quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Magia & preconceito - Lovecraft Country - 1ª Temporada

 

Piores do que os monstros são os racistas escrotos...

por Alexandre César


Série surpreende apostando na inclusão

 

Chicago, década de 1950 do século XX. Retornando do exército, após lutar na Guerra da Coréia (25/06/1950 – 27/07/1953) o jovem Atticus Freeman (Jonathan Majors, de Destacamento Blood) procura o seu tio George Freeman (Courtney B. Vance, de Caçada ao Outubro Vermelho) que escreve e publica o "Guia para o Negro Viajar em Segurança" *1. Ele está se preparando para uma nova viagem a fim de expandir o alcance de sua publicação. Atticus recebeu uma carta de seu pai (com quem não fala há anos por conta de seu alcoolismo e violência) onde ele dizia ter encontrado as origens de sua falecida mãe na cidade de “Arkhan” *2, o que soa estranho tanto para ele como para o tio, pois, como ávidos leitores de literatura pulp*3 e fantástica, ambos sabem que tal cidade é fruto da imaginação do escritor H.P. Lovecraft *4. Logo George descobre que, devido à péssima caligrafia do pai, “Arkhan” é na realidade “Ardiam”. Nesse período ele reencontra a independente e empoderada Letitia Lewis (Jurnee Smollett, de Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa): uma antiga amizade de infância (e interesse romântico de Atticus) que se surpreende com o quanto o menino franzino de outrora “cresceu e apareceu”.



Atticus Freeman (Jonathan Majors) volta da guerra para a realidade segregada...


Traçando a localização da cidade de sua mãe no mapa (cujas referências são escassas desde o século XIX) Atticus e George continuam a planejar a viagem que fariam, acrescentando agora uma nova parada no trajeto, onde estaria o pai do ex-soldado. A jornada preocupa Hipollyta (Aunjanue Ellis, de Olhos que Condenam), a esposa de George, e Diana (Jada Harris, de The Resident), a talentosa filha do casal. 

Após reencontrar Ruby Baptiste (Wunmie Mozaku, de Batman x Superman), sua irmã com quem não se dá muito bem, Letitia se une ao dois e o trio põe o pé na estrada. Hipollyta queria ir junto, mas George aceita, pois tantos negros andando juntos pelo sul dos Estados Unidos, no auge da época das “Leis de Jim Crow”*5, estão sujeitos a toda a sorte de perigos, muitos deles superiores à de qualquer outro tipo de ameaça, seja ela de natureza cósmica ou sobrenatural...

 

Família feliz: Diana (Jada Harris ) e seus pais Hipollyta (Aunjanue Ellis ) e George Freeman (Courtney B. Vance). Sempre juntos para o que der e vier...

 

Criada por Misha Green (Helix) e Jordan Peele (Corra!), a série Lovecraft Country é  produzida por eles e por J.J. Abrams (Star Wars: A Ascenção Skywalker). É baseada na novela “Território Lovecraft”, de Matt Ruff (2016) e é a nova aposta da HBO no território do fantástico e faz referências ao trabalho de Howard Phillips Lovecraft, cujo racismo e xenofobia latentes em seu obra durante muito tempo foram vistos apenas como a “visão de época”. O programa serve de alegoria ao próprio racismo e a xenofobia estrutural da socidade norte-americana, onde, mesmo passados tantos anos depois do seu período retratado, ainda aponta as muitas máculas do mítico “sonho americano”... É possível até se especular similaridades com outra série recente da HBO que apostou no fantástico para discutir essa condição crônica da sociedade ianque: Watchmen, uma continuação da premiada história em quadrinhos de Alan Moore e Dave Gibbons. Muitos  já especulam que ambas as séries se passam no mesmo universo ficcional, mas isso é melhor ser discutido futuramente caso tenhamos ou não uma nova temporada...


Tio George Freeman, Atticus e a valente Letitia Lewis partem numa missão de resgate pelo perigoso sul dos E.U.A...

 

O trio, após ser caçado por supremacistas e a “hospitaleira” polícia da região, finalmente encontram Ardhan, uma cidade encravada no meio do nada, onde o grupo era aguardado por Titus Braitwhite (Tony Goldwin, de Ghost), líder da cidade e da sociedade secreta/culto Os Filhos de Adão, junto com sua filha rebelde Christina (Abbey Lee, de Demônio de Neon), que no livro era um homem, dando aqui uma nova dinâmica à história. Estranhando a recepção acolhedora, o grupo logo se vê prisioneiro após encontrar o pai de Atticus, Montrose Freeman (Michael Kenneth Williams,  de 12 anos de escravidão), que havia sido aprisionado para atrair o ex-solado. Devido à sua linhagem, Atticus era peça importante para um ritual que Titus planejava fazer.



A cidade de Ardhan não existe no mapa e parece um mundo à parte...

