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terça-feira, 30 de agosto de 2022

O Ator-Personagem - Crítica - Filmes: O Peso do Talento (2022)

 


Um Nicolas Cage para chamar de seu

por Alexandre César

Astro ri de si mesmo em filme divertido mas é desigual
 


O astro de cinema Nick Cage (Nicolas Cage de A Cor que Caiu do Espaço) passa por um momento difícil. Está criativamente insatisfeito e enfrentando a ruína financeira, sentindo-se estagnado tanto na carreira quanto na relação com sua filha Addy Cage (Lily Mo Sheen de Estão Todos Bem) e sua ex-esposa Olivia (Sharon Horgan de A Noite do Jogo). Tentando resolver as coisas, ele aceita a oferta de 1 milhão de dólares para marcar presença na festa de aniversário de um fanático fã: O apaixonado e perigoso Javi (o ótimo Pedro Pascal de O Mandaloriano). Só que as coisas tomam um rumo inesperado quando Cage é recrutado por Vivian, uma agente da CIA (Tiffany Haddish de Sócias em Guerra). Ele, sentindo-se entre a cruz e a espada, sente que tem de viver de acordo com a sua própria lenda, usando os ensinamentos dos seus personagens para salvar a si mesmo e aos que ama. 

 

Nick Cage (Nicolas Cage)é um astro em crise, com um grande potencial, mas estagnado em sua carreira e vida pessoal



Dirigido por Tom Gormican (Namoro ou Liberdade), que também assina o roteiro ao lado de Kevin Etten (Workaholics), O Peso do Talento (2022) estabelece dois objetivos bem claros: fazer humor com essa situação absurda entre Nicolas Cage e seu fã máximo, e homenagear o ator. Gormican, obviamente fã confesso de Cage, sabe o carinho e a conexão que os fãs tem com o ator, fazendo um filme apaixonado (ainda que desigual entre proposta e resultado final) com a trama cheia de easter eggs e referências sobre o trabalho do astro, fazendo uma experiência de metalinguagem desde a primeira cena, indo de referências a Con-Air: Rota de Fuga (1997), e seu tema “How do I Live” por Trishia Yearwood, e passando por objetos de cena e diálogos marcantes de sua carreira. 

 

Little Nicky é o personagem imaginário que lhe relembra que ele é uma estrela, e lhe cobra para que aja como uma, resgatando seus anseios juvenis.




Para quem está acostumado a ver Nicolas Cage em altíssimo nível de canastrice em “filmes” como Jiu-Jitsu (2020), Na Rota do Tráfico ou Instinto Predador (ambos de 2019) (entre muitos outros...) deve ser difícil imaginar o quanto que ele é um ótimo ator, que tinha tudo para ser um "Top de linha" de Hollywood. E olha que ele fez filmes que marcaram época. Lembremos dos tempos de Con-Air: Rota de Fuga, A Outra Face (ambos de 1997), A Rocha (1996). Isso sem contar filmes agradáveis e até poéticos como Feitiço da Lua (1987), Atraídos pelo Destino (1994) ou Peggy Sue, seu Passado a Espera (1986). Mas, como “a vida é uma caixinha de surpresas” e, por esses descaminhos do destino, o astro acabou seguindo por um caminho questionável, optando por dar prioridade à projetos duvidosos e filmes sem qualidade artística. Principalmente depois de alguns grandes fracassos (A Lenda do Tesouro Perdido: Livro dos Segredos de 2007 e O Aprendiz de Feiticeiro de 2010). Parecia que Cage estava fadado ao fracasso, até que, nos últimos anos, ele começou a dar a volta por cima, quando protagonizou o ousado, criativo e estranho Mandy: Sede de Vingança (2018) um filme que mexeu com cinéfilos ao redor do mundo, seguido com o ótimo A Cor que Caiu do Espaço (2019), o estranho e divertido Willy's Wonderland: Parque Maldito e o potente Pig: A Vingança (ambos de 2021), mostrando gradativamente que seu inferno astral estava passando. 

 

Nick topa um trampo para pagar as dívidas, mas no meio do caminho é abordado por Vivian, uma agente da CIA (Tiffany Haddish) e se vê numa senhora encrenca



Agora, temos esta comédia de ação divertida, inesperada, e muito boa, misturando a homenagem à Cage e sua carreira com bom humor numa fórmula altamente eficiente, que ri das referências junto com Cage e com a audiência, apesar de desigual em sua totalidade. 

