terça-feira, 30 de março de 2021

Revoluções por minuto - Crítica: O Expresso do Amanhã - 2ª Temporada

 

Aumentando a marcha

 
por Alexandre César


 Série cresce ao adicionar conflito

 

Sr. Wilford (Sean Bean) como todo megalômano faz questão de criar um "mito" em torno de si. Atento, Andre Layton (Daveed Diggs atrás) observa o adversário


A vida de Andre Layton (Daveed Diggs de Ponto Cego) ex-detetive, convertido à líder revolucionário está numa encruzilhada. Logo após vencer a revolução à bordo do Snowpiercer (trem colossal que percorre o mundo num ciclo perpétuo com os últimos remanescentes da humanidade) e conseguir negociar a paz com a maquinista-chefe Melanie Cavill (Jennifer Connelly de Alita: Anjo de Combate) que ditava as ordens (à contragosto) com mão de ferro, eis que surge no rastro da composição o Big Alice, trem menor e mais robusto, que se engata na traseira hackeando os sistemas de bordo, comandada pelo misterioso Sr. Wilford (Sean Bean de O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel e Game of Thrones) que está disposto à todo custo retomar o poder que Melanie lhe havia roubado. Diferente do que pensávamos o dono do Snowpiercer estava bem vivo, apenas perseguindo o trem principal à distância para no momento certo reaver o poder e restabelecer a ordem vigente, com a sua hierarquia rígida e vertical, sendo um oponente bem superior às habilidades do líder fundista...


Mãe vs. Filha: Alexandra (Rowan Blanchard) e Melanie Cavill (Jennifer Connelly) estão em lados opostos. Rivais, mas não inimigas


Recomeçando logo em seguida aos eventos da temporada anterior, O Expresso do Amanhã, adaptação do filme de 2013 do diretor sul-coreano Bong Joon-Ho (O Hospedeiro, Parasita) baseado na graphic novel francesa Le Transperceneige (O Perfuraneve) de Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jen-Marc Rochette de 1982*1. Produzida pela TNT e aqui veiculada no streaming pela Netflix, a série deixa para trás as dificuldades da primeira temporada oriunda da troca de showrunners, e de emissoras (originalmente pela TNT, foi para a TBS, retornando depois para a TNT), roteiros reescritos, novas direções e tudo o que poderia dar errado*2 retomando o fôlego e ganhando força com a adição de uma grande força motriz: Um vilão de fato!

 

Xadrez: Por trás das gentilezas, Wilford se dispõe à remover Melanie Cavill, Layton e qualquer um que fique em seu caminho

 

Wilford, graças à performance de Bean é carismático, megalomaníaco e ardiloso, capaz de planos dentro de planos, rapidamente subvertendo a frágil ordem democrática instituída pela revolução de Layton, que percebe que manter um governo é mais complicado do que fazer uma revolução, coisa da qual Wilford se aproveita a cada momento, corroendo a autoridade de Layton e no melhor estilo da extrema direita, vai alimentando a mística em torno de si como o líder messiânico que vai “contra tudo isso que está aí!” e restaurar a ordem que “naquele tempo era melhor”, pouco importando que para manter a ordem existiam buracos para congelar os braços dos revoltosos e mutilá-los para manter as classes baixas no “seu lugar”...


Crime de ódio: Bes Till (Mickey Sumner) agora detetive do trem, investiga à mando de Layton, a mutilação de uma fundista, cujos dedos remanescentes lembram um "W"

Melanie, que descobriu no último episódio da primeira temporada flocos de neve, levanta a hipótese de o globo estar reaquecendo (Pois anteriormente estava tão frio que nem cristais de neve podiam se formar) e reencontra a filha, Alexandra (Rowan Blanchard de Em Um Mundo Distante), que pensava ter morrido quando deu o golpe em Wilford e não só a garota está viva como também (como toda adolescente rebelde, ela para partir o coração da mãe) tornou-se maquinista da Big Alice e uma ferrenha defensora de Wilford, que tira partido disso.