Após este primeiro arco, a série engrena uma sequência de episódios que lembra o esquema “o monstro/aparição da semana” de Arquivo X, Millennium ou Supernatural, explorando também situações como a “casa assombrada” ou “deuses primevos”,  recorrentes nas obras de Lovecraft e seu ”terror cósmico”. Ao longo da temporada não faltando citações à literatura pulp e gótica, entre elas "A Guerra dos Mundos", de H.G.Wells; "Os Mitos de Ctulhu", de Lovecraft; "A Princesa de Marte", de Edgar Rice Burroughs; "Drácula", de Bram Stocker, entre outras menos óbvias, como numa cena em que o livro que George puxa e abre uma passagem secreta é "The House on the Borderlands", de William Hope Hodgson, escritor inglês de Ficção científica e uma das fontes de inspiração de Lovecraft. E tem a citação do herói pessoal de Atticus, Jack Robinson, o primeiro grande jogador negro de beisebol, o  nº 42 do Brooklyn Dodgers, que acaba tendo importância pivotal em sua jornada do herói.

 
"Os Filhos de Adão" querem usar Atticus para propósitos nefastos...

Com atuações viscerais e um roteiro criativo que toma liberdades metalinguísticas com a obra original, tomando um rumo mais impactante, a série consegue a façanha de saber divertir e colocar o dedo na ferida do racismo crônico da sociedade norte-americana sem cair na lacração fácil - o que foi fatal para algumas séries, como a terceira temporada de Raio Negro. Ela investe de maneira ímpar no resgate do protagonismo da figura do negro em gêneros como o terror, a aventura e a ficção-científica (muito “libertário” vai se sentir incomodado...), além de resgatar momentos esquecidos da História, como o "Massacre de Tulsa” de 1921 (já mencionado em Watchmen), as violências perpetradas na Guerra da Coréia ou contra as Amazonas do Daomé - ferozes guerreiras africanas que deram trabalho aos invasores europeus (dignas de Wakanda). No plano estético visual ela resgata o afro-futurismo dos filmes experimentais do cineasta Sam Rah.


"Momento Willie Caolho": no episódio, Atticus & amigos têm uma aventura digna de "Os Goonies"

 

A série tem uma grande trajetória através de vários gêneros. No 3º episódio temos uma história de “casa mal-assombrada”; no 4º uma aventura digna de Indiana Jones ou Os Goonies; no 5º episodio Ruby se torna Dell (Jamie Neumann, de The Deuce), uma mulher branca, e descobre que Christina e William (Jordan Patrick Smith, de Vikings) são a mesma pessoa; no 6º episódio, vemos as experiências de Atticus durante a Guerra da Coreia na perspectiva de Ji-Ah (Jamie Chung, de Sucker Punch: Mundo Surreal); no 7º episódio vemos a trajetória de Hippolyta por realidades paralelas, no mais iconograficamente rico episódio da série; no 8º referencia-se o assassinato covarde de Bobo (menino amigo de Diana) por policiais; no 9º episódio temos uma viagem no tempo até a noite do ”Massacre de Tulsa” em 1921, levantando as questões de legados de sangue e dos sacrifícios que uma geração é capaz de fazer por seus descendentes.
 
Oriente: no 6º episódio (falado em coreano),  Ji-Ah (Jamie Chung) vive um romance com o soldado Atticus e revela a sua real natureza

 

A salada de frutas pop é plena de ingredientes variados que vão  do poético ao revoltante de forma orgânica. Acompanha a evolução de seus personagens, que pagam cada um o seu preço em dor, redenção, sacrifício e sangue, sempre usando o fantástico como alegoria à discriminação e dominação do outro - seja ele negro, índio, oriental, gay ou mulher.
 
Christina Braitwhite (Abbey Lee) planeja se tornar a "toda-poderosa", mesmo sendo mulher


Os valores da série são altíssimos, com o desenho de produção de Kalina Ivanov (Criando Dion) e Howard Cummings (Westworld). A direção de arte é de Audra Avery (Maniac), Elena Albanese (Capitã Marvel), Mari Lappalainen (Danny Boy), Nathan Krochmal (U-666), James Bolenbaugh (A Lavanderia), Artie Contreras (Aulas no Navio) e Jami Primmer (Shameless) e a decoração de sets ficou a cargo de Julie Ochipinti (Westword) e os figurinos são de Fauna Pink (Bumblebee), recriando a época magistralmente, além de situar os elementos fantásticos da narrativa, complementados pelos efeitos de maquiagem da KNB EFX Group (The Evil Dead). Os efeitos visuais da Crafty Apes, RodeoFx, Framestore criam monstros e momentos de body horror antológicos.



Rixa entre irmãs: Ruby Baptiste (Wunmie Mozaku) e Letitia tem negócios inacabados...