 

Nick encontra em Javi (Pedro Pascal) um fã apaixonado e perigoso, criando grande cumplicidade



Não faltam referências aos mais diversos filmes de Cage, que se ajustam perfeitamente à história indo da cena da piscina de Despedida em Las Vegas (1995) até Os Croods 2: Uma Nova Era (2020) havendo assim, um Nicolas Cage para cada faixa etária de fã, havendo ainda o seu alter ego mais jovem, Little Nicky (com rejuvenescimento digital do ator) que é referenciado da época de Um Estranho Vampiro (1988). Nicky seria o seu “Grilo Falante”, a sua consciência que lhe relembra que ele é uma estrela, cobrando-lhe que aja como uma, rendendo deste embate ótimas cenas. 


A paródia a cenas e situações da filmografia de Cage corre solta


 

Cage é o ponto central da narrativa, apesar da excelente participação de Pascal, que faz do grande fã Javi uma criança grande, fascinada ao se deparar com seu ídolo numa atuação corajosa, sem amarras, numa broderagem boba, mas divertida. 

 

O filme conta com astros como Demi Moore (como ela mesma) em cenas rápidas



 

Contudo, apesar de um começo muito engraçado (com algumas sacadas realmente espirituosas) e extremamente promissor, a narrativa vai aos poucos, perdendo a força no meio inconsistente (apesar da hilária cena das drogas) e em seu terceiro ato, o filme se transforma totalmente, inserindo bem mais ação, tiroteio e investigações ao invés do humor propriamente dito, ficando com um tom que lembra aqueles filmes da Cannon Group Inc.*1 que passavam nas noites de domingo na Rede Globo na década passada, passando a estranha sensação de que o filme é um tanto quanto desconjuntado, sem conseguir se manter nas ideias iniciais (como muitos dos filmes que ironicamente fazem parte da filmografia de Nicholas Cage) terminando num final OK, mas que perde a força em comparação a seu início.


Ao final, Nick só quer se acertar com sua filha Addy Cage (Lily Mo Sheen) e sua ex-esposa Olivia (Sharon Horgan) que ainda ama


 

Dentre os coadjuvantes, se destacam A terapeuta de Nick (Joanna Bobin de Bridgerton), Gabriela (Alessandra Mastronardi de Carla), a jovem fã sequestrada e Richard Fink (Neil Patrick Harris de Matrix Ressurections) o agente de Nick Cage e ainda temos Demi Moore e o diretor David Gordon Green, que dirigiu Cage em Joe (2013), aparecendo como eles mesmos, no velho esquema do “filme dentro do filme”.


No auge da crise, o astro percebe que "somente sendo Nicolas Cage" ele poderá escapar

 

 

‘Vestindo a camisa’ da brincadeira que o filme é, a edição de Melissa Bretherton (A Dama e o Vagabundo) é eficiente, e dá a ligeireza que a direção pede, apoiada na fotografia de Nigel Bluck (True Detective), que capta a beleza das locações, acompanhada pela música de Mark Isham (Judas e o Messias Negro) que sublinha a narrativa, mas dando um “quê” de farsesco, traduzido em termos visuais, tanto pelo desenho de produção de Kevin Kavanaugh (John Wick 3: Parabellum) quanto pela direção de arte de Andres Cubillan (Apresentando os Ricardos), Zsuzsa Kismarty-Lechner (Operação Red Sparrow), Kristof Pataricza (Borderlands) e János Szárnyas (The Witcher); que têm o artificialismo típico de um “Filme B”, enfatizado pela decoração de sets de Jennifer M. Gentile (Station Eleven) Letizia Santucci (Casa Gucci), Zsuzanna Sipos (Duna) e Beth Wooke (None of the Above) e pelos figurinos cafonas de Paco Delgado (Morte no Nilo) dialogando com o tom de ”filme de Nicholas Cage” com que a película brinca, coroado pelos efeitos visuais de CoSA VFX, MAS, Pyrite, supervisionados por Jamison Goei (Navalny), Christopher Lance (Criando Dion), Adam Rowland (Landscapers), que são artificiais na medida certa. 

 

Um dos destaques é o uso do CGI para rejuvenescer o ator no personagem "Lttle Nicky"



Desigual, divertido, ousado, e até disruptivo, O Peso do Talento é uma boa experiência em seu conjunto. O filme, que desde sua estreia se tornou uma vitória*2 para a carreira de Nicolas Cage, colocando o astro em outro nível, numa mostra de como ele está transformando sua imagem aos poucos. Afinal, apenas um ator bem humorado aceitaria fazer um filme em que Nicolas Cage vive Nicolas Cage, em um filme com Nicolas Cage... 


O Peso do Talento está disponível no Google Play Filmes e TV, na Apple TV e no You Tube.