Josie (Kate McGuiness) é recuperada pelos médicos de Wilford e aconselhada por Miss Audrey (Lena Hall) à mudar de lado, como ela

 
Melanie argumenta a necessidade de estabelecer uma rede de balões meteorológicos conectados para formarem uma rede de monitoramento climático para que se possa estabelecer quando e onde o frio se retrairá até condições habitáveis, Projeto apoiado por Layton mas desdenhado por Wilford, que como todo líder negacionista, desdenha da ciência quando esta não atende a seus interesses. Após um meticuloso planejamento Melanie deixa o Snowpiercer por um mês para reativar uma estação de rastreamento e configurar a rede de monitoramento, para então ser resgatada quando na próxima volta ao mundo, o trem passar por aquele trecho. Este arco de isolamento de Melanie lidando a solidão, os seus fantasmas, a fome e as dificuldades técnicas da instalação mostram o quanto Jennifer Connelly vale o seu cachê, entregando uma interpretação precisa e sem maneirismos ou clichês interpretativos. O momento em que ela se despede de Layton e diz “Para esta missão dar certo, nós precisamos contar com a ciência, com os dados, e não com a minha sobrevivência!” é emblemático desses tempos de movimentos anti-ciência e anti-vacinas em que figuras míticas, “mitos” que querem “salvar” a todos ao custo da ignorância e ilusão das pessoas.


Os efeitos visuais criam belas cenas, como a que Alexandra e L.J.Folger (Annalise Basso) dão uma "fugida" e veêm a aurora boreal

Ao longo da temporada descobrimos que Josie Wellstead (Kate McGuinness de Raízes) “mãe” adotiva do aprendiz “Miles Miles” (Jaylin Fletcher de A Química do Amor) sobreviveu, estando muito queimada de gelo, Ruth Wardell (Alison Wright de Castle Rock) que originalmente nutria uma adoração messiânica pelo Sr. Wilford vai gradualmente revendo suas posições em virtude de observar as consequências de seus atos do passado para manter o status quo.

 

Ruth Wardell (Alison Wright) tem um bom arco de reavaliação de suas atitudes e escolhas


Um crime de ódio contra uma fundista leva Layton a promover Bess Till (Mickey Sumner de História de um Casamento) à função de investigadora encarregando-a de descobrir o complô orquestrado por Wilford na surdina, que culmina na morte de vários engenheiros (e apoiadores de Wilford) apenas para criar um sentimento anti-fundista, similar ao que os regimes totalitários fazem ao eleger um grupo como “inimigo” a se combater. Suas investigações lhe aproximam do Pastor Logan (Bryan Terrell Clark de Queen Sugar) que lhe alerta sobre um culto à figura de Wilford como o “grande salvador” capaz de colocar o trem de volta nos trilhos. Paralelo a isto o plutocrata reata a sua relação com Miss Audrey (Lena Hall de Girls) a chefe do cabaré que no passado fora sua acompanhante de luxo, vivendo um relacionamento abusivo, mas ao qual ela acaba retornando como que hipnotizada, coisa que Wilford faz com boa parte de seus subalternos.


A grande aventura de Melanie fora do trem tem o total apoio de Alndre Layton por acenar na possibilidade de um recomeço para todos

No centro deste complô estão as ações de Ice Bob (Andre Tricoteux de Deadpool 2) indivíduo alterado biologicamente pelos cientistas do Big Alice que consegue suportar as extremas (cerca de 80° negativos) temperaturas de fora do Snowpiercer, que provocam uma pane de sistema no trem, e que leva o engenheiro sobrevivente Boscovic (Aleks Paunovic de Van Helsing) a reconhecer que Wilford “criou uma dificuldade para vender uma facilidade”, pavimentando a sua volta como o salvador do trem, e a sua volta, é algo digno dos planos de Sheev Palpatine*3 de Star Wars, revelando grande conhecimento do trem e de como se deve fazer as coisas funcionarem (coisa surpreendente pois nós sempre pensamos que ele fosse apenas um homem de negócios) deixando o pobre Layton desmoralizado e recebendo palmas dos passageiros sem ter de disparar um tiro...


"Ice Bob" (Andre Tricoteux) foi alterado para suportar as baixíssimas temperaturas de fora do "Snow piercer"

Derrotado, Layton, negocia a sua prisão em troca da liberdade de sua companheira Zarah Ferrami (Sheila Vand de Argo), agora auxiliar de Ruth e grávida. Wilford logo vai impondo seu modo de governar, mandando Layton para a compostagem, onde fica limpando os esgotos dos trens (para humilhá-lo) e enviando os membros-chave do governo revolucionário, como Roche (Mike O´Malley de O Bom Lugar) chefe de operações de segurança e outros membros para as “gavetas” onde passageiros condenados ficam em hibernação induzida, deixando toda a 2ª e 3ª Classe atentas e gerando medo e ressentimento... o maquinista Bennet Knox (Ido Goldberg de Faith), auxiliar de Melanie, só não é mandado para lá por ser o maquinista, ficando em situação difícil.


