A epifania Sci-Fi
por Alexandre César
O instigante embate ciência X religião
O futuro. O Mitraismo*1
é a religião hegemônica, dominando a Terra de forma despótica, apesar
da resistência de grupos ateístas que os enfrentam em sistemas de
guerrilha, enfrentado entre outras coisas os necromantes,
andróides voadores (na posição de cruz) programados para aniquilar os
hereges. Neste contexto, uma grande arca espacial é preparada para
embarcar representantes do povo escolhido e deixar a terra para trás, já
que os homens em sua arrogância e ambição corromperam e arruinaram o
planeta, sendo melhor recomeçar em algum novo mundo...
O primeiro grupo a chegar num pequeno módulo no árido planeta Kepler-22b*2, são Mother (Mãe) uma necromante reprogramada (Amanda Collin de Undtagelsen) e Father (Pai) um andróide genérico (Abubakar Salim de Fortitude),
sendo os dois designados para cuidar de embriões, que uma vez
estabelecida a colônia são incubados, tornando-se bebês e,
posteriormente crianças, com objetivo de dar início a uma nova
civilização, dado o suposto fim da raça humana. O detalhe curioso é que
essas crianças devem ser educados sob as diretrizes da ciência e da não
existência de um Deus criador de forma que possam atingir o seu pleno
potencial sem medos e tabus supersticiosos. Só que um olhar mais atento
perceberá que este lado “descrente” da balança na verdade representa o
alvorecer de uma espécie de novo cristianismo.
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Simbolismo: "Pai" (Abubakar Salim) e "Mãe" (Amanda Collin), a carismática dupla de andróides que estabelecem uma colôniano árido Kepler 22-b são como um Adão & Eva sintéticos... |
Criada por Aaron Guzikowski (Contrabando) e tendo Ridley Scott (Blade Runner: O Caçador de Androides) como um dos produtores e diretor dos dois primeiros episódios, Raised by Wolves vai
além das referências religiosas, sendo uma experiência de gosto
familiar, já que tudo na série remete à sensação de um “já vi isso
antes”, mas a nova produção da HBO Max (o serviço de streaming da HBO),
mistura em doses balanceadas as referências bíblicas e as discussões
filosóficas numa ambientação futurística engajante, trazendo um frescor
ao tão desgastado gênero sci-fi.
Logo de cara fica evidente a reimaginação na série do conceito do paraíso bíblico com Adão e Eva dando lugar aos personagens Pai e Mãe,
e vemos a subversão ao constatar que ambos são máquinas e não seres de
carne e osso. estabelecendo uma dicotomia entre devotos e não devotos.
Acontece que as coisas não são tão simples assim, já que toda a trama
que envolve Pai e Mãe (céticos da existência de “Deus”, mas que têm no homem seu “Criador”),
é povoada de referências tanto do Novo quanto do Velho Testamento, e
assim temos a representação da árvore do fruto proibido, a simbologia da
cruz, alusão a Cain e Abel, Maria e José, o Salvador. Se você conhece
as histórias bíblicas, tem tudo pra se empolgar com cada referência
reimaginada na série.
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"Pai" explica à Campion (Winta McGrath), o único sobrevivente da primeira geração, que ele deverá aprender a ser menos empático para poder sobreviver |
De
início, vemos a luta pela sobrevivência e a trajetória de geração e
manutenção da vida. Ao longo do tempo, dadas as duras condições do árido
planeta, apenas Campion (Winta McGrath de Risen) sobrevive do núcleo original de crianças, para frustração de Mãe, que ao travar contato com exploradores mitraicos, vindos da Arca, dentre eles, Marcus Drusus, interpretado pelo ator Travis Fimmel (Vikings) e sua mulher Sue (Niamh Algar de The Virtues) que guardam alguns segredos. Após um combate entre eles, Mãe resolve invadir a Arcae traz um grupo de crianças para criar, entre elas, Paul (Felix Jamieson de Catarina, A Grande)
o filho do casal, deixando a enorme nave em rumo de colisão com o
planeta, com resultados catastróficos e reiniciando a rixa entre
mitraicos e ateus.