Notas:



 

 

*1: Cannon Group Corporation era uma produtora de filmes de baixo e médio orçamento, tendo como principais produtores os israelenses Menahen Golan e Yoran Globus. Na década de 80 as produções da Golan-Globus reinavam no mercado de VHS (aqui no Brasil pela América Vídeo e pela Warner Home Video), com filmes de Jean-Claude Van Damme, Chuck Norris, Charles Bronson, Dolph Lundgren, Michael Dudnikof, entre outros. Golan dizia que “- Os filmes de milhões de dólares nunca dão prejuízo!”




*2: O Peso do Talento foi exibido no festival de cinema SXSW, nos EUA, conseguindo um índice de aprovação crítica de 100% no agregador Rotten Tomatoes. Segundo o The Hollywood Reporter, o longa é, até agora, a produção com melhor avaliação entre os mais de 100 filmes da carreira de Nicolas Cage.

"- É doentio Javi você ter uma estátua minha, por isso quero comprá-la de você, para completar a minha coleção... "


 

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

A sensualidade da carne (COM SPOILERS) - Crítica – Filmes: Crimes do Futuro (2022)



 

Provocador aos olhos, mas pedia mais

por Alexandre César 


Cronenberg entrega um "trecho" de uma história maior 
 
 

 


Numa bela praia desolada, com um grande navio tombado de lado, Brecken (Sotiris Siozos), um menino, brinca na água enquanto ao longe ouve seus pais discutindo em sua ampla casa. 

 

O contraste entre a beleza da paisagem natural e do menino Brecken (Sotiris Siozos) e a decadência dos engenhos do homem

 

À noite, Djuna (Lihi Kornowski, de Malkot), mãe do menino, vê seu rebento alimentar-se de um balde plástico como se fosse a coisa mais banal do mundo, e espera que ele durma para sufocá-lo em seguida, desnorteando o pai, Lang Dotrice (Scott Speedman, da série Anjos da Noite). 

 

À noite, o menino faz um "lanchinho" (plástico) e sela seu destino

Saul Tenser (Viggo Mortensen) em seu "casulo" e sua parceira Caprice (Léa Seydoux )


No dia seguinte somos apresentados a Saul Tenser (Viggo Mortensen, da trilogia O Senhor dos Anéis) que sofre de “Síndrome da Evolução Acelerada”. Isso faz o seu corpo desenvolver órgãos extras e ela está se espalhando pelo seu corpo rapidamente. Ao abraçar este estado, ele tornou-se um amado artista performático. Junto com sua parceira Caprice (Léa Seydoux, de 007: Sem Tempo Para Morrer), ele transformou a remoção desses órgãos em um espetáculo para seus fiéis seguidores se maravilharem, num bizarro teatro em tempo real. 


Saul Tenser tem o problema de crescimento anômalo de orgãos internos, que ele remove cirurgicamente em suas performances



No contexto do filme, num futuro não tão distante, a humanidade está aprendendo a se adaptar ao seu novo ambiente sintético. Essa evolução move os humanos para além de seu estado natural, levando-os a uma metamorfose (ou mutação) que altera sua composição biológica. Enquanto alguns abraçam o potencial ilimitado do trans-humanismo, outros, através da NVU (Nova Unidade Vice), uma agência do governo, que instituiu a tatuagem de registro de órgãos para regular as extrações de órgãos parassimpáticos. Com isso procuram policiar a prática, pois o que era uma questão de saúde pode se tornar potencialmente uma questão política. 

 

Caprice monitora diariamente o crescimento dos órgãos de Tenser, muitos deles de função desconhecida

Funcionários do Registro Nacional de Órgãos, Wipper (Don McKellar) e sua assistente Timlin (Kristen Stewart) são fãs do trabalho de Saul Tenser

Os limiares da dor sumiram e se tornou comum a “Cirurgia de Desktop”, mania de autocirurgia (e automutilação) recreativa. Saul Tenser faz suas performances (operadas por Caprice) numa mesa Sark - um equipamento lendário (já fora de linha) em forma de casulo de inseto, que originalmente era habilitada para operar autópsias. Paralelo a isso, Tenser mantém contato com o Detetive Cope (Welket Bungué, de Mudança), da Vice, pois é sondado por Lang Dotrice para que faça uma autópsia no corpo de Brecken e revele ao mundo a grande mudança iminente.

 

A dupla Router & Berst (Nadia Litz e Tanaya Beatty, ao centro), funcionárias da Life Form Ware, admiram a cama Sark de Tenser, usada para autópsias

 

Tenser entrevista na prisão a mãe assassina, que considera o filho “uma abominação". Causando divisões no governo, este movimento questiona o parâmetro de “normalidade” e surge uma estranha subcultura de pessoas que brincam com seus órgãos de forma mundana. Saul Tenser é forçado a considerar aquela que seria a sua performance mais chocante. 