O Pastor Logan (Bryan Terrel Clark) debate sobre fé e religião com Bess Till
 
 
Logo a “ordem” vai cobrando o seu preço, com sumiço de indesejáveis, realocação de pessoal para desarticular a oposição e Wilford, como todo fascista, vai revelando a sua cafonice arrogante, a sua falta de tolerância para as vozes discordantes e uma completa falta de senso de ridículo e sensibilidade, como quando converte um vagão num parque de diversões super brega e arma um teatro de fantoches (de gosto duvidoso) para mostrar a sua versão dos fatos, ridicularizando Melanie, se apresentando como um “Rei do Show” com cartola, fraque de lantejoulas e bigodinho pintado... Ponto para os figurinos de Caroline Cranstoun (Smallville) que refletem a decadência chique de Wilford e o tom vintage dos trajes de Audrey (refletindo o seu passado de atriz Burlesca), em contraste com os com os trajes padronizados, sóbrios, mas elegantes da Segunda Classe, os meramente funcionais da Terceira e dos soldados e, os trapos dos fundistas cujos tons pretos, cinzas, terrosos e sujos mostram a sua posição na “cadeia alimentar”...


O engenheiro Boscovic (Aleks Paunovic) toma o partido de Layton ao descobrir a verdade

Visualmente a fotografia de John Grillo (The Leftovers) e Thomas Burstyn (Salvation) continua o bom trabalho, contrastando os tons cinzas e azulados das entranhas do Expresso e agora também do Big Alice, cujo aspecto frio, impessoal e inóspito reflete a divisão verticalizada de classes, complementada pelo desenho de produção de Stephen Geaghan (Outra Vida) mantém e enriquece os ambientes já estabelecidos, e é criativo na criação dos espaços internos do Big Alice, cuja direção de arte de Susan Parker (V: Visitantes) e a decoração de sets de Bobbi Allyn (Fringe) aproveitam o espaço confinado que facilita a produção em termos orçamentários, revelando a funcionalidade austera de seus interiores, em contraste com a suntuosidade dos quartos de Wilford. A narrativa é auxiliada pela edição de Jay Prychidny (Orphan Black), Jamie Alain (Outra Vida), Justin Li (The Terror), e D.Gillian Truster (Anne with E) reflete no tom; às vezes contemplativo, como no “exílio” de Melanie, em outros momentos mais acelerado, e os efeitos visuais da Torpedo Pictures continuam ampliando este mundo gélido e solitário eficientemente, sublinhada pela trilha de The Haxan Cloak - Bobby Krlic (Midsommar: O Mal Não Espera a Noite) usando os sons mecânicos na atmosfera da música, mas que vai num crescendo nos momentos mais tensos.


A grande verdade se resume a colocar comida na mesa de todos, não só na de Wilford

Ao final da temporada O Expresso do Amanhã ganha fôlego e abre caminho para a próxima temporada, que promete uma escalada na luta pelo poder entre Layton e os fundistas contra Wilford e seus tenentes pois agora a revolução dispõe dos dados científicos do legado de Melanie e, de um trem veloz, como uma nau pirata para libertar os últimos passageiros.

O tempo vai esquentar...

 

A direção de arte continua criativa na exploração dos cenários já conhecidos


 

 

Notas: 

 *1: Que apresentava uma distopia com ótima alegoria sobre a luta de classes ao mostrar um mundo glacial, onde os remanescentes da espécie humana habitam um gigantesco trem em movimento contínuo numa volta ao mundo (num moto perpétuo) vivendo num sistema de castas em que os ricos têm ótimas acomodações, alimentação, e à medida que vamos descendo de classe social, o espaço, comida, etc... vão decaindo até chegarmos nos últimos vagões, onde os fundistas vivem como párias na fome, miséria e desesperança. Um quadro bem familiar a nós brasileiros.

 

*2: A série inicialmente tinha Josh Friedman (O Exterminador do Futuro: Destino Sombrio) como showrunner, que logo, em função das famosas “diferenças criativas”, foi substituído por Graeme Manson (Orphan Black) que embarcou no projeto, quando a série em sua segunda metade finalmente engrenou de maneira lógica e eficiente.

 

*3: Mais conhecido como Darth Sidious ou, Imperador Palpatine, que orquestrou o plano de criar o Movimento Separatista, que o levou a tornar-se o Supremo Chanceler da República Galáctica, e assim, assumir poderes emergenciais que lhe permitiram eliminar os Cavaleiros Jedi e instaurar o Império Galáctico. 



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