quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

E continuamos sem conhecer a Colômbia - Crítica - Filmes : “Encanto” (2021)


 

Em busca de diversidade Disney não escapa do estereótipo latino-americano

 por Carlos Vinicius Marins




#Oscar 2022

E já chegou ao streaming “Encanto”, o mais novo longa de animação da Disney. Diferente do que ocorreu com os últimos longas lançados pelo estúdio - “Soul”, “Raya e o Último Dragão” e “Luca” -, “Encanto” foi lançado nos cinemas antes de chegar ao Disney+. Na realidade ele ainda continua nos cinemas, onde faz uma trajetória e tanto: já arrecadou mais de US$ 200 milhões nas bilheterias ao redor do mundo e atingiu um almejado índice de aprovação de mais de 90% do popular site agregador de críticas Rotten Tomatoes.

O longa nos apresenta a Família Madrigal, fundadora e protetora de Encanto, um vilarejo colombiano encrustado na Floresta Amazônica. Em flashbacks o filme conta que a matriarca Alma Madrigal e seu marido com seus três filhos, acompanhando um grupo de migrantes, fugiam de pessoas armadas que os hostilizavam a cidade em que moravam. No caminho, Alma desperta uma poderosa magia, que fica associada a sua família e seria usada pelos Madrigais para proteger e orientar aqueles migrantes e seus descendentes.

 

Alma Madrigal: matriarca superprotetora preocupada em manter a magia dos Madrigais na família

 

Devido a magia que encontraram em seu caminho, Alma e seus três filhos são agraciados com dons. E essa característica é transmitida para todos os seus descendentes, despertando poderes únicos em cada um deles após atingirem uma certa idade e passarem por um ritual característico. Bem, em todos menos um: a jovem Mirabel, a única Madrigal que não é especial. Ele procura compensar sua ausência de poderes, procurando ser prestativa, companheira e amorosa com os membros de sua Família e com os habitantes do vilarejo, mas seus atos nunca parecem ser suficientes para ganhar a mesma estima que sua avó dá aos outros netos. E, para piorar, Mirabel parece ser a única a perceber que a magia da família está acabando. Sozinha, ela procura descobrir o que está está acontecendo e o que pode fazer para restaurar a magia dos Madrigais. E tudo indica que um segredo de sua família, um tema sobre o qual os membros mais velhos dos Madrigais nunca comentam, pode ser a chave do mistério.

 

Mirabel, a Madrigal sem poderes: “É, né?”

Dirigido por Bryan Howard e Jared Bush, responsáveis por “Zootopia: Esta Cidade é o Bicho” (2016), “Encanto” é o sexagésimo longa de animação da Disney e mais uma das recentes produções do estúdio a tentar compensar a falta de diversidade étnica e cultural das consagradas produções de seu passado. E realmente este último filme dá alguns passos adiante, apresentando no centro dos acontecimentos uma grande família - com 12 membros - como um símbolo de miscigenação étnica. Ela tem a presença de negros, índios e brancos sem que isso seja questionado ou apresentado como se fosse algo fora do comum. Em sua maioria os membros da família não se encaixam nos padrões típicos de beleza e os poucos tipicamente belos não são os personagens de destaque.

 

Mirabela ao lado da mais bela dos Madrigais: “Isabela? Uma ajudinha? Oi...?”


Elementos culturais da Colômbia podem ser vistos no filme. Seja sua culinária típica - com alguma atenção para a arepa, uma espécie de pão feito com massa de milho -, a presença de animais tradicionais da Floresta Amazônica (na realidade comum a todos os países que tenham a Amazônia no seu ecossistema) e elementos ligados ao vestuário e a arquitetura. Este último o maior destaque cultural do país no longa, pois a grande casa dos Madrigais é um personagem importante e mutável da história.
 

Hà um segredo do passado dos Madrigais que precisa ser desvendado…

A Disney, porém, perde uma grande chance de ir além. Isso fica claro ao compararmos o filme com outra produção do mesmo conglomerado, mas desenvolvido por outro estúdio que dispensa apresentações: a Pixar. A produção em questão é “Viva! - A Vida é uma Festa” (2007, de Lee Unkrich e Adrian Molina), que tem como foco outro país latino-americano: o México. Neste também houve uma grande preocupação em apresentar e valorizar os elementos sociais e culturais daquele país, mas seu roteiro, além de mexer mais profundamente com nossas emoções, tem dois elementos importantes do México que são norteadores de toda a história e que conseguem envolver o público que o assiste de forma contagiante, duradoura e, mais que tudo, respeitosa com a cultura da qual se originam: o cancioneiro típico do país e sua tradição do Dia dos Mortos.


Madrigal é sempre prestativa com todos a sua volta

São estes elementos norteadores que fazem falta em
“Encanto”. A cultura e algumas características sociais estão presentes, mas são apenas parte do cenário. Não há um elemento típico da cultura do país que seja realmente imprescindível a história que querem contar. Para quem vê de fora e não conhece  especificamente a cultura colombiana, o filme poderia se passar em qualquer outro país castelhano das Américas que não faria diferença. Muitos dos elementos apresentados soam como estereótipos, principalmente porque a nenhum deles é dado o devido destaque narrativo.

 

Encanto: o vilarejo emula os cenários dos obras do realismo-fantástico latino-americano

Um expectador com um olhar mais atento pode até fazer um correlação entre o vilarejo de Encanto com Macondo, a cidade criada pelo escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez como cenário de seu livro mais conhecido: “Cem Anos de Solidão”. Principalmente por evocar o realismo-fantástico da obra que definiu esse gênero literário, marcante em toda a América Latina. Mas isso é pouco para envolver os expectadores, principalmente as crianças, que são o público-alvo primordial da produção e que, em sua maioria, certamente não deve ter ainda ouvido falar do escritor vencedor do Nobel de Literatura.

 

Antônio, o mais novo membro dos Madrigais, passa pelo ritual que pode lhe conferir o dom mágico da família 

 

O roteiro de Jared Bush e Charise Castro Smith, poderia, por exemplo, fazer uma relação mais clara entre a vela mística que Alma Madrigal encontra durante a fuga em seu passado e que representa o dom divino dado aos membros de sua família, com o Dia das Velas, comemorado na Colômbia no feriado de 7 de Dezembro. Nesta data, considerado no país o início das atividades natalinas, boa parte do povo colombiano coloca velas em suas janelas, nas calçadas, parques e praças para comemorar o dia da Imaculada Conceição para os católicos, formando um belo cenário em todo o país. Em algumas cidades as pessoas fazem também arranjos complexos com lanternas para marcar o dia. Quem conhece a cultura da Colômbia fará a associação entre a vela mística e a data - até porque a vela do filme tem o visual típico da comemoração -, mas seria mais envolvente para quem assiste se a relação fosse mais clara. Visualmente o filme seria ainda mais interessante e um haveria um vínculo entre os expectadores e uma importante tradição da Colômbia, que é pouco conhecida fora do país.


A bela festa do Dia das Velas na Colômbia 


“Encanto” está muito longe de ser um filme ruim. Mas a Disney perdeu a chance de ter um longa de animação impactante para marcar a efeméride de atingir a espantosa marca de 60 produções do gênero, desde de “Branca de Neve e os Sete Anões” lançando em 1937. Seu roteiro frui fácil e a animação em si é de ótima qualidade. A identificação com as crianças é certeira, principalmente em sua mensagens de aceitação das diferenças e das deficiências, da importância da família, dos filhos serem amados pelo que são, mesmo que não correspondam as expectativas dos pais, e ao mostrar que os filhos podem e devem seguir seus próprios caminhos. Suas músicas - do premiado Lin-Manuel Miranda (Hamilton, Um Bairro de Nova York) e Germaine Franco (“Viva! - A Vida é uma Festa”) -  pontuam bem a história mas não são tão marcantes. O destaque da trilha (“Two Oruguitas”, cantada pelo ídolo pop colombiano Sebastián Yatra) inclusive emula em alguns trechos de um clássico do estúdio: “Under The Sea”, composta por Alan Menken e Howard Ashman para “A Pequena Sereia” (1989, de John Musker e Ron Clements).

Sem dúvida muitos vão gostar do filme. É um bom entretenimento escapista com toques de diversidade cultural e social. Mas esta é uma ótima ideia que gerou apenas um longa mediano do estúdio.

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