Tirando a areia dos olhos
Surgido a 34 anos desde a sua primeira edição, Sandman, Clássico absoluto de Neil Gaiman (Belas Maldições), passou por inúmeras tentativas de adaptação em live-action ao longo dos anos. Gaiman, extremamente protetor em relação à trama que criou para a Vertigo (antigo selo adulto da DC Comics) passou décadas dispensando e sendo dispensado por estúdios e produtores interessados na história de Morpheus (ou Sonho) e seus irmãos Perpétuos*1.
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Sandman, no traço de Sam Kieth, com sua algibeira, contendo a poeira mágica que nos põe a sonhar |
Ao final, a equipe coordenada pelo próprio Gaiman, ao lado de David S. Goyer (Fundação) e Allan Heinberg (The Catch), fez jus ao material, numa primeira temporada extremamente positiva, apesar de algumas mudanças poderem incomodar os fãs mais radicais do material-raiz. Essas pequenas, mas pertinentes mudanças, (inclusive desconectando-o da continuidade do Universo DC*2) atualizam e permitem que a história se traduza com naturalidade para a TV e (em quase nada) alteram a história de Sandman, limitando-se a dar uma personalidade mais marcante a alguns dos personagens que cercam o protagonista.
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Sonho, ou Morpheus (Tom Sturridge) é capturado por um culto de feiticeiros e amarga 103 anos de cativeiro |
A série conta com 10 episódios e aborda os dois primeiros arcos da HQ: Prelúdios & Noturnos (episódios de 1 a 6) e Casa das Bonecas (episódios de 7 A 10) e segue a mesma trama que os quadrinhos: Sonho dos Perpétuos (Tom Sturridge de Irma Vep em sutil e eficiente performance e com o tom de voz certo) é capturado num ritual de magia das trevas por Roderick Burgess (Charles Dance de Game of Thrones sempre ótimo), que o aprisiona por mais de um século. Quando escapa, o debilitado Morpheus, o Rei dos Sonhos sai em uma jornada para recuperar seu poder e restaurar seu reino, que se estagnou por sua ausência, e trazer de volta as entidades que escaparam, dentre eles um pesadelo particularmente perigoso chamado Coríntio (o ótimo Boyd Holbrook de O Predador), que saiu pelo mundo, se tornando um assassino serial. Morpheus, em sua jornada para recuperar seus artefatos, cruzará com personagens díspares como Johanna Constantine (Jenna Coleman de Doctor Who), John Dee (David Thewlis de Mulher-Maravilha arrepiante em sua composição) culminando numa ida para o meio do Inferno, duelando com Lúcifer Estrela da Manhã (Gwendoline Christie de Game of Thrones).
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Muitas cenas da série são perfeitas transcrições das imagens dos quadrinhos |
Após recuperar seus artefatos, Morpheus (ou Sonho) retoma a busca pelo Coríntio, tendo que lidar com os estragos que sua ausência causou aos seres humanos, pois, qual é a importância dos sonhos? Eles mantêm o equilíbrio entre nossas esperanças e medos, anseios e terrores, memórias e dores. É durante a sua ausência, que ocorreu uma moléstia, a Doença do Sono, que fazia as pessoas dormirem, e não acordarem, enquanto outras enlouqueciam por não dormirem (e sonhar). Desse fato, se origina Rose Walker (Vanesu Samunyai) bisneta de Unity Kincaid (Sandra James-Young de His Dark Materials: Fronteiras do Universo) vítima da Doença do Sono, e que busca seu irmão Jed Walker (Eddie Karanja de Jack and the Beanstalk: After Ever After) pois desde o divórcio de seus pais, sua família foi desmembrada. Em meio a isto ainda ocorrem as maquinações de Desejo (Mason Alexander Park de Cowboy Bebop com um visual Lady Gaga vitaminado), que assumem um papel antagônico mais explícito, com seus “joguinhos” com Sonho dando o tom de uma rivalidade em família ausente da HQ original.
Da galeria de personagens da série, se destacam Hob Gadling, o imortal (Ferdinand Kingsley de Mank), que mostra a Morpheus a importância de se ter um amigo; Matthew, o corvo (voz de Patton Oswalt de The Boys), e Lucienne (Vivienne Acheampong de The One) a bibliotecária do Sonhar, que têm mais espaço para manter Morpheus “na linha”; os irmãos Cain (Sanjeev Bhaskar de Belas Maldições) e Abel (Asim Chaudhry de Mulher-Maravilha 1984) e em pequena participação, Merv Pumpkinhead (Mark Hamill de Star Wars: Os Últimos Jedi) zelador do Sonhar, e Gilbert (o sempre ótimo Stephen Fry de V de Vingança) um tipo pitoresco.
