sábado, 5 de junho de 2021

A Batalha das Emmas - Crítica - Filmes: Cruella (2021)

 


O Diabo ainda não veste Dálmatas

 
por Alexandre César


Disney reimagina uma de suas maiores vilãs

Origens: A animação de 1961 foi um dos maiores campeões de bilheteria do estúdio


#Oscar 2022

Surgida no clássico da animação A Guerra dos Dálmatas (1961) dirigida por Clyde Geronimi, Hamilton Luske e Wolfgang Reitherman, Cruella De Vil rapidamente fincou o pé como uma das maiores vilãs da Disney, figurando na lista dos 100 maiores vilões do American Film Institute, na frente de caras como Freddy Krueger e o Coringa, mostrando que a fashionista louca por casacos de pele de bichinhos indefesos não veio para brincadeiras. Desde então, junto com seus capangas atrapalhados, Jasper e Horace, a diva da moda e psicopata foi sempre procurando ampliar a sua coleção de casacos, procurando cãezinhos pintados. 
 
 
O primeiro live-action de 1996 consagrou Gleen Close como a diva psicótica

 
E assim, saiu da animação, voltando às telas no live-action 101 Dálmatas (1996) dirigida por Stephen Herek, e na sua sequência 102 Dálmatas (2000) dirigida por Kevin Lima, ambas estreladas por Glenn Close (que ainda se mostra imbatível!!!), e posteriormente teve seu passado pincelado num episódio da 4ᵃ temporada do seriado Once Upon a Time, da rede ABC, interpretada por Victoria Smurfit (Drácula) onde já se especulava as raízes de sua rixa com cães dálmatas*1.
 
 
O desafio estava lançado, pois depois de Gleen Close, quem poderia convencer como Cruella De Vil?


O tempo passou, e o império do rato, em sua sanha de querer atualizar, repaginar e reimaginar suas propriedades intelectuais, na busca de novas formas de lucrar com filmes, parques temáticos e toda sorte de licenciamento, começou a especular de que forma seria possível ressignificar o universo de 101 Dálmatas numa nova franquia, mas desde 2013, quando resolveram focar a trama na sua mais marcante personagem, o estúdio acabava esbarrando em algum empecilho, sendo o maior de todos o mais eticamente difícil o de, tornar Cruella De Vil, assassina de cachorros, numa personagem ‘apreciável’ para o grande público? A solução seria ter uma história nova, ao invés de uma simplesmente transcrever a narrativa animada para atores de carne e osso, e assim, ficar à frente da maioria das remasterizações do estúdio, como A Bela e a Fera e O Rei Leão.
 

A impetuosa Estella (Tipper Seifert-Cleveland) e sua mãe Catherine Miller (Emily Beecham) se veêm em dificuldades


Dirigido por Craig Gillespie (Eu, Tonya) Cruella (2021) foge de se prender numa numa gaiola nostálgica (de agrado fácil ao público) por saber que, contar com essa “nostalgia” (para lucrar numa marca já consolidada.) paga o preço de artificializar boas histórias, num lugar comum, matando o que o que elas tinham de melhor: Sua alma. 
 

Descobrimos no filme, a razão do trauma da protagonista com dálmatas


O roteiro de Dana Fox (Como Ser Solteira) e Tony McNamara (A Favorita) a partir do argumento de Aline Brosch McKenna (O Diabo Veste Prada), Kelly Marcel (Venon) e Steve Zissis (Togetherness) baseado na obra 101 Dalmatas de Dodie Smith, sabe que recriar o efeito da fantasia da animação simplesmente não corresponde à mesma verossimilhança lúdica de uma fantasia encenada por pessoas, não dependendo disso mas sim, apostando na história de origem de uma personagem, aqui, uma jovem mulher, cheia de sonhos e ideias que ainda não se tornou a icônica personagem, ambientado no panorama cultural da efervescente Londres da década de 70, no meio do movimento punk e das características competitivas do meio da moda, mas não esconde que sua personagem principal sempre teve uma inclinação para a psicopatia, embora este dado sirva para a construção de sua persona fashion. 
 
 Os trombadinhas Horace (Joseph MacDonald) e Jasper (Ziggy Gardner) acolhem a órfã Estella, formando uma "gang"

 
Desde a infância, a jovem Estella (Tipper Seifert-Cleveland de Krypton) se revelava geniosa, agressiva e avessa às regras e padrões sociais. Tendo como única amiga Anita Darling (Florisa Kamara de Silent Witness) colecionando problemas na escola e em casa, enquanto também mostrava sinais de genialidade e criatividade, que são postas em prática em seus designs e confecções. Ao mudar-se para Londres, ela se torna órfã, acreditando ser responsável pela morte de sua mãe Catherine Miller (Emily Beecham de The Pursuit of Love) quando conhece a Baronesa von Hellman, (Emma Thompson de Years and Years, impecável) e vindo daí a sua conexão (de viés psicológica) com os dálmatas. A menina foge da mansão e vai para a capital londrina, formando uma “família” com os trombadinhas Jasper (Ziggy Gardner) e Horace (Joseph MacDonald de Teeth and Pills) e vão por dez anos vivendo de pequenos golpes, onde Estella vai usando o seu talento para criar os disfarces do bando. Já crescida, Estella (Emma Stone de A Favorita em performance impecável) consegue um emprego numa Maison, graças aos fiéis comparsas Jasper (Joel Fry de Yesterday) e Horace (Paul Thomas Hauser de O Caso Richard Jewell) que querem o seu progresso. Aqui o filme cresce ao dar profundidade e perspectiva dramática a personagens que sempre foram vistos como secundários, tornando-os de meros capangas, em algo bem mais interessante do que os capachos acéfalos da animação. Embora permaneçam como alívios cômicos, o roteiro os usa para questionar as atitudes da protagonista em sua jornada de vilania. 
 
 
Anos depois, arrumando emprego numa Maison, Estella (Emma Stone) muda uma vitrine...

 
No trabalho, apesar de menosprezada por Gerald (Jamie Demetriou de Fleabag), o esnobe gerente da maison, Estella cruza o seu caminho novamente com o da Baronesa Von Hellman, que reconhece o potencial da jovem e a contrata para trabalhar no seu império estilístico. Abusiva e egocêntrica, ela se revela a grande vilã da história. Embora não seja aprofundado no filme, Estella transporta todas as suas frustrações e ódio devido uma infância complicada para a dedicação ao trabalho, mas uma importante virada sobre a relação da Baronesa a leva a criar uma nova persona para conquistar o seu lugar no super competitivo meio fashion: Cruella De Vil. E a partir daí surge uma trama de vingança, que se não fosse uma produção da Disney, facilmente descambaria para caminhos escuros...
 
 
... chamando a atenção da Baronesa Von Hellman (Emma Thompson) , aqui com seu assistente Jeffrey (Andrew Leung, atrás)

 
A transformação da protagonista é cuidadosamente detalhada pelos figurinos de Jenny Beavan (Mad Max: Estrada da Fúria), Tom Davies (Keeping Mum: Funnies) de forte inspiração punk, gótica e vintage, complementada pelo trabalho de hair e makeup designer de Nadia Stacey (A Favorita) que constrói a transição da personagem pelo penteado, indo do coque ruivo preso de maneira “comportada” ao volumoso corte icônico bicolor já muito conhecido por fãs de 101 Dálmatas. A direção, auxiliada pela edição de Tatiana S. Riegel (Millennium: A Garota na Teia de Aranha) mantém um bom ritmo narrativo, às vezes parecendo um filme de assalto, sem correr demais, e não se permitindo floreios expositivos desnecessários. 
 

Estella começa a trabalhar para a Baronesa Von Hellman, mas almeja vôos maiores

 
O duelo interpretativo de Stone e Thompson é o ponto alto do filme, com as duas atrizes defendendo seus personagens soberbamente. Se a dicotomia da Contida Estella para a feroz, louca, estilosa e vingativa Cruella aposta na potencial psicopatia da personagem (mas não demais para não assustar o público-alvo), a Baronesa tem atuação segura, pronunciando cada palavra precisamente e fugindo um pouco dos vilões caricatos da Disney, tendo a sua relação das duas à lá O Diabo Veste Prada como principal catalisador para a ascensão de Cruella, que embora use eventos traumáticos para construir a futura ícone da moda, o filme não tenta usar essas experiências como justificativa para seus atos. 
 
Estella, para  crescer e, se vingar, se reinventa, surgindo Cruella De Vil


Assim Cruella vai construindo suas alianças com Artie (John McCrea de Todos estão falando sobre Jamie) o amigo gay estilista, e reencontrando Anita Darling (Kirby Howell-Baptiste de Trem Infinito) sua amiga do colégio, agora repórter de moda, e vai atacando a hegemonia da Baronesa no meio  fashion com suas atitudes transgressoras, ambientada na louca Londres dos anos 70, recriada pela boa supervisão de efeitos visuais de Max Wood (Esquadrão Suicida) que coordena os efeitos visuais das companhias MPC, SSVFX, Clear Angle Studios e 4DMax, combinando com a fotografia de Nicolas Karakatsanis (Eu, Tonya) que equilibra ou exagera as palhetas de cores e contrastes de cor, luz e sombras nos momentos certos, enfatizando o período de ebulição cultural da época, com uma sutil recriação daquela atmosfera britânica caricata, comum às animações.
 
 
Sangue nos olhos: Cruella começa a disputar a atenção dos holofotes nos eventos da Baronesa


Outros personagens com menor tempo de tela, mas que funcionam bem são John (Mark Strong de Kingsman: O Círculo Dourado) o mordomo e Valete de confiança da Baronesa, bem como seu caricato assistente Jeffrey (Andrew Leung de Na Cadência do Amor) e Roger Dearly (Kayvan Novak de O Dia Vai Chegar) seu advogado meio bobinho que ao final canta os primeiros versos da conhecida introdução de “Cruella de Vil” de Mel Leven da clássica animação Os 101 Dalmatas.
 
 
Uma reviravolta sobre o que aconteceu no passado acende a guerra entre as estilistas

 
A ambientação no meio da moda é um prato feito para o desenho de produção de Fiona Crombie (A Favorita) e a direção de arte de Martin Foley (A Invenção de Hugo Cabret), Lydia Fry (Rogue One: Uma História Star Wars), Jourdan Henderson (Dolittle), Kevin Timon Hill (O Cristal Encantdo: Era da Resistência), Darren Tubby (Mulher-Maravilha 1984), Alice Walker (Rocketman) e Luke Whitelock (Malévola: Dona do Mal) que junto com a decoração de sets de Alice Felton (O Rei) e Amanda Wilgrave (Mulher-Maravilha) ao mesmo tempo que situa a ação cronológica e geograficamente no efervescente panorama, que viria a se tornar o movimento punk, ao mesmo tempo, de tão exagerado e caótico, carrega uma boa dose de camp, com easter eggs do universo da animação com referências culturais do período, que a música de Nicholas Britell (Se a Rua Beale Falasse) acompanha de perto, sendo sublinhada pela seleção musical de Susan Jacobs (Trapaça) que polvilha ao longo da trajetória da protagonista trechos de hits do período como “Bloody Well Right” do Supertramp, “Inside – Looking Out” do The Animals, “I Wanna Be Your Dog”, da banda The Stooges, “Whisper Whisper” dos Bee Gees, “She´s a Rainbow” e “Sympathy for the Devil” dos Roling Stones, “Five to One” do The Doors, “Hush” do Deep Purple, “The Wizard” do Black Sabbath, “Stone Cold Crazy” do Queen, “Boys Keep Swinging” de David Bowie, entremeados por clássicos como “These Boots are Made for Walkin´” na versão de Nancy Sinatra, “Feeling Good” cantada por Nina Simone, “Smile” por Judy Garland, e “Perhaps, Perhaps, Perhaps” por Doris Day algumas vezes até passando do ponto.
 
John (Mark Strong), o mordomo da Baronesa, revela um dado crucial sobre as origens de Estella / Cruella

 
Ao final, Cruella tem como maior trunfo a direção de seu elenco. Seja o principal quanto os demais do elenco de apoio estão devidamente adequados às necessidades do roteiro (abrindo o caminho para as performances elevarem o material do texto) com um visual absolutamente deslumbrante, que surpreende ao saber dosar o humor com pitadas de espetáculo, com piadas rápidas intercaladas com gags visuais e até comédia física, num ótimo balanço, e que sabe descer aos seus pontos mais sombrios. O filme alterna a identificação para dar carisma à vilã e uma tensão sobre o nível de crueldade a que ela chegará até seu clímax, ao lidar com o espírito de vingança que a história constrói, sem apelar para piadinhas todo o tempo para quebrar a tensão para o público mais jovem.
 
 
A direção de arte recria as paisagens da época, mesclada com uma sutil influência da estética da animação

 
Fica para nós, a dúvida se desta vez se consolidará a trajetória de Cruella como estilista, estrela e assassina de cães indefesos (pois os cachorrinhos, estão presentes como qualquer outro personagem) tal qual acompanhamos a de Anakim Skywalker rumo a tornar-se Darth Vader seguindo assim, passo a passo a evolução da personagem; ou se a Disney tentará a todo custo tornar a vilã numa figura positiva e incompreendida (imitando a Arlequina). Às vezes, um bom vilão é melhor do que um herói mal construído. Vader e o Coringa que o digam...
 
Cruella está disponível nos cinemas e no Disney + pelo Premier Access.
 
 
 Horace (Paul Thomas Hauser), Cruella e Jasper (Joel Fry) terminam prontos para novos desafios


Notas:
 
 
Victoria Smurfit no visual "cospobre" do seriado

 
*1: No episódio "Heroes And Villains", Cruela é uma garota, cuja própria mãe, usa ferozes dálmatas amestrados para mantê-la presa. Crescendo, ela se torna uma pessoa vingativa e cruel, tendo assassinado dois maridos da mãe (além de seu pai) com as rosas do seu jardim, que são venenosas.


"Chegueiiii... Cheguei chegando, bagunçando a zorra toda..."

 

Um comentário:

  1. Maravilhoso texto! Deu para viajar na Londres dos anos 70, da era punk! Só pelos seus comentários sobre o figurino e sobre as atuações dos envolvidos no filme, fiquei extremamente interessada em ver! Parabéns!!!

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