Grandioso mais do mesmo
por Alexandre César
Adaptação da distopia é visualmente bela, e só
Sendo uma das maiores distopias*1 já escritas Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, foi publicado em 1932, ambientado no ano 2540 (632 DF - "Depois de Ford" - no livro), o romance antecipou desenvolvimentos em tecnologia reprodutiva, hipnopedia, manipulação psicológica e condicionamento clássico, combinados para criar uma sociedade perfeita onde as pessoas são felizes, obrigatoriamente felizes vivendo para o prazer, sem vínculos individuais e, onde não há lugar para o questionamento de um mundo onde todos tem o seu lugar no corpo social, sendo desde a sua concepção in vitro condicionados à amar o seu lugar na pirâmide social. E, caso surja alguma dor ou angústia de qualquer ordem, sempre existe o soma, a panacéia que todos ingerem industrialmente, não importa a casta, para afastar as dúvidas e se deixarem possuir pela sensação de euforia e contentamento imediato.
A obra já havia sido adaptada numa minissérie em 1980 dirigida por Burt Brinckerhoff com Bud Cort, Marcia Strassman, Kristoffer Tabori, Julie Cobb e Ron O´Neal com um visual bem cartunesco (mas que funcionava no contexto satírico) e num telefilme de 1998 dirigido por Leslie Libman e Larry Williams com Peter Gallagher, Leonard Nimoy, Tim Guinee, Rya Kihlstedt e Sally Kirkland que, num tom estranho, procurava colocar o “Admirável Mundo Novo” como sendo o nosso mundo atual...
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O Alpha+ Bernard Marx (Harry Loyd) e a Beta+ Lenina Crowne (Jessica Brown Findlay) são indivíduos meio "fora da curva" dentro do corpo social |
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Juntos, vão fazer uma viagem de férias num lugar "diferente"... |
Agora temos esta série de 9 episódios criada por David Wiener (Fear The Walking Dead), Brian Taylor (Feliz!) e o quadrinista Grant Morrison produzida pela Amblin Television, NBCUniversal Content Studios, e UCP distribuída no streaming pela Peacock e Sky One e embora seja visualmente impecável e com boas idéias, no seu conjunto, carece de ficar muito vinculado a obras que vieram depois da obra original ( mas se basearam nela!) e caindo em soluções ora boas e ora questionáveis...
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...Onde seus habitantes teatralizam versões caricatas de instituições como casamento, monogamia, família, religião |
Acompanhamos Bernard Marx (Harry Loyd de Legion) Alfa + residente em Nova Londres, que se sente deslocado pois apesar de parte da casta superior, sente não atingir o seu pleno potencial. Ele convida a bela Lenina Crowne (Jessica Brown Findlay de Victor Frankenstein) Beta + que trabalha no Centro de incubação e condicionamento, que sempre se diz feliz por não ser uma Gama (ou uma Delta ou uma Épsilon). Seu relacionamento não deixa de parecer algo como se fosse um casal composto por Sheldon Cooper & Penny *2 . Lenina divide o apartamento com a Beta Frannie (Kyle Bunbury de A Noite do Jogo) sua amiga com quem toda noite vão para festas (tipo rave) se entregando à práticas orgiásticas, pois lá monogamia sexual é fator gerador de conflitos que ameaçam ao corpo social, sendo portanto estimulado (e condicionado) o sexo dissociado do vínculo emocional e reprodutivo, pois assim não existem famílias, posse e privacidade (aqui todos usam uma lente de contato que conecta a todos em rede, como se fossem Youtubers).
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John, o “Selvagem” (Alden Ehrenreich) e sua mãe Linda (Demi Moore), uma Beta + abandonada na "Reserva Selvagem" |
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A "Nova Londres" é bela e asséptica, numa boa mostra do CGI |
Bernard Marx leva Lenina para passear na “Reserva Selvagem” (na obra original Malpais), onde vivem seres humanos num patamar mais primitivo, (aqui percebemos o dedo de Grant Morrison) na verdade, um parque temático, tipo um “Jurassic Park” dos séc. XX / XXI, onde os “selvagens” vivem de forma caricata os absurdos da nossa sociedade como as liquidações de supermercados, ou um casamento forçado à base de coação armada. Lá durante uma revolta sanguinária, eles são resgatados por John, o “Selvagem” (Alden Ehrenreich de Han Solo: Uma História Star Wars) que tal qual eles não se sente pertencente à ordem local (mas aqui o personagem não tem aquele grande conhecimento de Shakespeare da obra original). Aqui a edição de Tom Hemmings (Drácula), Sacha Szarc (Collateral), Daniel Greenway (Humans), Johnny Rayner (Gangs of London), Dan Roberts (The Third Day) e Dominic Stevens (Dinheiro Sujo) acertam no senso de urgência e perigo iminente quando os sobreviventes se sentem à um fio da morte e não entendendo de fato o que se passa.
