quinta-feira, 25 de agosto de 2022

A sensualidade da carne (COM SPOILERS) - Crítica – Filmes: Crimes do Futuro (2022)



 

Provocador aos olhos, mas pedia mais

por Alexandre César 


Cronenberg entrega um "trecho" de uma história maior 
 
 

 


Numa bela praia desolada, com um grande navio tombado de lado, Brecken (Sotiris Siozos), um menino, brinca na água enquanto ao longe ouve seus pais discutindo em sua ampla casa. 

 

O contraste entre a beleza da paisagem natural e do menino Brecken (Sotiris Siozos) e a decadência dos engenhos do homem

 

À noite, Djuna (Lihi Kornowski, de Malkot), mãe do menino, vê seu rebento alimentar-se de um balde plástico como se fosse a coisa mais banal do mundo, e espera que ele durma para sufocá-lo em seguida, desnorteando o pai, Lang Dotrice (Scott Speedman, da série Anjos da Noite). 

 

À noite, o menino faz um "lanchinho" (plástico) e sela seu destino

Saul Tenser (Viggo Mortensen) em seu "casulo" e sua parceira Caprice (Léa Seydoux )


No dia seguinte somos apresentados a Saul Tenser (Viggo Mortensen, da trilogia O Senhor dos Anéis) que sofre de “Síndrome da Evolução Acelerada”. Isso faz o seu corpo desenvolver órgãos extras e ela está se espalhando pelo seu corpo rapidamente. Ao abraçar este estado, ele tornou-se um amado artista performático. Junto com sua parceira Caprice (Léa Seydoux, de 007: Sem Tempo Para Morrer), ele transformou a remoção desses órgãos em um espetáculo para seus fiéis seguidores se maravilharem, num bizarro teatro em tempo real. 


Saul Tenser tem o problema de crescimento anômalo de orgãos internos, que ele remove cirurgicamente em suas performances



No contexto do filme, num futuro não tão distante, a humanidade está aprendendo a se adaptar ao seu novo ambiente sintético. Essa evolução move os humanos para além de seu estado natural, levando-os a uma metamorfose (ou mutação) que altera sua composição biológica. Enquanto alguns abraçam o potencial ilimitado do trans-humanismo, outros, através da NVU (Nova Unidade Vice), uma agência do governo, que instituiu a tatuagem de registro de órgãos para regular as extrações de órgãos parassimpáticos. Com isso procuram policiar a prática, pois o que era uma questão de saúde pode se tornar potencialmente uma questão política. 

 

Caprice monitora diariamente o crescimento dos órgãos de Tenser, muitos deles de função desconhecida

Funcionários do Registro Nacional de Órgãos, Wipper (Don McKellar) e sua assistente Timlin (Kristen Stewart) são fãs do trabalho de Saul Tenser

Os limiares da dor sumiram e se tornou comum a “Cirurgia de Desktop”, mania de autocirurgia (e automutilação) recreativa. Saul Tenser faz suas performances (operadas por Caprice) numa mesa Sark - um equipamento lendário (já fora de linha) em forma de casulo de inseto, que originalmente era habilitada para operar autópsias. Paralelo a isso, Tenser mantém contato com o Detetive Cope (Welket Bungué, de Mudança), da Vice, pois é sondado por Lang Dotrice para que faça uma autópsia no corpo de Brecken e revele ao mundo a grande mudança iminente.

 

A dupla Router & Berst (Nadia Litz e Tanaya Beatty, ao centro), funcionárias da Life Form Ware, admiram a cama Sark de Tenser, usada para autópsias

 

Tenser entrevista na prisão a mãe assassina, que considera o filho “uma abominação". Causando divisões no governo, este movimento questiona o parâmetro de “normalidade” e surge uma estranha subcultura de pessoas que brincam com seus órgãos de forma mundana. Saul Tenser é forçado a considerar aquela que seria a sua performance mais chocante. 

 

Gore: As performances de Saul Tenser são muito concorridas, tal a técnica empregada...


