domingo, 13 de dezembro de 2020

No princípio era o mito... - Raised by Wolves: 1ª Temporada

 


A epifania Sci-Fi

por Alexandre César


 O instigante embate ciência X religião
 

O futuro. O Mitraismo*1 é a religião hegemônica, dominando a Terra de forma despótica, apesar da resistência de grupos ateístas que os enfrentam em sistemas de guerrilha, enfrentado entre outras coisas os necromantes, andróides voadores (na posição de cruz) programados para aniquilar os hereges. Neste contexto, uma grande arca espacial é preparada para embarcar representantes do povo escolhido e deixar a terra para trás, já que os homens em sua arrogância e ambição corromperam e arruinaram o planeta, sendo melhor recomeçar em algum novo mundo...
 
 
O eterno embate da Fé versus a Ciência...

 
O primeiro grupo a chegar num pequeno módulo no árido planeta Kepler-22b*2, são Mother (Mãe) uma necromante reprogramada (Amanda Collin de Undtagelsen) e Father (Pai) um andróide genérico (Abubakar Salim de Fortitude), sendo os dois designados para cuidar de embriões, que uma vez estabelecida a colônia são incubados, tornando-se bebês e, posteriormente crianças, com objetivo de dar início a uma nova civilização, dado o suposto fim da raça humana. O detalhe curioso é que essas crianças devem ser educados sob as diretrizes da ciência e da não existência de um Deus criador de forma que possam atingir o seu pleno potencial sem medos e tabus supersticiosos. Só que um olhar mais atento perceberá que este lado “descrente” da balança na verdade representa o alvorecer de uma espécie de novo cristianismo.
 
 
Simbolismo: "Pai" (Abubakar Salim) e "Mãe" (Amanda Collin), a carismática dupla de
andróides que estabelecem uma colôniano árido Kepler 22-b são como um Adão & Eva sintéticos...

 
Criada por Aaron Guzikowski (Contrabando) e tendo Ridley Scott (Blade Runner: O Caçador de Androides) como um dos produtores e diretor dos dois primeiros episódios, Raised by Wolves vai além das referências religiosas, sendo uma experiência de gosto familiar, já que tudo na série remete à sensação de um “já vi isso antes”, mas a nova produção da HBO Max (o serviço de streaming da HBO), mistura em doses balanceadas as referências bíblicas e as discussões filosóficas numa ambientação futurística engajante, trazendo um frescor ao tão desgastado gênero sci-fi.
 
 
 A primeira geração enfrenta um ambiente inóspito, que ceifará os mais fracos...

Logo de cara fica evidente a reimaginação na série do conceito do paraíso bíblico com Adão e Eva dando lugar aos personagens Pai e Mãe, e vemos a subversão ao constatar que ambos são máquinas e não seres de carne e osso. estabelecendo uma dicotomia entre devotos e não devotos. Acontece que as coisas não são tão simples assim, já que toda a trama que envolve Pai e Mãe (céticos da existência de “Deus”, mas que têm no homem seu “Criador”), é povoada de referências tanto do Novo quanto do Velho Testamento, e assim temos a representação da árvore do fruto proibido, a simbologia da cruz, alusão a Cain e Abel, Maria e José, o Salvador. Se você conhece as histórias bíblicas, tem tudo pra se empolgar com cada referência reimaginada na série.
 
 
"Pai" explica à Campion (Winta McGrath), o único sobrevivente da primeira geração, que ele deverá aprender a ser menos empático para poder sobreviver

 
 De início, vemos a luta pela sobrevivência e a trajetória de geração e manutenção da vida. Ao longo do tempo, dadas as duras condições do árido planeta, apenas Campion (Winta McGrath de Risen) sobrevive do núcleo original de crianças, para frustração de Mãe, que ao travar contato com exploradores mitraicos, vindos da Arca, dentre eles, Marcus Drusus, interpretado pelo ator Travis Fimmel (Vikings) e sua mulher Sue (Niamh Algar de The Virtues) que guardam alguns segredos. Após um combate entre eles, Mãe resolve invadir a Arcae traz um grupo de crianças para criar, entre elas, Paul (Felix Jamieson de Catarina, A Grande) o filho do casal, deixando a enorme nave em rumo de colisão com o planeta, com resultados catastróficos e reiniciando a rixa entre mitraicos e ateus.
 
 
A direção de arte e os efeitos visuais criaram um ambiente único e mítico nas locações africanas...