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O "Bravo Mundo Novo" é arborizado, arejado, como um shopping center com bom gosto... |
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... onde todos são felizes, ingerindo "soma" e fazendo sexo sem sem apego |
Bernard e Lenina descobrem que John, é filho de Linda (Demi Moore de Ghost), Beta + abandonada na reserva selvagem por Thomas GranBell (Ed Stoppard de As Crônicas de Frankenstein) um Alfa + , Diretor de Incubação e Condicionamento (D.I.C.) de Nova Londres, e desafeto de Berard Marx. A introdução de John (cujas atitude causam horror e fascínio nos habitantes do "mundo novo") e Linda ao mundo civilizado se mostra uma das peças do jogo de Mustafa Mond (Nina Sosanya de His Dark Materials) Chefe maior dos Alfas + +, Administradora Residente da Europa Ocidental e uma dos dez Administradores Mundiais (os outros nove, presumidamente, devem atuar em diferentes localidades do mundo.) que mede forças com Jane (Sophie McIntosh de Sem Saída), a face da Inteligência Artificial que controla toda a cidade. Ao final forma-se um triângulo entre John e Lenina, que se atraem, e Bernard, a ponta solta...
John, o "selvagem" se sente à parte deste mundo, ficando à vontade entre os Épsilons como CJack60 (Joseph Morgan) sendo observado como um animal no Zôo |
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Como "Youtubers": Nesta versão, todos se conectam através de uma lente de contato |
Dos personagens secundários, ainda se destacam Wilhelmina “Hell” Watson (Hannah John-Kamen de Tomb Raider: A Origem) criadora de conteúdo das festas, que se apaixona pela emoções passionais que John exibe em suas memórias, Henry Foster (Sem Mitsuji de Altered Carbon) diretor, Alfa +, Administrador de Incubação e rival de Bernard Marx e CJack60 (Joseph Morgan de The Originals) Épsilon da limpeza que no embalo das transgressões de John, lidera uma revolta sangrenta, como se os Épsilons tivessem capacidade cognitiva e intelectual para poderem romper com o seu condicionamento destoando bastante aqui da obra original*3.
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Mustafa Mond (Nina Sosanya) e o Diretor (Ed Stoppard). O contraste entre os luminosos e elegantes escritórios dos Alphas... |
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... os laboratórios do "Centro de incubação e condicionamento" dos Betas, de aspecto mais técnico, ou... |
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...o cubículo do Épsilon CJack60 mostram os acertos da direção de arte da série |
A direção trabalha corretamente as performances de seus intérpretes, que no geral têm um tom meio frio, pois como vivem num ambiente condicionado de felicidade instantânea e descartável, todos nunca parecem ter um apego verdadeiro a qualquer coisa, tendo um “quê” da nossa “geração mi mi mi”, mas sem o espernear desta felizmente. Destaque para interpretação de Harry Loyd, fazendo de Bernard Marx e sua relação com, John, o "Selvagem", com quem se afeiçoou. Porém, não foi a empatia o que despertou o interesse de Bernard, uma simbiose divertida, e o seu ciúme da ligação dele com Lenina, uma mescla de atitudes que vão da infantilidade a uma malícia planejada, já que após ser salvo pelo "Selvagem", o fato de levá-lo para a civilização lhe renderia prestígio diante da sociedade científica, e à medida que este ganha visibilidade, Bernard vai ficando enciumado. Já Alden Ehrenreich faz de John, o "Selvagem” um indivíduo fechado, que inicialmente entra no jogo da celebridade e paparicação, pegando todas (coisa bem diferente da obra original mas neste contexto é até aceitável) até cansar de relacionamentos vazios e assumir que quer mesmo uma vida estável com Lenina. Por não se encaixar de fato, passa longo períodos de ócio sentado num parque , em meio aos Épsilons, sendo observado pelos Alphas e Betas (como observamos os animais no zoológico) ou ainda a sua relação com Gary (Matthew Aubrey de Deep Water) o criado Delta cujo conflito entre a fidelidade à John e o seu condicionamento rendem bons momentos de comédia dramática como quando ele começa a fazer tortas para John compulsivamente.
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Mustafa Mond criou uma Inteligência Artificial com planos próprios para a humanidade... |
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Wilhelmina “Hell” Watson (Hannah John-Kamen) potencial nas memórias de John |
Nesta versão há um grande espaço de desenvolvimento de Lenina Crowne, que graças a performance de Jessica Brown Findlay se revela um personagem interessante, por saber que seus questionamentos “remam contra a maré” ela procura criar uma fachada de bem ajustada, a “Beta + perfeita”, sempre disponível, saindo e tendo relacionamentos fúteis para poder se entregar a John e viver um relacionamento monogâmico (e ilegal) evitando assim o risco de sofrer um
recondicionamento, procedimento à que a sua colega Frannie recorre após entrar em parafuso pela mudança de atitude da amiga, voltando “resetada” como um robôzinho...
recondicionamento, procedimento à que a sua colega Frannie recorre após entrar em parafuso pela mudança de atitude da amiga, voltando “resetada” como um robôzinho...
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John inicialmente curte o "Mundo Novo" mas logo se frustra com aquela "felicidade" imposta |
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Bernard Marx e a Beta+ Wilhelmina “Hell” Watson tem uma relação de amizade curiosa |
A fotografia de Andrew Commis (Anjo Meu), Carl Sundberg (The Bridge) e Gustav Danielsson (Black Mirror) contrastam a luz mais estourada de tons quentes da “Reserva Selvagem” com a mais suave e fria da “sociedade perfeita” onde os figurinos de Susie Coulthard (Polar) marcam de forma elegante as classes dominantes com seus paletós e vestidos finos e definem de forma funcional as classes mas servis com seus trajes ou macacões de trabalho.
O desenho de produção de David Lee (Watchmen) junto com a direção de arte de Julian Luxton (O Cavalo dos Meus Sonhos) e Katie MacGregor (Watchmen) e a decoração de sets de Poppy Luard (Watchmen) compõem espaços que enfatizam a diferença dos mundo da “Reserva Selvagem” toda mal acabada e de segunda mão, com a asséptica ”Nova Londres” toda elegante nos escritórios dos Alphas (que nada devem aos de grandes executivos) e demais instalações sociais, os laboratórios dos Betas, mais funcionais até aos refeitórios e cubículos habitacionais dos Épsilons, totalmente utilitários, de concreto e aspecto fabril. A ambientação é habilmente expandida pelos efeitos visuais das empresas Any Effects, Lidar Lounge que define bem esta “terra de sonhos” limpa, equilibrada e até genérica em sua similaridade com outras distopias já vistas nas telas do cinema e agora, no streaming.
Ao final, Admirável Mundo Novo é eficiente, mas termina de forma abrupta por tentar expandir sua história além de seus 9 episódios, pois ao introduzir a rebelião dos habitantes da “Reserva Selvagem” contra os turistas de Nova Londres, e uma inteligência artificial que planeja introduzir um fator desagregador nesse “mundo feliz” que está inviabilizando a espécie humana. Esta atitude, junto com a revolta dos Épsilons, ecoa similaridades com o massacre final da primeira temporada de Westworld, e tais desdobramentos são esquecidos no meio da série para só retornarem com um gancho para a uma possível 2ᵃ temporada (já descartada pelo estúdio) deixando em aberto o destino final de seus protagonistas. Talvez se houvesse um 10° episódio de fechamento desses arcos a série funcionasse bem melhor.
Notas:
*1: Junto a 1984 de George Orwell e Farenheit 451 de Ray Bradbury, são consideradas as três grandes distopias literárias do século XX.
*2: Personagens de The Big Bang Theory
*3: No original de Huxley, os Épsilons são na fase embrionária criados num ambiente de pouco oxigênio, de forma que se desenvolvam com baixa capacidade intelectual, sendo projetados como trabalhadores braçais, que o condicionamento pavloviano faz com que não almejem ser nada mais do que isto. Os "peões de obra" ideais, que obedecem ás ordens sem questionar.
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