 

Gore: As performances de Saul Tenser são muito concorridas, tal a técnica empregada...


... chamando a atenção do pai de Brecken, Lang Dotrice (Scott Speedman), que lhe propõe uma performance única


Produzido (entre outros) por Robert Lantos (Senhores do Crime) e Victor Hadida (Rambo: Até o Fim) e escrito e dirigido por David Cronenberg (A Mosca), Crimes do Futuro (2022) é a volta do mestre ao body horror*1, depois de mais de duas décadas. E ele ainda sabe muito bem desestabilizar o mainstream, num belo e provocante retorno ao subgênero que o consagrou, num filme que soa como um resumo de sua carreira do ponto de vista visual. Com sua estranheza e suas máquinas e instrumentos bizarros, o longa-metragem remete a obras anteriores de sua filmografia, como Videodrome: A Síndrome do Vídeo (1983), Gêmeos - Mórbida Semelhança (1988), Mistérios e Paixões (1991) e Existenz (1999). Seu lado gore remete a Scanners: Sua Mente Pode Destruir (1981) e A Mosca (1986). Do ponto de vista temático, a sua obsessão em pensar a sensualidade da carne continua, não como mero coito (A certa altura um personagem afirma que: “A cirurgia é o novo sexo”), e sim o desafio sensorial e filosófico de explorar os limites do corpo humano. 

 

Caprice manipula os controles com maestria na extração dos órgãos de Tenser


 

Mortensen repete aqui a parceria com Cronenberg de Marcas da Violência (2005), Senhores do Crime (2007) e Um Método Perigoso (2011), e cria um personagem insólito, seja por sua composição, seja pelas limitações que as circunstâncias lhe impuseram*2

 

No meio das performances cirúrgicas, Saul Tenser é uma celebridade, sendo cultuado por muitos como Tinlim, gerando ciúmes em Caprice
 
Odile (Denise Capezza) amiga de Caprice a leva à ousar novos rumos em sua área


Da galeria de tipos do filme, se destacam: Wipper (Don McKellar, de Ensaio Sobre a Cegueira), funcionário do Registro Nacional de Órgãos, e sua assistente Timlin (Kristen Stewart, de Ameaça Profunda), ambos funcionários públicos que se sentem atraídos pela subcultura da mudança corporal; a dupla Router (Nadia Litz, de Private Eyes) e Berst (Tanaya Beatty, de Yellowstone), funcionárias da Life Form Ware (fabricante do software do equipamento operatório de Saul); O Dr. Nasatir (Yorgos Pirpassopoulos, de Beckett), médico que inscreve Saul no “Concurso de Beleza Interior” pelo governo; Odile (Denise Capezza, de Baby), amiga de Caprice que a introduz no meio da mudança corporal; Tarr (Jason Bitter, de Kart postal appo to telos tou kosmou), membro do movimento que produz a “bananada” roxa de que eles e Lang Dotrice se alimentam; Klinek (Tassos Karahalios), o “homem-orelhas”; e Adrienne Berceau (Ephie Kantza, de Im Feuer), a coordenadora de biomorfologia que diz a Saul Tenser que o design é ineficiente, pois as orelhas são só decorativas. 

 

O Detetive Cope (Welket Bungué) checa os registros de Saul Tenser na repartição de Wipper e Tinlim e quaestiona a "arte" de seu trabalho



A edição de Christopher Donaldson (O Conto da Aia), ao longo da 1 hora e 47 minutos do filme, realça o tom narrativo lento, por momentos, e contemplativo de Cronenberg, sublinhada pela bela e melancólica música de Howard Shore (das trilogias O Senhor dos Anéis e O Hobbit), que dá um tom de tragédia grega para se conectar aos nossos temores climáticos atuais com sua trama distópica. 

 

Cope se encontra secretamente com Saul Tenser numa doca abandonada. A direção de arte cria um mundo decadente,atemporal...


