Construindo o prédio narrativo (?)
por Alexandre César
Série da Apple TV é visualmente rica mas controversa
Publicada entre maio de1942 e janeiro de 1950 na revista Astouding Magazine, e depois reunidas (juntas com uma história adicional que se passava antes das quatro originais) num volume único pela editora Gnome Press em 1951, Fundação veio a tornar-se ao longo do tempo uma das maiores criações de Isaac Asimov*1 (1920-1992), rivalizando com a sua série relacionada aos robôs*2, e que posteriormente ele fez a junção, num mesmo universo compartilhado, digno dos universos Marvel e DC, mas dentro dos seus parâmetros narrativos.
Ambientado
num futuro longínquo, quando a espécie humana se espalhou por milhões
de planetas na galáxia, sendo a Terra uma esquecida lenda, o pilar
administrativo da civilização é o Império Galáctico, que ora foi
opressor, ora benevolente, mas sempre foi a base de estabilidade da raça
humana há mais de 12 mil anos, quando ele foi fundado. Mas, como nada é
eterno, o cientista Dr. Hari Seldon, criador da Psico-história*3
descobre com seus estudos, que o Império está em declínio irreversível,
e que 30 mil anos de barbárie se seguirão, ao que ele propõe um plano:
Criar uma Fundação (na verdade, duas), cujo objetivo será a coleta e catalogação de todo o conhecimento na Enciclopédia Galáctica, que servirá de base para reduzir este período para apenas mil anos, e assim, lançar as bases para a criação de um novo Império Galáctico. Simples, não?
Caindo numa roubada: A jovem Gaal Dornick (Lou Llobell) e o Dr. Hari Seldon (Jared Harris) são acusados de alta traição logo no primeiro dia dela em Trantor, a capital do Império |
Logo as previsões de Seldon começam a se tornarem palpáveis, levando o Império e lhe dar algum crédito |
Na
realidade o banimento estava nos planos e projeções de Seldon, que
dessa forma, teria mais liberdade e autonomia para criar e gerir a
Fundação, e assim, nos livros seguintes, vemos o desenvolvimento da
trama, que vai dando saltos temporais, e de geração a geração, o Império vai entrando em colapso, enquanto a Fundação vai
emergindo como potência comercial e tecnológica, influenciando os
mundos periféricos. Curiosamente o próprio Asimov em seus livros, só
conseguiu cobrir quinhentos anos deste período, morrendo em 1992, e
deixando em aberto a conclusão desta saga, que ganhou o Prêmio Hugo de Ficção-Científica, sendo considerada a melhor série literária de fantasia e ficção-científica de todos os tempos desbancando obras como as séries Duna de Frank Herbert , O Senhor dos Anéis de J.R.R.Tolkien e As Crônicas de Nárnia
de C.S.Lewis. Adaptar tal trama para o audiovisual sempre se mostrou
algo para lá de desafiante, que fosse qual fosse o rumo tomado, iria
provocar a ira de fãs apaixonados...
Demerzel serve à Dinastia Genética dos Cleons a séculos, ajudando a formar os regentes |
As ações do Império costumam ser implacáveis contra os mundos que se rebelam |
Criada por Josh Friedman (Exterminador do Futuro: Destino Sombrio) e David S.Goyer (Krypton) tendo entre os produtores Robyn Asimov, filha do autor, Fundação se propõe a ser a tradução da ideia central dos livros, para o formato seriado, produzido pela Apple TV+,
com suntuosos valores de produção e algumas escolhas questionáveis no
desenvolvimento de alguns personagens, visando gerar identificação no
público médio casual, mais afeito a séries com personagens relacionáveis
em função de seus dramas pessoais, ficando aqui o maior dos desafios,
uma vez que a trama de Asimov é direcionada a conceitos, e não à personagens; sendo os personagens, principalmente nos livros iniciais, apenas a verbalização desses conceitos.
Assim,
os adeptos de Seldon são banidos para os cafundós da Galáxia enviados
para o Planeta Terminus, a fim de que sejam esquecidos |
Então, neste contexto, temos o Dr. Hari Seldon (o ótimo Jared Harris de Chernobyl) um acadêmico que conhece bem “as regras” do jogo do poder palaciano, que recruta a jovem Gaal Dornick*4 (Lou Llobell de Viajantes- Instinto e Desejo) personagem que possui uma matemática intuitiva, banida de Synnax,
seu mundo natal, Planeta que abraçando o fundamentalismo religioso,
destruiu todas as universidades e matou os acadêmicos (executados por
sacerdotes com um sorriso beato nos lábios digno de muita gente
conhecida por aqui...). Embarcando para Terminus com os colonos, Dornick se envolve com Raych Foss (Alfred Enoch de Tigers)
protegido de Seldon, sendo envolvida numa série de eventos bizarros
tanto na lógica interna quanto na divergência com a própria narrativa
original de Asimov.