 A nova leva de crianças sequestradas pela Mãe se compõe de Tempest (Jordan Loughran de Emerald City), a mais velha, grávida devido à ter sido estuprada por Otho (Brendan Murray e voz de Adrian Schiller), um clérigo durante a sua hibernação criogênica; Hunter (Ethan Hazzard de O Desafio) o irritante filho de clérigo, que se acha melhor do que os demais (corroborando essa “opinião” em nome de sua fé); a devota Holly (Aasiya Shah de Unforgotten) e a pequena Vita (Ivy Wong de Malévola: Dona do Mal) e assim,entre as escaramuças entre os grupos percebemos que uma das discussões centrais é o que alguém é capaz de fazer para conseguir poder, revestindo essa busca de forma significativa, tornando a narrativa mais rica ao mostrar ironicamente, que dois indivíduos no meio dos religiosos na verdade não pertencem àquele meio, simplesmente desprezando todas as ideias à sua volta, por uma questão de sobrevivência, além das discussões recorrentes do universo sci-fi como a existência de alma entre máquinas criadas pelo homem (ou o caminho de humanização dessas máquinas, que, tal qual em Blade Runner, demonstram muitas vezes mais humanidade que os próprios humanos) e nisto refletindo a nossa grande facilidade de adaptabilidade a uma quantidade notável de ambientes (em sua maioria hostis), e o paradoxo do nosso caráter de existência social, aliando uma monumental força de vontade na luta pela sobrevivência e pela continuação da espécie, mas não se furtando em eliminar em massa quem lhes são sejam ideologicamente (ou em qualquer outro aspecto de convivência) opostos. (coisa que no nosso “mundo pacífico, democrático e civilizado“, a mais frequente forma de eliminação cotidiana é por “maioria” moral, jurídica ou emocionalmente eletrônica) ou ainda, especulando se algum dia chegar o momento de colonizar outro planeta, ainda levaremos as nossas brigas para contaminar as crianças que irão formar a nova civilização? Teremos ou não conserto enquanto espécie, para ter assim o “direito” a continuar a existir fora da Terra?
 
Referências: É nítida a influência de Moebius (O Incal ) e Juan Gimenez ( A Saga dos Meta Barões) no figurino dos trajes dos soldados e dos religiosos...

 
No contexto colonizador, a série alimenta bem as teorias e dilemas em torno do ateísmo e da religião, unindo a esse tratamento os recorrentes problemas humanos que colocam a fé (ou o comportamento dos religiosos) em xeque, assim como os princípios de pacifismo e de nova visão de sociedade pretendida pelos ateus, entre outros tópicos, surgem elementos que desafiam o bom senso, embora parte delas entendamos como parte de um contexto futurista sobre o qual poucos ou nenhum detalhe nos é fornecido. O que não significa que tudo o que aparece no enredo faça sentido ou seja organicamente aceito na trama. ficando dúvidas por exemplo, sobre a questão da profecia dos seguidores do Sol, além de haver pouco aprofundamento nos personagens mitraicos como a comandante Justina (Susan Danford de Deutschland 86), o questionador Bartok (Litha Bam de Warrior), Lucius (Matias Varela de Assassin´s Creed), a devota Cassia (Loulou Taylor de The Flat Tires), Den (Garth Breytenbach de 8), Kroni (Anlia van Rensburg de Playboyz), Mastema (Shoko Yoshimura de Vagrant Queen), Danjal (Kate Upton de Santana), Furfur (Daniel Lasker de Vagrant Queen) ou Halphas (Chris Fisher de Black Sails) sofrendo a maioria de “síndrome de red shirts”*3.
 
 
Sue (Niamh Algar) e seu marido Marcus Drusus (Travis Fimmel) são um casal mitraico
 que guarda segredos quanto à suas origens...


A surpreendente direção de fotografia de Ross Emery (Cidade das Sombras), Erik Messerschmidt (Homem-Formiga) e Darius Wolski (Prometheus) cria nas paisagens sul-africanas uma atmosfera alienígena, imprimindo uma belíssima identidade ao planeta, tanto em cenas noturnas quanto diurnas, que ecoam universos como o de Alien– mais precisamente seus filmes mais recentes Prometheus (2012) e Covenant (2017) outras obras de Scott - aqui complementadas pela trilha sonora de Marc Streitenfeld (Prometheus) e Ben Frost (Dark) que resgata músicas tribais, notadamente africanas, especialmente na percussão, e misturando variações para esse tipo de música com uma sombria abordagem de temas mais ligados à ficção científica. Até o uso de cordas, com orquestra quase em uníssono, soa macabro, criando uma suspeita aura auditiva, completada pela excelente edição e principalmente mixagem de som, que a edição de Jennifer Barbot (Jessica Jones), Michael Ruscio (True Blood), Christopher S. Capp (Jogos Vorazes) e Claire Simpson (O Jardineiro Fiel) complementa na alternância do ritmo narrativo, ora contemplativo, ora dinâmico, mas optando por só acelerar a narrativa quando realmente isto é necessário.
 