...onde prédios e ambientes deteriorados se fundem com tecnologias modernas e analógicas

O desenho de produção de Carol Spier (Círculo de Fogoe a direção de arte de Dimitris Katsikis (Alter Ego), trabalham com uma produção visivelmente de baixo orçamento, criando máquinas de aspecto insectóide, biomecânico e até alienígena. Kimberley Zaharko (X-Men: Fênix Negra) e a decoração de sets de Dimitra Sourlantzi (Umbilical), dão um tom atemporal e um aspecto de estranheza às locações de Piraeus, na Grécia, filmada lá por uma questão prática e orçamentária. A fotografia de Douglas Koch (Sensitive Skin) valoriza a beleza ensolarada desta ambientação. Mas Cronenberg sabe aproveitar as restrições do mundo real a seu favor, nos apresentando a um “futuro próximo”, de prédios decadentes e de arquivos de papel, um híbrido entre o hi-tech e o analógico, que facilmente passaria como a Interzone*3 do Naked Lunch, de Wiliam S. Burroughs, numa outra época. 

 

"- Sou todo ouvidos": Klinek (Tassos Karahalios), o “homem-orelhas”, impressiona pelo trabalho de maquigem prostética


Os figurinos de Mayou Trikerioti (Crimes Obscuros) mesclam um tom de atemporalidade, remetendo ora a trajes funcionais tipo operário dos anos 50, ora a outros como os modelos negros de Saul com manto e capuz, de aspecto medieval, que até lembra alguns usados em Star Wars



 Neste mundo, devido aos avanços da medicina as sensações de dor extrema cessaram, o que leva a um crescente movimento de explorar as mudanças corporais 

Saul Tenser e Caprice exploram os limites da excitação sensorial, pois o sexo tradicional está caindo em desuso

 

Obviamente, como num body horror que se preze, um grande destaque vai para as próteses e efeitos de maquiagem por Alahouzos Studio e Black Spot FX, com design de maquiagem de Alexandra Anger (O Beco do Pesadelo) e Monica Pavez (Slasher), além dos sutis efeitos visuais de Rocket Science VFX, supervisionados por Peter McAuley (Funny Boy).

 

Uma tecnologia interessante é o "anel câmera" que registra e grava as performances, de forma similar aos nossos celulares

 

Potente em sua proposta, mas incompleto em sua totalidade, Crimes do Futuro mais parece ser um recorte, a primeira parte de algo maior. O contexto de mudança evolutiva nos seres humanos não deixa de flertar com o conceito da mutação em outras obras da cultura pop, como os X-Men, só que aqui mesclada às esquisitices próprias do diretor. Mas faltam peças do contexto macro deste roteiro intrigante, dando a impressão de ser um capítulo intermediário de um livro.  Isso nos faz indagar mais sobre o antes e o depois do enredo mostrado, além de seus possíveis desdobramentos, que o olhar coberto de lágrimas, e aliviado de Saul na cena final nos passa. 

Crimes do Futuro está disponível na Google Play Filmes e TV.


O maior órgão sensorial é a pele

Uma epifania gastro-interior...




Notas:




*1: Body Horror é um subgênero do cinema de horror em que as mutilações e transformações 
corporais dos personagens são um dos focos principais da narrativa.
 
 
 

 
*2: Viggo Mortensen sofreu um trauma quádruplo quando atingido por um cavalo não 
participante no American Kentucky Derby e, como resultado, não conseguiu ficar em pé 
por períodos superiores a dois minutos. Isso resultou em seu personagem constantemente 
ajoelhado enquanto fazia exposições e monólogos. 

 


*3: Naked Lunch (traduzido no Brasil como Almoço Nu) é um romance de William S. Burroughs
 publicado originalmente em 1959. Ele foi filmado por David Cronenberg (Mistérios e Paixões 
de 1991). Burroughs apresenta nesta obra imagens e situações que aos poucos se tornam 
familiares, onde o leitor é atirado de uma espelunca urbana cheia de viciados, para o coração de 
uma floresta e depois para uma cidade, que mais parece a projeção paranóica de qualquer grande 
metrópole no mundo. Eventualmente ele leva o leitor a Tânger e ao sonho "Interzone" - cidade habitada por espiões,
 indivíduos devassos, criaturas bizarras e escritores boêmios. Estas locações são extraídas da 
experiência própria de Burroughs e sua dependência de drogas. Passo a passo, o leitor vai percebendo
 que não está lendo apenas um depoimento de um ex-viciado, mas toda a vida do autor e suas rebeliões, além 
de sua crítica feroz ao Imperialismo norte-americano. O autor também disserta sobre os mais variados temas — do 
político ao amor romântico. 



 
"- Hoje no Videodrome: Me retalhei em muitos pedaços, e hoje  somos todos felizes!!!"

 

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Sonhar é preciso - Crítica - Séries: The Sandman - 1ª Temporada


Tirando a areia dos olhos

por Alexandre César 


Adaptação é um dos grandes acertos da Netflix do ano

 


Surgido a 34 anos desde a sua primeira edição, Sandman, Clássico absoluto de Neil Gaiman (Belas Maldições), passou por inúmeras tentativas de adaptação em live-action ao longo dos anos. Gaiman, extremamente protetor em relação à trama que criou para a Vertigo (antigo selo adulto da DC Comics) passou décadas dispensando e sendo dispensado por estúdios e produtores interessados na história de Morpheus (ou Sonho) e seus irmãos Perpétuos*1

 

Sandman, no traço de Sam Kieth, com sua algibeira, contendo a poeira mágica que nos põe a sonhar


Ao final, a equipe coordenada pelo próprio Gaiman, ao lado de David S. Goyer (Fundação) e Allan Heinberg (The Catch), fez jus ao material, numa primeira temporada extremamente positiva, apesar de algumas mudanças poderem incomodar os fãs mais radicais do material-raiz. Essas pequenas, mas pertinentes mudanças, (inclusive desconectando-o da continuidade do Universo DC*2) atualizam e permitem que a história se traduza com naturalidade para a TV e (em quase nada) alteram a história de Sandman, limitando-se a dar uma personalidade mais marcante a alguns dos personagens que cercam o protagonista.


Sonho, ou Morpheus (Tom Sturridge) é capturado por um culto de feiticeiros e amarga 103 anos de cativeiro

 

A série conta com 10 episódios e aborda os dois primeiros arcos da HQ: Prelúdios & Noturnos (episódios de 1 a 6) e Casa das Bonecas (episódios de 7 A 10) e segue a mesma trama que os quadrinhos: Sonho dos Perpétuos (Tom Sturridge de Irma Vep em sutil e eficiente performance e com o tom de voz certo) é capturado num ritual de magia das trevas por Roderick Burgess (Charles Dance de Game of Thrones sempre ótimo), que o aprisiona por mais de um século. Quando escapa, o debilitado Morpheus, o Rei dos Sonhos sai em uma jornada para recuperar seu poder e restaurar seu reino, que se estagnou por sua ausência, e trazer de volta as entidades que escaparam, dentre eles um pesadelo particularmente perigoso chamado Coríntio (o ótimo Boyd Holbrook de O Predador), que saiu pelo mundo, se tornando um assassino serial. Morpheus, em sua jornada para recuperar seus artefatos, cruzará com personagens díspares como Johanna Constantine (Jenna Coleman de Doctor Who), John Dee (David Thewlis de Mulher-Maravilha arrepiante em sua composição) culminando numa ida para o meio do Inferno, duelando com Lúcifer Estrela da Manhã (Gwendoline Christie de Game of Thrones). 

 

Muitas cenas da série são perfeitas transcrições das imagens dos quadrinhos


Após recuperar seus artefatos, Morpheus (ou Sonho) retoma a busca pelo Coríntio, tendo que lidar com os estragos que sua ausência causou aos seres humanos, pois, qual é a importância dos sonhos? Eles mantêm o equilíbrio entre nossas esperanças e medos, anseios e terrores, memórias e dores. É durante a sua ausência, que ocorreu uma moléstia, a Doença do Sono, que fazia as pessoas dormirem, e não acordarem, enquanto outras enlouqueciam por não dormirem (e sonhar). Desse fato, se origina Rose Walker (Vanesu Samunyai) bisneta de Unity Kincaid (Sandra James-Young de His Dark Materials: Fronteiras do Universo) vítima da Doença do Sono, e que busca seu irmão Jed Walker (Eddie Karanja de Jack and the Beanstalk: After Ever After) pois desde o divórcio de seus pais, sua família foi desmembrada. Em meio a isto ainda ocorrem as maquinações de Desejo (Mason Alexander Park de Cowboy Bebop com um visual Lady Gaga vitaminado), que assumem um papel antagônico mais explícito, com seus “joguinhos” com Sonho dando o tom de uma rivalidade em família ausente da HQ original. 

 

Lucienne (Vivienne Acheampong) a bibliotecária do Sonhar, revela a Morpheus como está o seu reino, que tem como ilustres moradores, os irmãos Cain (Sanjeev Bhaskar) e Abel (Asim Chaudhry), protagonistas da"Primeira História Contada"


Da galeria de personagens da série, se destacam Hob Gadling, o imortal (Ferdinand Kingsley de Mank), que mostra a Morpheus a importância de se ter um amigo; Matthew, o corvo (voz de Patton Oswalt de The Boys), e Lucienne (Vivienne Acheampong de The One) a bibliotecária do Sonhar, que têm mais espaço para manter Morpheus “na linha”; os irmãos Cain (Sanjeev Bhaskar de Belas Maldições) e Abel (Asim Chaudhry de Mulher-Maravilha 1984) e em pequena participação, Merv Pumpkinhead (Mark Hamill de Star Wars: Os Últimos Jedi) zelador do Sonhar, e Gilbert (o sempre ótimo Stephen Fry de V de Vingança) um tipo pitoresco. 