E os enciclopedistas vão catalogando e armazenando o conhecimento na esperança de seu uso pelas gerações futuras |
Três décadas depois, Hugo (Daniel McPherson) e Salvor Hardin (Lea Harvey) encaram o que virá a ser a "Primeira Crise Seldon" |
Trinta anos depois, Salvor Hardin (Lea Harvey de Lutando pela Família) é a Guardiã de Terminus e, quem deveria ser o melhor personagem da série,
é reduzida ao mero clichê de ser a “a escolhida”, praticamente a
temporada inteira não alcançando o real potencial que tinha no livro*5,
reduzida ao estereótipo de “mulher guerreira” fazendo par romântico com
Hugo (Daniel McPherson de Strike Back), mercador espacial, quase um
‘Han Solo’ desse arco.
O grande desafio de Hardin é enfrentar um destacamento de soldados do planeta Anacreon, chefiados pela irrascível Phara (Kubbra Sait de Jogos Sagrados) e seus tenentes Freestone (Nikhil Parmar de Brassic) e Rowan (Pravessh Rana de O Paraíso e a Serpente)
na verdade, um grupo violento e genérico, não muito diferente de outros
vistos em outras séries. Esta facção pretende tomar posse de qualquer
vantagem estratégica que a Fundação possa oferecer, uma vez que o Império devastou seu mundo após uma revolta. Dos envolvidos neste imbróglio se destacam Abbas (Clarke Peters de Os Irregulares de Baker Street) e Mari (Sasha Behar de Unforgotten), os pais de Hardin, e o administrador Lewis Pirenne (Elliot Cowan de Death em Paradise) num dos arcos menos atraentes da série, que deveria ser justamente o oposto.
O conflito iminente afeta as vidas dos enciclopedistas como Abbas (Clarke Peters) e Mari (Sasha Behar), os pais de Hardin, |
E então finalmente chegamos no melhor arco da série, que engloba o Império,
que justamente por ser um elemento pouco visto nos livros, teve suas
lacunas preenchidas magistralmente, sendo a figura do Imperador, na
realidade um triunvirato, composto de clones de Creon I, o Imperador original, em momentos diferentes da vida: Irmão Alvorecer (Cooper Carter de Beyond The After quando menino e Cassian Bilton de Shoal quando rapaz), Irmão Dia (Lee Pace de Capitã Marvel na fase adulta) e Irmão Ocaso (Terence Mann de Lista Negra
quando idoso). Esta casta vai se sucedendo século após século, o que é
uma ótima alegoria sobre a estagnação, a incapacidade de mudar, pois na
temporada vemos o mesmo indivíduo quando criança, se horrorizar com as
atitudes de sua versão adulta tentando inclusive (anos depois já adulto)
ousar uma nova abordagem quando questionado por Zephyr Halima (T´Nia
Miller de Years and Years) uma religiosa que indaga se "um clone tem alma", ele faz incógnito a peregrinação espiritual do Caminho da Donzela,
num território insalubre, numa jogada política (apesar dele não admitir
o impacto emocional da jornada), e ter, ao final, uma atitude super
cruel com uma dissidente no último episódio. Outro dado da dinastia é
que um clone que não seja uma ‘cópia perfeita de Creon I’ caso apresente
características como daltonismo, ou simplesmente ser canhoto, é
considerado uma abominação e deve ser erradicado. Uma boa alegoria sobre
as casas reais europeias do passado, cujos casamentos consanguíneos
levaram a doenças degenerativas*6.
Um personagem enigmático neste arco é Eto Demerzel*7 (Laura Birn de Eden)
a preceptora e braço direito da família real, na verdade um robô,
provavelmente não programado com as 3 leis, ou obedecendo à uma
interpretação bem ‘elástica’ da Lei Zero da Robótica*8, que junto ao sinistro Mestre das Sombras Obrecht (Mido Hamada de Wildcat) realizam os ‘trabalhos sujos’ para o imperador, quando solicitados.
