  
 
 

 

*5: Nos quadrinhos Billy Maximoff se torna o herói Wiccano com poderes similares aos de sua mãe e Tommy Maximof se torna o herói Célere, um velocista tal qual seu tio Pietro.
 
 

 
*6: Nos quadrinhos Agatha Harkness é uma poderosa feiticeira, tendo sido babá de Franklin Richards (filho de Reed e Susan Richards do Quarteto Fantástico) e sido instruído Wanda Maximoff no uso de seus poderes, mantendo com ela uma relação volátil.
 
 

 
*7: Nos quadrinhos A primeira aparição do Darkhold aconteceu no ano de 1972, no número 4 da revista Marvel Spotlight. O livro, escrito por Chthon, o Deus Ancião que aprendeu os segredos da Magia do Caos, há bilhões de anos. Após ser banido para outra dimensão, Chthon deixou o livro como um “presente de grego” para a humanidade (e como uma porta de entrada para que ele possa retornar à Terra). O tomo amaldiçoado já foi apresentado, logo de cara, como uma das mais poderosas ferramentas do mundo sobrenatural. Por esse motivo, o Doutor Estranho o mantinha guardado a sete chaves, tendo participação crucial na quarta de temporada de Marvel´s Agents of S.H.I.E.L.D. onde, o livro movimentou bastante a série, num dos melhores arcos da Marvel fora do cinema. 
 

 
 
*8: O Navio de Teseu é uma paradoxo do pensador grego Plutarco, que propõe o seguinte desafio: Teseu parte de navio do ponto A para o ponto B. Mas, ao longo de uma viagem de 50 anos, vai substituindo cada peça do barco conforme esta se desgasta, até que todas tenham sido trocadas ao final da viagem, ficando a pergunta: Podemos dizer que o navio que chegou em B é o mesmo navio que saiu de A ou seria outro? Muitos filósofos tentaram solucionar o enigma. Heráclito comparou o navio e suas peças a um rio: suas águas são constantemente renovadas, mas ele é sempre o mesmo. Aristóteles estabeleceu que uma coisa como sendo definida por quatro causas: a formal, a material, a final e a eficiente, sendo que em sua análise, entre os pontos A e B, o navio só mudou a sua causa material (as peças trocadas), sendo então ainda o mesmo barco. Já Gottfried Leibniz concluiu que não, pois “X é o mesmo que Y se, e apenas se X e Y têm as mesmas propriedades e relações e tudo o que for verdade para X também é para Y ”. Já o filósofo John Locke (fonte de inspiração para o personagem de mesmo nome da série Lost) comparou o paradoxo a uma meia furada: Se o buraco for remendado, ela continuaria a ser a mesma meia? 
 

 
Na série descobrimos que o Visão de Westview é um construto das memórias de Wanda e que o Diretor Hayward reconstruiu o Visão original (o Visão branco), agora apenas uma máquina. Durante o confronto, os sintozoides usam o Paradoxo do Navio de Teseu para chegar a conclusão de que nenhum dos dois é o verdadeiro Visão, ao mesmo tempo que ambos são o mesmo Visão e neste momento o vingador criado por Wanda restaura os dados de memória de sua versão branca, que simplesmente vai embora deixando em aberto se ele recuperou somente suas memórias ou se também possui suas emoções e sentimentos por Wanda, sendo um enredo que possivelmente será explorado no futuro.  

 


 

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