terça-feira, 7 de dezembro de 2021

170 anos de poder - Resenha: Moby Dick e a Cultura Pop

 

A grande baleia branca

por Alexandre César


Aos 170 anos obra ainda é relevante no imaginário pop

 

Edição do texto completo de 2015

Você, pode perguntar para qualquer um quem é Herman Melville*1, da mesma forma que pode perguntar a este mesmo alguém quem é Mary Shelley. Nos dois casos é bem provável que a resposta seja um sonoro "Não Sei!”. Mas se for perguntar para essa mesma pessoa se ela sabe quem é “Moby Dick” ou “Frankenstein”, aí a resposta, com certeza, deve ser bem diferente, Estas são obras que ultrapassaram seus autores e suas mídias originais. O seu conceito básico é conhecido mesmo por quem nunca tenha lido a obra original. Tarzan, Sherlock Holmes, Batman, James Bond e Harrry Potter que o digam.

 

A obra é estremamente detalhista na descrição do cotidiano num baleeiro


Moby Dick é o título de um romance do escritor norte americano Herman Melville que conta a história de uma longa caçada a uma baleia (na verdade, um cachalote) de cor branca. Perseguida e diversas vezes ferida por navios baleeiros*2, ela conseguiu se defender e destruí-los. Tudo isso é narrado e vivido por um marinheiro que embarca numa viagem de quatro anos em um navio chamado Pequod. Os destaques de sua tripulação são: seu capitão, Ahab; os três imediatos: Starbuck (o primeiro imediato), Stubb e Flask; três arpoadores: Tashtego, Daggoo e Queequeg; Fedallah, uma figura estranha que aparece depois de muito tempo na leitura; e Perth, o ferreiro. Nosso narrador é Ishmael, que inicia a história com uma das frases iniciais de um livro mais famosas do mundo: "Call me Ishmael"*3.
 
 
Ahab e sua luta obssessiva contra a grande baleia branca é um marco na literatura

 
O livro foi originalmente publicado em três volumes com o título "Moby-Dick, A Baleia" nas cidades de Londres e Nova York em 1851. Ele não segue uma narrativa linear, que constantemente é interrompida pelo autor. Ele apresenta constantemente sua reflexões pessoais em várias maneiras de escrever:
1) O relato de viajante, puro e simples;
2) A crônica de costumes, quando ele descreve as cidades de New Bedford ou Nantucket, ou apenas a vida cotidiana em uma pousada;
2) O texto científico, com a sua classificação dos tipos de baleia;
3) O filosófico, quando entra na alma humana para tentar perceber o que há de estranho no homem, de incongruente ou irracional;
4) O lírico, pleno de simbolismos *4,quando a voz retorna para Ismael, o protagonista do livro.
 
Muitos ilustradores imaginaram o confronto titânico homem-fera


Moby Dick, além de sua história narrada, também é um riquíssimo conjunto de observações, especulações, e discrições envolvendo as baleias – especificamente sobre as baleias Cachalotes – e sobre os processos da pesca baleeira. Inspirado num fato real*5, o livro foi revolucionário para a época, o livro é uma ficção romântica, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, mas também apresenta fatos absolutos, observações pessoais do autor, além de capítulos com textos muito técnicos e científicos sobre arpões, métodos de caça, detalhes das embarcações da época e o funcionamento e armazenamento do material extraido das baleias. Tem sátira, humor, filosofia e ousadia.
 
 
Gregor Peck como o Ahab definitivo na obra-prima de John Huston de 1956

 
Na cultura popular
 
Moby Dick é tão importante que, passados 170 anos de sua publicação, influenciou e continua a influenciar diversas pessoas, artistas e outras obras, em várias mídias. Um destes influenciados foi Steve Jobs, o gênio que mudou a maneira como nos relacionamos com a leitura e a música no século 21. O filósofo Albert Camus escreveu a obra A Peste, em 1940, por influência de Moby Dick. Seguindo as propostas apresentadas na obra de Melville, o escritor inglês Joseph Conrad abordou os limites do homem em livros como Nostromo*6, Lord Jim e Coração das trevas*7.
 
 
O final de Ahab no filme de Huston, que troca de lugar com Fedallah, que foi suprimido

 
Várias foram as versões filmadas de Moby Dick, desde uma ainda na época do cinema mudo (1926), passando por outra de 1930, dirigida por Lloyd Bacon, com John Barrymore (Ahab). Foi adaptada em várias minisséries de TV, como a de 1998, dirigida por Franc Roddan, com Patrick Stewart (Ahab), Henry Thomas (Ishmael) e Gregory Peck (Pastor Mapple). Há outra de 2011, dirigida por Mark e Mike Barker, com William Hurt (Ahab), Ethan Hawke (Starbuck) e Charlie Cox (Ishmael). Mas todas estas perdem para a versão cinematográfica de 1956 dirigida por John Huston, com roteiro de Ray Bradbury, protagonizada por um Gregory Peck (Ahab) estupendo, e tendo Orson Welles (Pastor Mapple), Leo Genn (Starbuck) Harry Ándrews (Stubb) e Richard Basehart (Ishmael). 
 