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Johanna Constantine (Jenna Coleman) está de posse de um dos itens de Morpheus, e o entrega a pós um dramático desenlace pessoal |
Mas como o maior de todos personagens, e com destaque no melhor episódio, temos a Morte (a ótima Kirby Howell-Baptiste de Cruella)
que é uma personagem tocante, sendo uma Perpétua forte, porém doce e
compreensiva, que nunca esconde seu fascínio pelo amor dos humanos pela
vida.
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Procurando seu elmo, Morpheus acaba indo para o Inferno... |
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...onde duela com Lúcifer Estrela da Manhã (Gwendoline Christie) para reavê-lo |
Os antagonistas de Sandman funcionam, cada um à sua maneira, como espelhos distorcidos da humanidade, bem delineados pelos figurinos de Sarah Arthur (Sherlock)
que enfatiza a elegância do Coríntio, que exala charme e perigo, o
aspecto perturbado de John Dee, que em seu fanatismo vê sempre o pior do
homem, levando sua visão ao limite durante o tenso quinto episódio, o
mais gore da temporada, além do aspecto etéreo de Lúcifer, afinal antes
de cair no Inferno ele/ela era um anjo...
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Tédio: Após reaver suas coisas e "arrumar a casa" Morpheus se sente-se sem rumo, sendo aconselhado por sua irmã mais velha, a Morte (Kirby Howell-Baptiste) |
Mas, por melhores que sejam as atuações e adaptações à tela, a série infelizmente sofre com um claro problema de ritmo, sendo que a edição de Kely Stuyvesant (Helstrom), Shoshanah Tanzer (Jessica Jones) e Jamin Bricker (The Game), oscila na passagem de tempo entre as cenas e a não-lineariedade da história. tendo alguns momentos cortados de forma abrupta, para serem continuados posteriormente, quase como se fosse um parêntese na história. No quadrinho, o ritmo de leitura dessas quebras de cena ou “vai e volta” do roteiro são mais suaves e sutis, mas na série, os cortes secos e sem explicação, deixam uma incômoda sensação de “ué?! Acabou?” e que dificulta ao espectador refletir sobre o significado da história, ao final de cada arco. Várias vezes é citado que Morpheus (ou Sonho) ficou preso “por mais de um século”, não havendo um envelhecimento correspondente dos personagens, ficando só um pouco melhor contado (mas ainda meio mal explicado) no terceiro episódio.
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Após escapar do Sonhar, Coríntio (Boyd Holbrook) deixa de ser apenas um pesadelo, e prospera como Serial Killer |
A fotografia de Will Baldy (The Pact), Sam Heasman (Doctor Who) e George Steel (Os Aeronautas) acerta o tom da narrativa em sua palheta de cores e uso de luz e sombras, indo do onírico, passando ao lúdico, e caindo no tenebrista (e até gore).
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Os gêmeos Desespero (Donna Preston) e Desejo (Mason Alexander Park) tramam contra Morpheus |
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John Dee (David Thewlis) originalmente era um vilão da DC |
A música de David Buckley (Evil: Contatos Sobrenaturais) é boa, com passagens líricas e sinuosas em seu tema principal, incluindo em sua trilha, hits como ”Skeletons” de Brothers Osborne, “Together” (Wherever We Go) com Judy Garland e Liza Minelli, ‘’Sweat Dreams“ de Patsy Cline, "Red Comes in Many Shades” de U.S.Girls, “She Drives Me Crazy” de Fine Young Cannibals entre outros, coisa que a obra original nos anos oitenta já antecipava, sempre fazendo citação a alguma música ao longo de seu texto, chegando quase que a fazer uma playlist a cada revista.
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Hob Gadling, o imortal (Ferdinand Kingsley) constrói uma amizade com Morpheus ao longo dos séculos |
O desenho de produção de Jon Gary Steele (Outlander), junto com a direção de arte de Nicki McCallum (Outlander), Lydia Farrel (Murder), Sandra Phillips (007: Sem Tempo Para Morrer), Luke Whitelock (Cruella), Patricia Johnson (Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw) Danny Rogers (Avenue 5) e Kevin Timon Hill (A Crônica Francesa) geralmente são eficientes na criação de seus ambientes como o Sonhar, valorizado pela decoração de sets de Lisa Chugg (Enola Holmes) e Liz Griffiths (Avenue 5) e o Inferno (aqui calcado nas descrições de Dante Alighieri*3 em A Divina Comédia) acertando o clima necessário de sua caracterização, embora em alguns momentos, tais ambientações sejam demasiadamente “limpas”, tirando um pouco o peso dessas imagens, fazendo falta o tom mais sujo que a HQ entrega.