A fotografia de Michael Watson (Raio Negro) e Att Radcliffe (White Boy Rick), de palheta vibrante, e a edição de Marta Evry (O Homem do Castelo Alto), Bjorn T. Myrholt (This Is Us), Ian S.Tan (Manto e Adaga), Joel T. Passou (NOS4A2), Sean Albertson ( A Ilha da Fantasia), Paul Harb (Maze Runner: A Cura Mortal) e Chris Wyatt (Calibre) mantém a narrativa sempre no ponto, sublinhada pela trilha musical de Laura Karpman (Taken) e Raphael Saadqui (Insecure). A trilha inclui "Rivers", de Leon Bridges, que toca na morte de um personagem querido; “Black Bird", de Nina Simone, na fuga de Montrose (paralelo com "O Conde de Monte Cristo", de Alexandre Dumas); “Killing Strangers", de Marylin Mason, durante a preparação de Atticus para o ritual no 2º episódio. O seriado conta com canções de The Crew Cuts, Etta James, B.B.King, Sarah Vaughan, Tierra Whack, Earl Hooker, entre outros, além da transcrição do discurso de James Baldwin*6 sobre "O sonho Americano e o Negro Americano" e o poema "Whitey's on the moon", de Gil Scott-Heron, falando da dificuldades dos negros enquanto os brancos vão para a lua (Apolo XI).



Letitia intermedia Atticus e Montrose Freeman (Michael Kenneth Williams) para se reconciliarem...

 

Com seu final agridoce e que pode terminar a série ali, mas é pleno de possibilidades de seguir em frente, Lovecraft Country entretém e levanta questões profundas sobre o racismo, identidade de gênero, luta de classes e nos leva a pensar, ainda mais no momento em que vivemos, quando muitos em nosso país alegam não ter corrupção e racismo por aqui, apesar de oito de cada dez mortos por violência policial serem negros ou pardos.

Que venha a segunda temporada...

 


Não faltam referências ao "terror cósmico" de Lovecraft




Notas:

*1: Era popular na época "O Livro Verde do Motorista Negro" (título original: The Negro Motorist Green Book, mas também, The Negro Travelers' Green Book ou somente Green Book), um guia de viagem para viajantes afro-americanos. Foi concebido e publicado pelo carteiro nova-iorquino Victor Hugo Green de 1936 a 1966, quando era generalizada a discriminação pública e, em muitos casos, prevista em leis contra afro-americanos, especialmente, e outras pessoas não-brancas. Embora a discriminação racial e a pobreza limitassem as chances de negros possuíssem carros, a classe média afro-americana emergente comprou automóveis assim que pôde, enfrentando uma série de perigos e inconveniências ao longo das estrada que rodavam: de recusas de alimentação e hospedagem a prisões arbitrárias. Em resposta, Green escreveu seu guia de serviços e lugares relativamente acolhedores a afro-americanos e ainda abriu uma agência de viagens.

*2: Arkham é uma cidade fictícia do Massachusetts, lar da Universidade de Miskatonic, que é proeminente em muitas das obras de H.P. Lovecraft. No universo ficcional do autor, a instituição financia expedições, tanto em “Nas Montanhas da Loucura” (1936) como na The Shadow Out of Time (1936). Walter Gilman, de The Dreams in the Witch House (1933), frequenta aulas na universidade. Outras instituições notáveis em Arkham são a sociedade histórica de Arkham e o sanatório de Arkham. Diz-se em "Herbert West - Reanimador" que a cidade foi devastada por um surto de febre tifóide em 1905.

*3: Literatura “pulp” era composta de publicações baratas impressas em papel de qualidade inferior, “papel de polpa” (pulp), com histórias de gêneros considerados “menores”, como terror, fantasia, ficção científica, faroeste e de detetives. Eram muito populares e de baixo custo pela sua grande tiragem.

 


 

*4: Howard Phillips Lovecraft ( Providence Rhode Island, 20/08/1890 - 15/03/1937) - mais conhecido por H. P. Lovecraft, ele foi um escritor americano que revolucionou o gênero de terror, atribuindo-lhe elementos fantásticos típicos dos gêneros de fantasia e ficção científica. Lovecraft chamava seu princípio literário de "Cosmicismo" ou "Horror Cósmico”. Nele a vida é incompreensível ao ser humano e o universo é infinitamente hostil aos seus interesses. Suas obras expressam uma profunda indiferença às crenças e atividades humanas, assim como uma intensa atitude pessimista e cínica, muitas vezes desafiando os valores do Iluminismo, do Romantismo, do Cristianismo e do Humanismo. Os protagonistas de Lovecraft eram o oposto dos tradicionais por momentaneamente anteverem o horror da realidade e o abismo diante de si.

*5: As “Leis de Jim Crow” (Jim Crow laws): foram leis estaduais e municipais que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos, promulgadas entre o final do século XIX e início do século XX por legislaturas dominadas pelos Democratas após o período da Reconstrução, a (décadas de 1870 e 1880) e foram aplicadas até 1965. