sábado, 4 de dezembro de 2021

Universalmente bom - Crítica - Filmes: O Chamado da Floresta (2020)

 

Walt aprovaria
por Alexandre César 
(Postado originalmente em 20/02/2020)

Harrison Ford e a nova visão do clássico de London 


O autor Jack London.
 
Soava um chamado das profundezas da floresta e, tão frequentemente quanto ouvia esse chamado – que emocionava e seduzia de forma misteriosa – sentia-se compelido a dar as costas para a fogueira e a terra batida ao redor dela ao mergulhar na floresta, cada vez mais longe, sem saber para onde nem porque; nem com isso se surpreendia, pois o chamado soava imperiosamente, nas profundezas da floresta”.
(Chamado Selvagem p.83)


Clark Grable na versão de 1935.

Publicada em 1903 (inicialmente em formato de folhetim) O romance Chamado Selvagem (The Call of the Wild ) deu fama mundial a Jack London (1876 - 1916) sendo talvez um dos romances mais difundidos da literatura norte-americana, se passa no vale do Rio Klondike, no Canadá, durante a corrida ao ouro de 1897*1 e narra as aventuras de Buck, um privilegiado cão doméstico de uma família californiana que é roubado de seu ambiente e contrabandeado para o Alasca em meio à febre do ouro, sofrendo uma série de maus-tratos, até que encontra refúgio em uma irmandade de cães tornando-se um cão de trenó e, assim como os corajosos garimpeiros, vê-se na necessidade de se adaptar à vida selvagem. Buck entra em contato com sua natureza primitiva, em uma jornada de autoconhecimento, e redescobre seus instintos e ao final, foge e acaba liderando uma alcateia de lobos.


Cartaz da versão de 1972.

O romance, obviamente tinha tudo para interessar a Hollywood, que levou-o às telas e mais tarde à TV e vídeo esta história vigorosa atraente para adultos e crianças, plena de lições de vida, sendo as mais lembradas, a primeira versão Call of the Wild (1923) de Fred Jackman com Jack Mulhall, O Grito da Selva (1935) de William A. Wellman com Clark Grable e Loretta Young e Catástrofe nas Selvas (1972) de Ken Annakin com Charlton Heston e Michèle Mercier entre várias outras**.


Charlton Heston na versão de 1972

Agora, sendo uma das derradeiras produções da 20th Century Fox neste período da compra do estúdio pela Walt Disney Company (agora rebatizada como 20th Century Studios) temos uma nova repaginação desta história, usando recursos de ponta para caracterizar pela primeira vez corretamente a descrição do autor quanto à seu protagonista*3.


E o rato comeu a raposa...

Estreando na direção de live-action, Chris Sanders (Os Croods) e auxilado pelo roteiro de Michael Green (Logan) O Chamado da Floresta (2020) consegue ser o melhor “filme da Disneynão feito pela Disney, lembrando muito os episódios que passavam nas tardes de sábado na programa Disneylândia, que passava na Rede Globo*4 na década de 1970 e não fazendo disso um defeito, mas sim uma qualidade, num filme visualmente belíssimo e envolvente para todo aquele que curtia uma aventura-família, realizado de forma que o velho Walt aprovaria, sabendo dosar risos e lágrimas competentemente. É um produto? É! Mas sabe sê-lo de forma correta.
 