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Gilbert (Stephen Fry) é um personagem excêntrico de origem misteriosa |
Os efeitos visuais de Industrial Light & Magic, Important Looking Pirates, Rodeo FX, Framestore VFX, One of Us, Union VFX, Resonance Digital Inc.,Untold Studios, Chicken Bone FX, supervisionados por Ian Markiewicz (Krypton) flutuam em seu aspecto estético, apesar do orçamento generoso da série (cerca de US$165 milhões), variando o CGI tanto quanto seu ritmo narrativo, alternando entre criaturas fantásticas belíssimas com cenários digitais claramente artificiais, mas que pessoalmente não me incomodou tanto assim, dando um certo charme cafona à série tal qual Doctor Who, série para a qual Gaiman já escreveu um episódio.
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Lucienne, Matthew, o corvo (voz de Patton Oswalt) e Merv Pumpkinhead (voz de Mark Hamill) zelador do Sonhar dão suporte à Morpheus |
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O Inferno. O CGI da série varia do altamente realista ao artificial, a despeito do bom orçamento |
Um espetáculo à parte é ter o lendário Dave McKean (o capista do quadrinho original) nos créditos dos episódios, que reforça a noção de familiaridade desse universo narrativo.
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O capista Dave McKean, é responsável pelos créditos da série |
Ao final, a primeira temporada de Sandman, embora seja menos reflexiva e não provoque o mesmo impacto que o quadrinho original de 1988, consegue corresponder a boa parte das expectativas que a cercavam, e mostra que a espera de Gaiman e dos fãs não foi à toa, entregando momentos intrigantes e emocionantes, graças a seu elenco engajado, sendo a oportunidade ideal para que, por conta da série, uma nova geração de leitores se disponha a conhecer a obra (e se encantar) com o trabalho original do autor.
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Direção de arte: O castelo de Desejo reflete a sua personalidade narcisista |
Obs: Talvez o maior problema da série seja devido à forma como a Netflix promove seus lançamentos. Ao liberar toda a temporada de uma vez só, a plataforma sugere uma maratona que, embora pareça divertida no papel, é exaustiva na prática. É claro, que lançar os episódios semanalmente não resolveria o problema, mas tornaria a experiência de assistir - e digerir - a série menos desgastante.
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A série alterna momentos líricos com o horror, indo ao gore, |
Notas:
*1: Na mitologia da série, os Perpétuos são entidades antropomórficas de vários aspectos da existência, sendo a sua existência anterior à dos próprios deuses, compondo esta família Destino (Destiny), Morte (Death), Sonho (Dream), Destruição (Destruction), os gêmeos Desejo (Desire), e Desespero (Despair), e a caçula Delírio (Delirium), sendo todos filhos das entidades Dia e Noite.
*2: Originalmente o personagem fazia parte da continuidade do universo regular da editora, inclusive havendo participações do Caçador de Marte, citações à Liga da Justiça, e inclusive John Dee era originalmente um vilão recorrente, chamado Doutor Destino (Doctor Destiny, diferente do vilão da Marvel, que é Doctor Doon) internado no Asilo Arkhan, e na série virou o filho renegado de Roderick Burgess com sua amante Ethel Cripps (Joely Richardson de Operação Red Sparrow), sendo estas referências removidas na adaptação, por questões contratuais e também por que o próprio Gaiman já nos quadrinhos havia optado por cortar este vínculo.
*3: Dante Alighieri (Florença, entre 21 de maio e 20 de junho de 1265, - 13 ou 14 de setembro de 1321) foi um escritor, poeta e político florentino, nascido na atual Itália. É considerado o primeiro e maior poeta da língua italiana, definido como il sommo poeta ("o sumo poeta"). Disse o escritor e poeta francês Victor Hugo (1802-1885) que o pensamento humano atinge em certos homens a sua completa intensidade, e cita Dante como um dos que "marcam os cem graus de gênio". E tal é a sua grandeza que a literatura ocidental está impregnada de sua poderosa influência, sendo extraordinário o verdadeiro culto que lhe dedica a consciência literária ocidental sendo a sua obra máxima A Divina Comédia (La Divina Commedia, originalmente Comedìa e, mais tarde, denominada Divina Comédia por Giovanni Boccaccio) é um poema de viés épico e teológico da literatura italiana e mundial, escrito no século XIV e dividido em três partes: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso.
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