A nova leva de crianças sequestradas pela Mãe se compõe de Tempest (Jordan Loughran de Emerald City),
a mais velha, grávida devido à ter sido estuprada por Otho (Brendan Murray e
voz de Adrian Schiller), um clérigo durante a sua hibernação criogênica;
Hunter (Ethan Hazzard de O Desafio)
o irritante filho de clérigo, que se acha melhor do que os demais
(corroborando essa “opinião” em nome de sua fé); a devota Holly (Aasiya
Shah de Unforgotten) e a pequena Vita (Ivy Wong de Malévola: Dona do Mal)
e assim,entre as escaramuças entre os grupos percebemos que uma das
discussões centrais é o que alguém é capaz de fazer para conseguir
poder, revestindo essa busca de forma significativa, tornando a
narrativa mais rica ao mostrar ironicamente, que dois indivíduos no meio
dos religiosos na verdade não pertencem àquele meio, simplesmente
desprezando todas as ideias à sua volta, por uma questão de
sobrevivência, além das discussões recorrentes do universo sci-fi como a existência de alma entre máquinas criadas pelo homem (ou o caminho de humanização dessas máquinas, que, tal qual em Blade Runner,
demonstram muitas vezes mais humanidade que os próprios humanos) e
nisto refletindo a nossa grande facilidade de adaptabilidade a uma
quantidade notável de ambientes (em sua maioria hostis), e o paradoxo do
nosso caráter de existência social, aliando uma monumental força de
vontade na luta pela sobrevivência e pela continuação da espécie, mas
não se furtando em eliminar em massa quem lhes são sejam ideologicamente
(ou em qualquer outro aspecto de convivência) opostos. (coisa que no
nosso “mundo pacífico, democrático e civilizado“,
a mais frequente forma de eliminação cotidiana é por “maioria” moral,
jurídica ou emocionalmente eletrônica) ou ainda, especulando se algum
dia chegar o momento de colonizar outro planeta, ainda levaremos as
nossas brigas para contaminar as crianças que irão formar a nova
civilização? Teremos ou não conserto enquanto espécie, para ter assim o
“direito” a continuar a existir fora da Terra?
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Referências: É nítida a influência de Moebius (O Incal ) e Juan Gimenez ( A Saga dos Meta Barões) no figurino dos trajes dos soldados e dos religiosos... |
No
contexto colonizador, a série alimenta bem as teorias e dilemas em
torno do ateísmo e da religião, unindo a esse tratamento os recorrentes
problemas humanos que colocam a fé (ou o comportamento dos religiosos)
em xeque, assim como os princípios de pacifismo e de nova visão de
sociedade pretendida pelos ateus, entre outros tópicos, surgem elementos
que desafiam o bom senso, embora parte delas entendamos como parte de um
contexto futurista sobre o qual poucos ou nenhum detalhe nos é
fornecido. O que não significa que tudo o que aparece no enredo faça
sentido ou seja organicamente aceito na trama. ficando dúvidas por
exemplo, sobre a questão da profecia dos seguidores do Sol, além de
haver pouco aprofundamento nos personagens mitraicos como a comandante
Justina (Susan Danford de Deutschland 86), o questionador Bartok (Litha Bam de Warrior), Lucius (Matias Varela de Assassin´s Creed), a devota Cassia (Loulou Taylor de The Flat Tires), Den (Garth Breytenbach de 8), Kroni (Anlia van Rensburg de Playboyz), Mastema (Shoko Yoshimura de Vagrant Queen), Danjal (Kate Upton de Santana), Furfur (Daniel Lasker de Vagrant Queen) ou Halphas (Chris Fisher de Black Sails) sofrendo a maioria de “síndrome de red shirts”*3.
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Sue (Niamh Algar) e seu marido Marcus Drusus (Travis Fimmel) são um casal mitraico que guarda segredos quanto à suas origens... |
A surpreendente direção de fotografia de Ross Emery (Cidade das Sombras), Erik Messerschmidt (Homem-Formiga) e Darius Wolski (Prometheus)
cria nas paisagens sul-africanas uma atmosfera alienígena, imprimindo
uma belíssima identidade ao planeta, tanto em cenas noturnas quanto
diurnas, que ecoam universos como o de Alien– mais precisamente seus filmes mais recentes Prometheus (2012) e Covenant (2017) outras obras de Scott - aqui complementadas pela trilha sonora de Marc Streitenfeld (Prometheus) e Ben Frost (Dark)
que resgata músicas tribais, notadamente africanas, especialmente na
percussão, e misturando variações para esse tipo de música com uma
sombria abordagem de temas mais ligados à ficção científica. Até o uso
de cordas, com orquestra quase em uníssono, soa macabro, criando uma
suspeita aura auditiva, completada pela excelente edição e
principalmente mixagem de som, que a edição de Jennifer Barbot (Jessica Jones), Michael Ruscio (True Blood), Christopher S. Capp (Jogos Vorazes) e Claire Simpson (O Jardineiro Fiel)
complementa na alternância do ritmo narrativo, ora contemplativo, ora
dinâmico, mas optando por só acelerar a narrativa quando realmente isto é
necessário.
Num misto de sofisticação e simplicidade, o desenho de produção de Tom McCullagh (Sob o Domínio dos Robôs) e Chris Seagers (Alien: Covenant) com uso pontual pela direção de arte de Fiona Gavin (Magnatas do Crime), Jonathan Hely-Hutchinson (Distrito 9), Brett Hison (Bloodshot) e Malwande Sigabi (Escape Room) e a decoração de sets de Maria Labuschagne (10.000 A.C.), Caroline Walker (Tomb Raider: A Origem) e Celia Bobak (Perdido em Marte)
que contrastam o aspecto rústico do acampamento dos colonos com as
instalações hightech da arca, e com o caótico da Terra devastada dos flashbacks, quando
o conflito entre ciência e religião é apresentado como causa central da
guerra que acabou exigindo a migração extraplanetária dos humanos
(mostrado no ano de 2145) numa evidente referência da ambientação
futurística distópica de O Exterminador do Futuro (1984), ao mostrar o mundo em guerra com humanos combatendo necromantes. Como referência pop, temos os figurinos de Kate Carin (Fórmula 51) cujo look (pricipalmente nos trajes dos soldados e dos religiosos) remetem a Moebius e Juan Gimenez das histórias de O Incal e A Saga dos Meta Barões.
Os efeitos visuais das empresas BOT VFX, BUF, Day For Nite são usados para
as coisas que realmente precisam de efeitos visuais, utilizando efeitos
práticos sempre que possível, não sendo nada demasiadamente chamativo ou
ambicioso.
Mesmo
não trazendo temas inteiramente originais, em sua alegoria futurística
do que seria o reinício da civilização, misturando referências bíblicas e
discussões filosóficas dentro de uma trama sci-fi Raised by Wolves é um abundante fonte de idéias em meio ao deserto criativo de produções do gênero, que abundam no Sci-Chanel e no streaming.
Se essa primeira temporada foi marcada por uma força da religião na
tentativa de dominação do lugar, a 2ª sinaliza para o contrário, com
aquelas perguntas típicas de final da temporada (com duas possibilidades
de resposta) também presentes, tendo, evidentemente, o revés de vários
personagens religiosos acreditando na existência do Sol, o que muito
rapidamente deverá trazer conflitos mais fortes do segundo ano. O que
temos é a indicação de que a colonização do planeta deverá começar
agora, o que deverá acarretar a sua cota de problemas, pois com a
chegada dos ateus, os já fortes “problemas no Paraíso” estão apenas
começando...
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De pai para filho: Marcus Drusus tenta manter um vínculo com seu filho Paul (Felix Jamieson), o que é dificultado pelo seu segredo... |
Notas:
*1: O
Mitraísmo, foi um dos principais cultos religiosos que surgiu por volta
do século II A.C. No Império Romano, tendo alcançado a sua máxima
expansão entre os séculos III e IV D.C. quando fazia oposição ao
cristianismo na Roma Antiga, sendo que muitas características de sua
liturgia foram incorporados pelo cristianismo católico.Os mitraicos
(adoradores do Sol) entre outras práticas, como o batismo, a divisão
do pão, o uso do incenso, os cantos sagrados e a guarda dos dis santos,
além de celebrar o culto do Sol Invictus na data de 25 de dezembro,
próximo do solstício do inverno, pois o Sol era considerado o mais
importante dos corpos celestes, por ser fonte de lu e fiel aliado de
Mitra (ivindade de origem indo-iraniana).. O mitraismo, junto com
outras religiões pagãs foi considerado ilegal pelo imperador romano
Teodósio I em 391, quando começou a entrar em decadência, atá a sua
extinção.
*2: Planeta descoberto em dezembro de 2011 que se tornou famoso por estar numa zona habitável de uma estrela semelhante ao Sol, estando a cerca de 220 anos-luz da Terra, na constelação de Gygnus.
*3: na série Jornada nas Estrelas (Star Trek) original, os “red shirts”(camisas vermelhas) eram os membros da segurança da nave estelar Enterprise,
que na maioria das vezes morriam em lugar dos protagonistas, para
mostrar haviam situações de perigo real na trama, tendo um índice de
mortalidade beem maior do que os outros tripulantes, de camisas azuis,
mostarda ou, verde. Situação similar ocorria com os tripulantes do
submarino Seaview de Viagem ao Fundo do Mar (Voyage To The Bottom Of The Sea).
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