A versão atual, com um protagonista digital

O primeiro arco mostra a vida boa do grande e estabanado Buck, que como o pet monstruoso do Juiz Miller (Bradley Whitford de Corra!) e sua esposa Katie (Jean Louisa Kelly de Homem-Formiga) é um verdadeiro terremoto de quatro patas (um verdadeiro ancestral do cão Beethoven tal é a sua capacidade de provocar o caos) e por ser o típico “bom cachorro grande e bobão” é facilmente enganado e roubado, sendo traficado para o Alasca, onde leva a sua primeira surra para aprender obediência, indo parar no bando de cães puxadores de trenó do bondoso Perrault (Omar Sy de Intocáveis) e sua companheira Françoise (Cara Gee de The Expanse) que entregam a correspondência naqueles postos das cidades da região, lutando contra o relógio para entregar e pegar os malotes no horário. É particularmente legal o momento quando Perrault diz ao cachorro que “eles não carregam cartas, mas vidas”, e quando, pela primeira vez (graças à força de Buck) eles chegam no horário, a bela fotografia de Janus Kaminski (O Resgate do Soldado Ryan) e a edição de David Heinz (Vida de Adulto) e William Hoy (Planeta dos Macacos: A Guerra) fazem a câmera passear mostrando as pessoas lendo as mensagens de seus familiares, amores, amigos, lembrando para nós destes tempos de What´s App, Telegram, Video conferências e etc... o quanto era grande o investimento emocional numa simples carta de papel, escrita à mão, e entregue por meios físicos por meio de cavalos, trens, navios, cachorros. Ao longo deste arco ele cruza ocasionalmente o caminho com John Thornton (Harrison Ford de Blade Runner 2049 ainda em boa forma para a sua idade, mas já parecendo um “vovô Indiana Jones”) homem solitário e amargurado pela perda de seus filho único para uma gripe (naquela época um resfriado podia ser fatal) e nestes encontros e estabelece uma forte empatia.


O casal Perrault (Omar SY) e Françoise (Cara Gee): O homem do Sul dos EUA e a esquimó, ou "Inuíti"

A direção felizmente opta por não fazer animais falantes, usando o recurso tradicional de um narrador em off que vai contando a história e revelando a subjetividade de Buck, um bom uso de CGI e captação de coreografia de movimentos do artista de captura de performance Terry Notary (O Rei Leão) graças aos efeitos visuais da Moving Picture Company (MPC) e Technoprops que tornam os animais críveis em termos de fotorrealismo mas dando sutis elementos expressivos em seu protagonista canino e no seu “avatar” que assume o aspecto de uma silhueta fantasmagórica de um lobo que só Buck percebe e vai guiando sua jornada de crescimento conforme ele vai abandonando o seu estilo doméstico e entra em contato com a sua herança primitiva e desenvolvendo os instintos até ficarem à flor da pele, sendo que o seu embate com Spitz, o líder dos cães e seu antagonista (e o único membro da matilha, além dele, com algum destaque) o momento divisor de águas na história, pois antes dele acompanhamos um Buck totalmente dependente de sua antiga criação e após o embate, vamos seguindo as pegadas de uma criatura que passa a conhecer as suas raízes.


O "creoule" Perrault vê o potencial de Buck e acredita nele...

Posteriormente os telégrafos chegam e o serviço de cartas por trenó é desativado, obrigando Perrault a vender os cachorros e ir embora, triste. Pouco depois a matilha é vendida ao dândi vigarista Hal (Dan Stevens de Legion) que força os cachorros até a exaustão, sendo Buck salvo da morte por Thornton, passando a ser seu dono. A simbiose entre os dois acaba levando-os a uma jornada rio abaixo, onde o homem reencontra a paz de espírito e o cão, o pertencimento ao mundo natural que buscava, tendo ambos em seu encalço um rancoroso Hal, que os culpa pelo seu fracasso (embora ele tenha ignorado os avisos de Thornton e dado com os burros n´água) e deseja vingança.


A medida que aprende a seguir o seu instinto Buck vai crescendo como dono do seu focinho

Temos rápidas participações de nomes como Karen Gillan (Jumanji: Próxima Fase) e Michael Horse (Twin Peaks) entre outros, mas são tão rápidas que quase não os identificamos, mas o importante mesmo é a jornada de Bucke de Thornton, até que o cão encontre o seu lugar na paisagem natural e se torne uno com ela, coisa que é sublinhada pela música de John Powell (Como Treinar o Seu Dragão 3)


Buck e Thornton (Harrison Ford) cruzam o caminho um do outro inúmeras vezes

 
Dentre os valores de produção destacam-se o desenho de produção de Stefan Dechant (Bem-vindos a Marwen) aliado à direção de arte de Desma Murphy (Homem de Ferro 3), Andrew Max Cahn (Amor Sem Escalas), Jason T.Clark (Capitã Marvel) e Iain McFayden (Star Trek: Picard) e a decoração de sets de Danielle Berman (Aquaman) compõem bem a diferença de mundos, contrastando as casinhas bonitas coloridas e confortáveis da ensolarada Califórnia com as cidades mineiras feitas num improviso feio e rústico, alternado casebres de madeira e tendas, sem estilo em função da funcionalidade no ambiente inóspito, bem como os figurinos de Kate Hawley (Máquinas Mortais) define este contraste nos trajes da família do Juiz Miller, com os casacos costurados de Perrault e da esquimó Françoise, que é mais alinhada, ou os trajes andrajosos de Thornton que contrastam com os figurinos “almofadinha”de Hal e seus amigos, que não deixam dúvidas sobre “quem está no lugar errado”...