 
A primeira, de muitas aparições na série
 
O seriado Viagem ao Fundo do Mar (com o mesmo Richard Basehart como o protagonista, Almirante Nelson) teve episódios inspirados livremente na obra: “The Ghost of Moby Dick” (14°episódio da 1ᵃ temporada), “Jonah na the Whale” (1°episódio da 2ᵃ temporada) e “The Shape of Doom” (20°episódio da 2ᵃ temporada). Neles a produção sempre utilizou a mesma baleia mecânica (que não era branca).
 
O "Destruidor de Planetas" da série clássica

 
Na série original de Jornada nas Estrelas (Star Trek) teve o episódio “The Doomsday Machine” (1°episódio da 2ᵃ temporada), inspirado no livro de Herman Melville. A franquia útilizou o livro como inspiração mais vezes. O filme Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan (1982, de Nicholas Meyer), é praticamente uma versão de Moby Dick no espaço. Khan é Ahab e o Almirante Kirk é a própria Moby Dick. Em Jornada nas Estrelas: Primeiro Contato (1996, de Jonathan Frakes), há uma comparação direta do ódio que Picard sente pelos Borgs e sua recusa em destruir a Enterprise com o capitão Ahab do romance de Herman Melville. O momento marca um ponto de mudança no filme quando Picard reconhece isto, e muda de direção, evitando a sua destruição.
 
"A Ira de Khan" (1982) e  abaixo, "Primeiro Contato" (1996): Se funcionou uma vez, porque não repetir uma, duas vezes, e de forma bem feita??? Lógico.


A letal e sexy Rainha-Borg (Alice Krige) que "balançou" Picard (Patrick Stewart)


Moby Dick foi também tema de um desenho animado da Hanna-Barbera, exibido pelo canal estadunidense CBS durante o período de 1967-1969 (no original Moby Dick and the Mighty Mightor). No desenho, dois adolescentes, Tom e Tub, são resgatados pela grande baleia branca Moby Dick após um naufrágio. Juntos com o mascote Scooby, uma foca, eles enfrentam os perigos do fundo do mar.
 
A baleia camarada, cuja anatomia era capaz de coisas dignas de Glup e Glip dos Herculóides

 
O filme Mais forte que a vingança – Jeremiah Johnson (1972, de Sydney Pollack) usa Moby Dick como referência logo na introdução, quando um narrador repete basicamente as mesmas palavras do início de livro: “Seu nome era Jeremiah Johnson”.
 
Robert Redford como Jeremiah Johnson

Na música, “Moby Dick" é o nome de uma canção instrumental do segundo disco da banda Led Zeppelin, famosa pelo solo de bateria de John Bonham. A banda Norte-americana Mastodon fez seu segundo álbum Leviathan baseado no livro Moby Dick.
 
Nada mais parecido com uma baleia do que um dirigível

 
Em um episódio do desenho animado de Tom & Jerry, O gato e o rato se deparam com a embarcação The Pequod e encontram a baleia "Dick Moe" (paródia de Moby Dick). A obra aparece também como sátira em um desenho do Pica-Pau, intitulado "Dopey Dick", onde a cor da baleia é rosa ao invés do branco.
 
E o pobre Tom acabou amarrado

 
No seriado original Galactica: Astronave de Combate (Battlestar Galactica) temos como um dos protagonistas o piloto Starbuck (Dirk Benedict), uma homenagem ao marinheiro de mesmo nome na obra Moby Dick. A homenagem permanece no remake da série, de 2003 ,sendo que agora Starbuck é uma mulher (Kate Sackoff).
 
Redundância: Starbucks fumando Starbucks, e tomando café na Starbuck´s
 

Na série Arquivo X (The X-Files) temos na relação de Dana Scully (Gillian Anderson) com seu pai, o Capitão William Scully (Don S.Davis), uma homenagem à Moby Dick, sendo ela Starbuck, e ele, Ahab.
 
"Arquivo X": Pai e filha num momento onírico

 
Alguns nomes e termos relacionados ao livro são mencionados no jogo eletrônico Metal Gear Solid V: The Phantom Pain.
 
O obstinado Solid Snake


O filme, Na natureza selvagem de 2007, dirigido por Sean Penn, usa da mesma temática da luta da relação do homem com a natureza, na tentativa de entendê-la e dominá-la ou de integrar-se verdadeiramente a ela, perdendo a batalha no processo.
 