 
 "Para Mecca": Os mitraístas acampam um tempo junto à uma à um módulo misterioso...

 
 Num misto de sofisticação e simplicidade, o desenho de produção de Tom McCullagh (Sob o Domínio dos Robôs) e Chris Seagers (Alien: Covenant) com uso pontual pela direção de arte de Fiona Gavin (Magnatas do Crime), Jonathan Hely-Hutchinson (Distrito 9), Brett Hison (Bloodshot) e Malwande Sigabi (Escape Room) e a decoração de sets de Maria Labuschagne (10.000 A.C.), Caroline Walker (Tomb Raider: A Origem) e Celia Bobak (Perdido em Marte) que contrastam o aspecto rústico do acampamento dos colonos com as instalações hightech da arca, e com o caótico da Terra devastada dos flashbacks, quando o conflito entre ciência e religião é apresentado como causa central da guerra que acabou exigindo a migração extraplanetária dos humanos (mostrado no ano de 2145) numa evidente referência da ambientação futurística distópica de O Exterminador do Futuro (1984), ao mostrar o mundo em guerra com humanos combatendo necromantes. Como referência pop, temos os figurinos de Kate Carin (Fórmula 51) cujo look (pricipalmente nos trajes dos soldados e dos religiosos) remetem a Moebius e Juan Gimenez das histórias de O Incal e A Saga dos Meta Barões.
 
 
 "Mãe" invade a arca dos mitraístas para pegar crianças e a lança a em rota de colisão...

 
 Os efeitos visuais das empresas BOT VFX, BUF, Day For Nite são usados para as coisas que realmente precisam de efeitos visuais, utilizando efeitos práticos sempre que possível, não sendo nada demasiadamente chamativo ou ambicioso.
 
 
 A nova leva se sente amedrontada (e com razão) devido às suas origens...
 
 
Mesmo não trazendo temas inteiramente originais, em sua alegoria futurística do que seria o reinício da civilização, misturando referências bíblicas e discussões filosóficas dentro de uma trama sci-fi Raised by Wolves é um abundante fonte de idéias em meio ao deserto criativo de produções do gênero, que abundam no Sci-Chanel e no streaming. Se essa primeira temporada foi marcada por uma força da religião na tentativa de dominação do lugar, a 2ª sinaliza para o contrário, com aquelas perguntas típicas de final da temporada (com duas possibilidades de resposta) também presentes, tendo, evidentemente, o revés de vários personagens religiosos acreditando na existência do Sol, o que muito rapidamente deverá trazer conflitos mais fortes do segundo ano. O que temos é a indicação de que a colonização do planeta deverá começar agora, o que deverá acarretar a sua cota de problemas, pois com a chegada dos ateus, os já fortes “problemas no Paraíso” estão apenas começando...
 
 
 De pai para filho: Marcus Drusus tenta manter um vínculo com seu filho Paul (Felix Jamieson), o que é dificultado pelo seu segredo...

 
 
 
Notas:
 

 
*1: O Mitraísmo, foi um dos principais cultos religiosos que surgiu por volta do século II A.C. No Império Romano, tendo alcançado a sua máxima expansão entre os séculos III e IV D.C. quando fazia oposição ao cristianismo na Roma Antiga, sendo que muitas características de sua liturgia foram incorporados pelo cristianismo católico.Os mitraicos (adoradores do Sol) entre outras práticas, como o batismo, a divisão do pão, o uso do incenso, os cantos sagrados e a guarda dos dis santos, além de celebrar o culto do Sol Invictus na data de 25 de dezembro, próximo do solstício do inverno, pois o Sol era considerado o mais importante dos corpos celestes, por ser fonte de lu e fiel aliado de Mitra (ivindade de origem indo-iraniana).. O mitraismo, junto com outras religiões pagãs foi considerado ilegal pelo imperador romano Teodósio I em 391, quando começou a entrar em decadência, atá a sua extinção.
 
 

 
*2: Planeta descoberto em dezembro de 2011 que se tornou famoso por estar numa zona habitável de uma estrela semelhante ao Sol, estando a cerca de 220 anos-luz da Terra, na constelação de Gygnus.
 
 

*3: na série Jornada nas Estrelas (Star Trek) original, os “red shirts”(camisas vermelhas) eram os membros da segurança da nave estelar Enterprise, que na maioria das vezes morriam em lugar dos protagonistas, para mostrar haviam situações de perigo real na trama, tendo um índice de mortalidade beem maior do que os outros tripulantes, de camisas azuis, mostarda ou, verde. Situação similar ocorria com os tripulantes do submarino Seaview de Viagem ao Fundo do Mar (Voyage To The Bottom Of The Sea).
 
 
 "Estamos chegando para tomar conta do pedaço, seus fanáticos!!!"



 

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