Superada a crise, Salvor confronta sua mãe quanto às suas verdadeiras origens |
Ao
mesmo tempo, o Imperador, (Irmão Dia) numa jogada política faz uma
peregrinação espiritual para satisfazer religiosos incômodos |
A produção suntuosa se reflete em cada cena, pontilhada pela música de Bear McCreary (Battlestar Galactica) cujo suntuoso tema principal é marcante, adornando a bela fotografia de Owen McPolin (Sombra e Ossos), Tico Poulakakis (Star Trek: Discovery), Danny Ruhlmann (O Legado de Júpiter), Cathal Watters (O Alienista), Steve Annis (A Cor que Caiu do Espaço), Thomas Kloss (Treadstone) e Darran Tiernan (Perry Mason) que funciona bem com a edição de Paul Trejo (Carnival Row), Miklos Wright (For All Mankind), Emily Greene (Mrs. America) e Skip Macdonald (Breaking Bad) que vai oscilando no pique narrativo, ora no ponto certo, ora mais arrastado.
O
desenho de produção e a direção de arte criaram mundos contrastantes em
vários aspectos, como o luxuoso Palácio Imperial em Trantor... |
Visualmente rica, a supervisão de efeitos visuais de Chris Maclean (Deuses Americanos) enriquece a narrativa do seriado, que se apoia nos efeitos visuais da Double Negative (DNEG), NVIZ, Outpost VFX, e Rodeo FX, ao criar mundos surreais, high-techs e brutalistas que expandem o desenho de produção de Rory Cheyne (Locke & Key) nesta criação, que graças ao trabalho das as equipes de direção de arte chefiadas por William Cheng (A Colina Escarlate), Conor Dennison (Penny Dreadful), Adorjan Portik (Duna) e Jens Lockmann (Morte Negra), e da decoração de sets de John Neligan (Darklands) e Ingeborg Heinemann (O Gambito da Rainha)
que dialogam com várias linhas conceituais do imaginário da
ficção-científica, daí o aspecto “genérico”, que alguns criticam na
série, pois Terminus, com seu jeitão de cidade de faroeste, remete à Mos Eisley, e Trantor, sendo um planeta-cidade ecoa Coruscant, ambos de Star Wars (que copiou de Asimov por sinal!) e outras que remetem `a Game of Thrones, como o Caminho da Donzela ou às ilustrações de Moebius e Juan Gimenez, fonte que os figurinos de Eimer Ni Mhaoldomhaigh (O Ritmo da Vingança) e Kurt and Bart (Jogos Vorazes: A Esperança – Partes I & II) bebem de bom grado, mantendo certas semelhanças com Raised by Wolves.
Os efeitos visuais, de qualidade excepcional refletem todo o imaginário Sci-Fi, lembrando o trabalho de ilustradores... |
Ao final, se ainda não atingiu o seu pleno potencial, Fundação ainda
instiga e merece um crédito (que esperemos seja bem aproveitado) para
corrigir seus erros e conseguir cumprir a sua missão principal, que é
induzir o grande público a querer conhecer a obra original e no seu
bojo, a visão de Isaac Asimov.
"Tenho que correr com esse landspedeer para chegar em Mos Espa antes que comece a corrida de Podracers! " |
Notas:
*1: Isaac Asimov (1920-1992) é um dos mestres da Ficção Científica e, junto com
Robert A. Heinlein Arthur C. Clarke, foi considerado um dos "três
grandes" da ficção científica em sua Era de Ouro. A obra mais famosa de Asimov é a série Fundação, também conhecida como Trilogia da Fundação, que faz parte da série do Império Galáctico e que logo combinou com Robôs, a sua outra série mais famosa.
Também escreveu obras de mistério e fantasia, assim como uma grande
quantidade de livros de divulgação científica e histórica. No total, escreveu ou editou mais de 500
volumes, aproximadamente 90 000 cartas ou postais, e tem obras em cada
categoria importante do sistema de classificação bibliográfica de Dewey, exceto em filosofia. *2: Robôs: A sua série de livros sobre os robôs, é ambientada num futuro quase imediato, visto que a Psicóloga de Robôs, Susan Calvin teria se formado em Robô Psicologia em 2001.Ao longo dos livros. os robôs ajudam a humanidade a inventar o motor hiper atômico,
e os pilotos Donovam e Powell realizam a primeira viagem no hiperespaço, na qual se
alimentam somente de ervilhas. Como dano colateral da invenção do salto no hiperespaço, há a quase destruição do cérebro
positrônico que o criou, pois ele não consegue distinguir entre a
desmaterialização de um ser humano e a morte, implicando em quebra da Primeira Lei da Robótica.