 

Johanna Constantine (Jenna Coleman) está de posse de um dos itens de Morpheus, e o entrega a pós um dramático desenlace pessoal 

 

Mas como o maior de todos personagens, e com destaque no melhor episódio, temos a Morte (a ótima Kirby Howell-Baptiste de Cruella) que é uma personagem tocante, sendo uma Perpétua forte, porém doce e compreensiva, que nunca esconde seu fascínio pelo amor dos humanos pela vida. 

 

Procurando seu elmo, Morpheus acaba indo para o Inferno...

...onde duela com Lúcifer Estrela da Manhã (Gwendoline Christie) para reavê-lo

Os antagonistas de Sandman funcionam, cada um à sua maneira, como espelhos distorcidos da humanidade, bem delineados pelos figurinos de Sarah Arthur (Sherlock) que enfatiza a elegância do Coríntio, que exala charme e perigo, o aspecto perturbado de John Dee, que em seu fanatismo vê sempre o pior do homem, levando sua visão ao limite durante o tenso quinto episódio, o mais gore da temporada, além do aspecto etéreo de Lúcifer, afinal antes de cair no Inferno ele/ela era um anjo...


Tédio: Após reaver suas coisas e "arrumar a casa" Morpheus se sente-se sem rumo, sendo aconselhado por sua irmã mais velha, a Morte (Kirby Howell-Baptiste)



Mas, por melhores que sejam as atuações e adaptações à tela, a série infelizmente sofre com um claro problema de ritmo, sendo que a edição de Kely Stuyvesant (Helstrom), Shoshanah Tanzer (Jessica Jones) e Jamin Bricker (The Game), oscila na passagem de tempo entre as cenas e a não-lineariedade da história. tendo alguns momentos cortados de forma abrupta, para serem continuados posteriormente, quase como se fosse um parêntese na história. No quadrinho, o ritmo de leitura dessas quebras de cena ou “vai e volta” do roteiro são mais suaves e sutis, mas na série, os cortes secos e sem explicação, deixam uma incômoda sensação de “ué?! Acabou?” e que dificulta ao espectador refletir sobre o significado da história, ao final de cada arco. Várias vezes é citado que Morpheus (ou Sonho) ficou preso “por mais de um século”, não havendo um envelhecimento correspondente dos personagens, ficando só um pouco melhor contado (mas ainda meio mal explicado) no terceiro episódio. 

 

Após escapar do Sonhar, Coríntio (Boyd Holbrook) deixa de ser apenas um pesadelo, e prospera como Serial Killer



A fotografia de Will Baldy (The Pact), Sam Heasman (Doctor Who) e George Steel (Os Aeronautas) acerta o tom da narrativa em sua palheta de cores e uso de luz e sombras, indo do onírico, passando ao lúdico, e caindo no tenebrista (e até gore). 


Os gêmeos Desespero (Donna Preston) e Desejo (Mason Alexander Park) tramam contra Morpheus

John Dee (David Thewlis) originalmente era um vilão da DC



A música de David Buckley (Evil: Contatos Sobrenaturais) é boa, com passagens líricas e sinuosas em seu tema principal, incluindo em sua trilha, hits como ”Skeletons” de Brothers Osborne, “Together” (Wherever We Go) com Judy Garland e Liza Minelli, ‘’Sweat Dreams“ de Patsy Cline, "Red Comes in Many Shades” de U.S.Girls, “She Drives Me Crazy” de Fine Young Cannibals entre outros, coisa que a obra original nos anos oitenta já antecipava, sempre fazendo citação a alguma música ao longo de seu texto, chegando quase que a fazer uma playlist a cada revista. 

 

Hob Gadling, o imortal (Ferdinand Kingsley) constrói uma amizade com Morpheus ao longo dos séculos

 

O desenho de produção de Jon Gary Steele (Outlander), junto com a direção de arte de Nicki McCallum (Outlander), Lydia Farrel (Murder), Sandra Phillips (007: Sem Tempo Para Morrer), Luke Whitelock (Cruella), Patricia Johnson (Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw) Danny Rogers (Avenue 5) e Kevin Timon Hill (A Crônica Francesa) geralmente são eficientes na criação de seus ambientes como o Sonhar, valorizado pela decoração de sets de Lisa Chugg (Enola Holmes) e Liz Griffiths (Avenue 5) e o Inferno (aqui calcado nas descrições de Dante Alighieri*3 em A Divina Comédia) acertando o clima necessário de sua caracterização, embora em alguns momentos, tais ambientações sejam demasiadamente “limpas”, tirando um pouco o peso dessas imagens, fazendo falta o tom mais sujo que a HQ entrega. 