A dupla embarca numa grande aventura

Ao final O Chamado da Floresta consegue aliar uma narrativa clássica num modo de fazer cinema contemporâneo de forma divertida (que provavelmente será um estouro quando for para o streaming) que agradará as crianças e fará os adultos refletirem sobre questões universais de amadurecimento, lealdade e ser fiel a si mesmo e ousar buscar o seu lugar no mundo, coisas que ainda tocam fundo em nossos corações, sejamos cachorros ou não...


Buck e Thornton: Um encontra a comunhão com a natureza e o outro, a paz de espiírito e a fortuna




Notas:
 
*1: Em 1896, enormes pepitas de ouro foram encontradas, no Alasca , na confluência dos rios Yukon e Klondike. A descoberta do cobiçado metal nesta região inóspita fez com que hordas de norte-americanos juntassem suas economias e rumassem ao norte, na tentativa de enriquecer. Para sobreviver em meio ao frio, era necessário levar provisões abundantes e cães fortes para puxar trenós, o único meio de transporte confiável. London (o mesmo autor de Caninos Brancos) tentou a vida no garimpo em 1897, tendo a sua vivência no período servido de base para narrar neste romance e, entre uma e outra aventura de Buck em uma das paisagens mais hostis do globo, levando o leitor a reavaliar seus princípios de civilidade, lealdade, a sobrevivência individual ou em grupo, o amor à natureza e ao que ela oferece, (apesar de a duras penas) a capacidade de adaptação e a coragem necessária para sobreviver frente aos perigos e aos oponentes, entre vários outros conceitos de valor que são passados no romance.

*2: Na Televisão tivemos The Call of the Wild (1976) de Jerry Jameson com John Beck, 
Call of the Wild (1992) de Michael Toshiyuki Uno com Ricy Schroeder, The Call of the Wild: Dog of the Yukon (1997) de Peter Svatek com Rutger Hauer e  Call of the Wild (2000) série de David Fallon, com Nick Mancuso.

*3: Buck sempre foi mostrado nos filmes e séries como um Pastor-Alemão, ou um Ruskie, ou mestiço assemelhado com essas raças (por questões de comodidade pois muitas vezes animais dessas mesmas raças eram usadas para se passarem por lobos) mas Jack London descrevia em seu livro Buck como sendo um mestiço de São Bernardo (por isso muito grande) com Pastor Escocês, uma raça similar à dos cachorros de Pastoreio australianos, e o filme mostra no grupo de seu trenó essa diversidade racial de cães, na maioria roubados e vendidos para esse trabalho brutal.


*4: Muitos desses episódios eram antologias com o próprio Walt Disney como host, apresentando compilações de desenhos de curta metragem ou cenas das animações clássicas tendo um tema em comum para ter uma coerência narrativa ou ainda produções feitas para o cinema nas décadas de 1950 e 60 que eram editadas em episódios de 45 – 60 minutos, na maioria aventuras baseadas em clássicos da literatura como Rob Roy, O Príncipe do Donnegal, ou as comédias para a família com atores como Fred McMurray, Dick Van Dyke ou ainda séries feitas diretamente para a TV, sendo a melhor delas As Aventuras de Gallegher, ambientada em 1889 onde o jovem Gallegher (Roger Mobley) aprendiz do jornal Daily Press sonhando em se tornar repórter, mete-se em várias aventuras.



Jessica Steele-Sanders no lançamento do filme com seu marido, o diretor Chris Sanders e Bucley, o cachorro do casal, cujo escaneamento serviu de modelo para o CGI de Buck



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