Emily Hirsch no onírico, triste e poético filme

A Starbucks Company foi nomeada desta forma por Jerry Baldwin, um dos seus fundadores e grande amante da literatura. Era uma homenagem ao marinheiro Starbuck da obra de Melville, já que este nome evocava o romance em alto mar e a tradição de navegação dos primeiros vendedores de café da história.
 
Para quem gosta de um café quente e estiloso...
 
 
O filme No Coração do Mar (2015, de Ron Howard) com Chris Hemsworth e Tom Holland, recria o incidente com o baleeiro Essex, que inspirou Moby Dick.
 
No Coração do Mar (2015): Boa reconstituição de época em narrativa tensa
 
 
O livro foi adaptado para os quadrinhos em diversas oportunidades. Quadrinistas, como Dino Bataglia, Paul Gillon e Bill Sienkiewicz, criaram suas versões. Além deles, em 2001 foi publicada em volume único pela editora NBM nos Estados Unidos, a adaptação produzida por Will Eisner, autor considerado um dos maiores quadrinistas de todos os tempos. Em 2014, o francês Christophe Chabouté adaptou o romance de Herman Melville em dois volumes e concorreu a diversos prêmios internacionais. Em 2017 ela foi publicada uma edição integral. Esta edição foi lançada no Brasil pela editora Pipoca e Nanquim
 
O incrível trabalho de Christophe Chabouté no uso do preto e branco
 
Nos tempos atuais, com a conscientização ambiental e a noção dos direitos dos animais, os leitores podem ver Moby Dick como uma figura heróica de certa forma. A baleia é caçada e se defende ao atacar brutalmente o Pequod e sua tripulação. Moby Dick também pode ser visto como representando a própria natureza, uma força contra a qual o homem pode lutar e, ocasionalmente, evitar, mas que acabará sempre por triunfar em qualquer batalha. Moby Dick também representa a obsessão e a loucura, à medida que o capitão Ahab lentamente evolui de uma figura de sabedoria e autoridade para um louco delirante que cortou todos os laços com sua vida, incluindo as de sua tripulação, em busca de um objetivo que termina em sua própria destruição. 
 
Mas a grande realidade, fosse ontem, e agora, é que nós sempre é que fomos os vilões dessa história, caçando e matando esses pacíficos e incríveis animais


 
 
Notas:
 
Herman Melville

*1: Herman Melville: Nascido em 1819 e falecido em 1891 em Nova York. Marinheiro por vocação, ele teve uma vida aventureira em navios mercantes onde escrevia suas aventuras e era capaz de transportar as sensações do leitor ao ambiente descrito.
 
 

*2: Os navios baleeiros após abaterem as baleias, processavam a sua gordura, em especial o espermacete e o âmbar cinzento.
 
 
Richard Basehart no filme de John Huston, como Ishmael, antes de assumir o comando do Seaview

*3: supõe-se que ele seja “Ismael”, o narrador da história.
 


*4: O livro é recheado de simbologias, como na escolha dos nomes dos personagens: Ismael (significa Deus ouvirá) é o nome do primeiro filho de Abraão com Agar, escrava de Sara, sua esposa. Deus havia feito sua aliança com Abraão e Sara que em sua velhice geraram Isaque. Porém, a Ismael foi prometido também que dele sairia “uma grande nação”. Assim como os judeus se consideram herdeiros de Abraão através de Isaque, os árabes se consideram herdeiros de Abraão através de Ismael. A ideia é de alguém abandonado à própria sorte, tanto no relato bíblico quanto em Moby Dick. O simbolismo bíblico não para por aí: quando Ismael e o selvagem Queequeg vão embarcar no navio baleeiro Pequod, um mendigo chamado Elias profetiza que aquela viagem terminaria em desastre. Elias é considerado o maior dos profetas hebreus, tão fiel e chegado a Deus que não morre, e é elevado aos céus num redemoinho; Ahab, o capitão do Pequod, um dos personagens mais complexos da literatura é o nome de outro personagem bíblico: trata-se do Rei Acabe, rei de Israel, coroado no trigésimo oitavo ano do reinado de Asa, rei de Judá. O reino de Acabe durou 22 anos e ele é reconhecidamente o rei mais cruel e incrédulo que Israel já teve e um dos profetas que fizeram frente a ele foi justamente Elias.
 
 
As ilustrações da época retratavam a "feroz baleia contra os pacíficos baleeiros"

*5: O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam com premeditada ferocidade.
 
 

*6: Nostromo é o nome do rebocador espacial onde se desenrola a trama de Alien - O Oitavo Passageiro (1979) de Ridley Scott. 
 

 
*7: O romance Coração das trevas foi a base inicial para o roteiro de Apocalipse Now (1979) de Francis Ford Coppola.

 

"- Há 170  anos que te persigo, e haverei de percorrer outros 170 anos em teu encalço, pois esta é a nossa natureza selvagem e estúpida!!!"



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