 

Gilbert (Stephen Fry) é um personagem excêntrico de origem misteriosa

 

Os efeitos visuais de Industrial Light & Magic, Important Looking Pirates, Rodeo FX, Framestore VFX, One of Us, Union VFX, Resonance Digital Inc.,Untold Studios, Chicken Bone FX, supervisionados por Ian Markiewicz (Krypton) flutuam em seu aspecto estético, apesar do orçamento generoso da série (cerca de US$165 milhões), variando o CGI tanto quanto seu ritmo narrativo, alternando entre criaturas fantásticas belíssimas com cenários digitais claramente artificiais, mas que pessoalmente não me incomodou tanto assim, dando um certo charme cafona à série tal qual Doctor Who, série para a qual Gaiman já escreveu um episódio. 

 

Lucienne, Matthew, o corvo (voz de Patton Oswalt) e Merv Pumpkinhead (voz de Mark Hamill) zelador do Sonhar dão suporte à Morpheus

O Inferno. O CGI da série varia do altamente realista ao artificial, a despeito do bom orçamento


Um espetáculo à parte é ter o lendário Dave McKean (o capista do quadrinho original) nos créditos dos episódios, que reforça a noção de familiaridade desse universo narrativo. 


O capista Dave McKean, é responsável pelos créditos da série


Ao final, a primeira temporada de Sandman, embora seja menos reflexiva e não provoque o mesmo impacto que o quadrinho original de 1988, consegue corresponder a boa parte das expectativas que a cercavam, e mostra que a espera de Gaiman e dos fãs não foi à toa, entregando momentos intrigantes e emocionantes, graças a seu elenco engajado, sendo a oportunidade ideal para que, por conta da série, uma nova geração de leitores se disponha a conhecer a obra (e se encantar) com o trabalho original do autor.


Direção de arte: O castelo de Desejo reflete a sua personalidade narcisista



Obs: Talvez o maior problema da série seja devido à forma como a Netflix promove seus lançamentos. Ao liberar toda a temporada de uma vez só, a plataforma sugere uma maratona que, embora pareça divertida no papel, é exaustiva na prática. É claro, que lançar os episódios semanalmente não resolveria o problema, mas tornaria a experiência de assistir - e digerir - a série menos desgastante.

A série alterna momentos líricos com o horror, indo ao gore,


 

Notas:




*1: Na mitologia da série, os Perpétuos são entidades antropomórficas de vários aspectos da existência, sendo a sua existência anterior à dos próprios deuses, compondo esta família Destino (Destiny), Morte (Death), Sonho (Dream), Destruição (Destruction), os gêmeos Desejo (Desire), e Desespero (Despair), e a caçula Delírio (Delirium), sendo todos filhos das entidades Dia e Noite



*2: Originalmente o personagem fazia parte da continuidade do universo regular da editora, inclusive havendo participações do Caçador de Marte, citações à Liga da Justiça, e inclusive John Dee era originalmente um vilão recorrente, chamado Doutor Destino (Doctor Destiny, diferente do vilão da Marvel, que é Doctor Doon) internado no Asilo Arkhan, e na série virou o filho renegado de Roderick Burgess com sua amante Ethel Cripps (Joely Richardson de Operação Red Sparrow),
sendo estas referências removidas na adaptação, por questões contratuais e também por que o próprio Gaiman já nos quadrinhos havia optado por cortar este vínculo.



*3: Dante Alighieri (Florença, entre 21 de maio e 20 de junho de 1265, - 13 ou 14 de setembro de 1321) foi um escritor, poeta e político florentino, nascido na atual Itália. É considerado o primeiro e maior poeta da língua italiana, definido como il sommo poeta ("o sumo poeta"). Disse o escritor e poeta francês Victor Hugo (1802-1885) que o pensamento humano atinge em certos homens a sua completa intensidade, e cita Dante como um dos que "marcam os cem graus de gênio". E tal é a sua grandeza que a literatura ocidental está impregnada de sua poderosa influência, sendo extraordinário o verdadeiro culto que lhe dedica a consciência literária ocidental sendo a sua obra máxima A Divina Comédia (La Divina Commedia, originalmente Comedìa e, mais tarde, denominada Divina Comédia por Giovanni Boccaccio) é um poema de viés épico e teológico da literatura italiana e mundial, escrito no século XIV e dividido em três partes: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. 

 

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