... chamando a atenção do pai de Brecken, Lang Dotrice (Scott Speedman), que lhe propõe uma performance única


Produzido (entre outros) por Robert Lantos (Senhores do Crime) e Victor Hadida (Rambo: Até o Fim) e escrito e dirigido por David Cronenberg (A Mosca), Crimes do Futuro (2022) é a volta do mestre ao body horror*1, depois de mais de duas décadas. E ele ainda sabe muito bem desestabilizar o mainstream, num belo e provocante retorno ao subgênero que o consagrou, num filme que soa como um resumo de sua carreira do ponto de vista visual. Com sua estranheza e suas máquinas e instrumentos bizarros, o longa-metragem remete a obras anteriores de sua filmografia, como Videodrome: A Síndrome do Vídeo (1983), Gêmeos - Mórbida Semelhança (1988), Mistérios e Paixões (1991) e Existenz (1999). Seu lado gore remete a Scanners: Sua Mente Pode Destruir (1981) e A Mosca (1986). Do ponto de vista temático, a sua obsessão em pensar a sensualidade da carne continua, não como mero coito (A certa altura um personagem afirma que: “A cirurgia é o novo sexo”), e sim o desafio sensorial e filosófico de explorar os limites do corpo humano. 

 

Caprice manipula os controles com maestria na extração dos órgãos de Tenser


 

Mortensen repete aqui a parceria com Cronenberg de Marcas da Violência (2005), Senhores do Crime (2007) e Um Método Perigoso (2011), e cria um personagem insólito, seja por sua composição, seja pelas limitações que as circunstâncias lhe impuseram*2

 

No meio das performances cirúrgicas, Saul Tenser é uma celebridade, sendo cultuado por muitos como Tinlim, gerando ciúmes em Caprice
 
Odile (Denise Capezza) amiga de Caprice a leva à ousar novos rumos em sua área


Da galeria de tipos do filme, se destacam: Wipper (Don McKellar, de Ensaio Sobre a Cegueira), funcionário do Registro Nacional de Órgãos, e sua assistente Timlin (Kristen Stewart, de Ameaça Profunda), ambos funcionários públicos que se sentem atraídos pela subcultura da mudança corporal; a dupla Router (Nadia Litz, de Private Eyes) e Berst (Tanaya Beatty, de Yellowstone), funcionárias da Life Form Ware (fabricante do software do equipamento operatório de Saul); O Dr. Nasatir (Yorgos Pirpassopoulos, de Beckett), médico que inscreve Saul no “Concurso de Beleza Interior” pelo governo; Odile (Denise Capezza, de Baby), amiga de Caprice que a introduz no meio da mudança corporal; Tarr (Jason Bitter, de Kart postal appo to telos tou kosmou), membro do movimento que produz a “bananada” roxa de que eles e Lang Dotrice se alimentam; Klinek (Tassos Karahalios), o “homem-orelhas”; e Adrienne Berceau (Ephie Kantza, de Im Feuer), a coordenadora de biomorfologia que diz a Saul Tenser que o design é ineficiente, pois as orelhas são só decorativas. 

 

O Detetive Cope (Welket Bungué) checa os registros de Saul Tenser na repartição de Wipper e Tinlim e quaestiona a "arte" de seu trabalho



A edição de Christopher Donaldson (O Conto da Aia), ao longo da 1 hora e 47 minutos do filme, realça o tom narrativo lento, por momentos, e contemplativo de Cronenberg, sublinhada pela bela e melancólica música de Howard Shore (das trilogias O Senhor dos Anéis e O Hobbit), que dá um tom de tragédia grega para se conectar aos nossos temores climáticos atuais com sua trama distópica. 

 

Cope se encontra secretamente com Saul Tenser numa doca abandonada. A direção de arte cria um mundo decadente,atemporal...


...onde prédios e ambientes deteriorados se fundem com tecnologias modernas e analógicas

O desenho de produção de Carol Spier (Círculo de Fogoe a direção de arte de Dimitris Katsikis (Alter Ego), trabalham com uma produção visivelmente de baixo orçamento, criando máquinas de aspecto insectóide, biomecânico e até alienígena. Kimberley Zaharko (X-Men: Fênix Negra) e a decoração de sets de Dimitra Sourlantzi (Umbilical), dão um tom atemporal e um aspecto de estranheza às locações de Piraeus, na Grécia, filmada lá por uma questão prática e orçamentária. A fotografia de Douglas Koch (Sensitive Skin) valoriza a beleza ensolarada desta ambientação. Mas Cronenberg sabe aproveitar as restrições do mundo real a seu favor, nos apresentando a um “futuro próximo”, de prédios decadentes e de arquivos de papel, um híbrido entre o hi-tech e o analógico, que facilmente passaria como a Interzone*3 do Naked Lunch, de Wiliam S. Burroughs, numa outra época. 