*1: Isaac Asimov (1920-1992) é um dos mestres da Ficção Científica e, junto com
Robert A. Heinlein Arthur C. Clarke, foi considerado um dos "três
grandes" da ficção científica em sua Era de Ouro. A obra mais famosa de Asimov é a série Fundação, também conhecida como Trilogia da Fundação, que faz parte da série do Império Galáctico e que logo combinou com Robôs, a sua outra série mais famosa.
Também escreveu obras de mistério e fantasia, assim como uma grande
quantidade de livros de divulgação científica e histórica. No total, escreveu ou editou mais de 500
volumes, aproximadamente 90 000 cartas ou postais, e tem obras em cada
categoria importante do sistema de classificação bibliográfica de Dewey, exceto em filosofia.
*2: Robôs: A sua série de livros sobre os robôs, é ambientada num futuro quase imediato, visto que a Psicóloga de Robôs, Susan Calvin teria se formado em Robô Psicologia em 2001.Ao longo dos livros. os robôs ajudam a humanidade a inventar o motor hiper atômico,
e os pilotos Donovam e Powell realizam a primeira viagem no hiperespaço, na qual se
alimentam somente de ervilhas. Como dano colateral da invenção do salto no hiperespaço, há a quase destruição do cérebro
positrônico que o criou, pois ele não consegue distinguir entre a
desmaterialização de um ser humano e a morte, implicando em quebra da Primeira Lei da Robótica.
*3: A Psico-história
seria um misto de sociologia e matemática. Aplicando fórmulas
matemáticas a acontecimentos de seu presente, Seldon conseguia calcular
acontecimentos futuros e assim permitir ou tentar evitar que viessem a
se confirmar. Suas previsões eram todas baseadas em estatísticas e
probabilidades. A Psico-história usava desses elementos
matemáticos aplicados às massas. Funcionava apenas para sociedades
inteiras. Para uma elaboração matemática precisa, era necessário que
fosse feita a avaliação sociológica, cultural e econômica de sociedades
com muitos milhões, ou bilhões de indivíduos. Era totalmente ineficaz a
tentativa de aplicar a Psico-história a indivíduos, porque o indivíduo é imprevisível. Já uma população na casa dos quintilhões, como a do Império Galáctico tinha um comportamento bem mais fácil de se prever.
*4: No livro original, Gaal Dornick
é um homem, oriundo de um planeta bem mais desenvolvido e evoluído,
tendo feito doutorado. Um background bem diferente do que o vimos na
série no mundo aquático de Synnax.
*5: Salvor Hardin foi outro personagem que teve mudança de sexo, já que nos livros Salvor era o Prefeito de Terminus,
algo mais administrativo do que militar, sendo um líder pragmático e
objetivo. Nos livros, Hardin era conhecido pela sua frase “a violência é
o último refúgio do incompetente”, e curiosamente, Eu, autor desta
resenha, sempre que lia Fundação, visualizava Salvor Hardin como um equivalente de Fidel Castro...
*6: Diversas casas reais tiveram problemas com doenças degenerativas, como os Habsburgos,
da Espanha, cujos enlaces entre primos geraram uma concentração de
doenças genéticas, mortalidade infantil terminando a dinastia ao final
do séc. XVII, ou a hemofilia que a Rainha Vitória dos Bourbons, passou para a sua longa descendência, entre eles, os Romanoff, da Rússia Czarista.
*7: Eto Demerzel também teve seu sexo trocado, sendo uma mudança importante no universo de Asimov, pois nos livros, é um robô, chamado R Daneel Olivaw. Olivaw se tornou um dos protagonistas da série de livros “Robôs” e assim, o autor conectou seu universo de livros voltados à robótica com o universo de Fundação.
*8:
Três
Leis da Robótica
são, na verdade, três regras e/ou princípios idealizados por Asimov a fim de
permitir o controle e limitar os comportamentos dos robôs, sendo:
1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2ª Lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que entrem em conflito com a Primeira Lei.
3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.
Mais tarde Asimov acrescentou a “Lei Zero”, acima de todas as outras: um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal.
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