 

"- Sou todo ouvidos": Klinek (Tassos Karahalios), o “homem-orelhas”, impressiona pelo trabalho de maquigem prostética


Os figurinos de Mayou Trikerioti (Crimes Obscuros) mesclam um tom de atemporalidade, remetendo ora a trajes funcionais tipo operário dos anos 50, ora a outros como os modelos negros de Saul com manto e capuz, de aspecto medieval, que até lembra alguns usados em Star Wars



 Neste mundo, devido aos avanços da medicina as sensações de dor extrema cessaram, o que leva a um crescente movimento de explorar as mudanças corporais 

Saul Tenser e Caprice exploram os limites da excitação sensorial, pois o sexo tradicional está caindo em desuso

 

Obviamente, como num body horror que se preze, um grande destaque vai para as próteses e efeitos de maquiagem por Alahouzos Studio e Black Spot FX, com design de maquiagem de Alexandra Anger (O Beco do Pesadelo) e Monica Pavez (Slasher), além dos sutis efeitos visuais de Rocket Science VFX, supervisionados por Peter McAuley (Funny Boy).

 

Uma tecnologia interessante é o "anel câmera" que registra e grava as performances, de forma similar aos nossos celulares

 

Potente em sua proposta, mas incompleto em sua totalidade, Crimes do Futuro mais parece ser um recorte, a primeira parte de algo maior. O contexto de mudança evolutiva nos seres humanos não deixa de flertar com o conceito da mutação em outras obras da cultura pop, como os X-Men, só que aqui mesclada às esquisitices próprias do diretor. Mas faltam peças do contexto macro deste roteiro intrigante, dando a impressão de ser um capítulo intermediário de um livro.  Isso nos faz indagar mais sobre o antes e o depois do enredo mostrado, além de seus possíveis desdobramentos, que o olhar coberto de lágrimas, e aliviado de Saul na cena final nos passa. 

Crimes do Futuro está disponível na Google Play Filmes e TV.


O maior órgão sensorial é a pele

Uma epifania gastro-interior...




Notas:




*1: Body Horror é um subgênero do cinema de horror em que as mutilações e transformações 
corporais dos personagens são um dos focos principais da narrativa.
 
 
 

 
*2: Viggo Mortensen sofreu um trauma quádruplo quando atingido por um cavalo não 
participante no American Kentucky Derby e, como resultado, não conseguiu ficar em pé 
por períodos superiores a dois minutos. Isso resultou em seu personagem constantemente 
ajoelhado enquanto fazia exposições e monólogos. 

 


*3: Naked Lunch (traduzido no Brasil como Almoço Nu) é um romance de William S. Burroughs
 publicado originalmente em 1959. Ele foi filmado por David Cronenberg (Mistérios e Paixões 
de 1991). Burroughs apresenta nesta obra imagens e situações que aos poucos se tornam 
familiares, onde o leitor é atirado de uma espelunca urbana cheia de viciados, para o coração de 
uma floresta e depois para uma cidade, que mais parece a projeção paranóica de qualquer grande 
metrópole no mundo. Eventualmente ele leva o leitor a Tânger e ao sonho "Interzone" - cidade habitada por espiões,
 indivíduos devassos, criaturas bizarras e escritores boêmios. Estas locações são extraídas da 
experiência própria de Burroughs e sua dependência de drogas. Passo a passo, o leitor vai percebendo
 que não está lendo apenas um depoimento de um ex-viciado, mas toda a vida do autor e suas rebeliões, além 
de sua crítica feroz ao Imperialismo norte-americano. O autor também disserta sobre os mais variados temas — do 
político ao amor romântico. 



 
"- Hoje no Videodrome: Me retalhei em muitos pedaços, e hoje  somos todos felizes!!!"

 

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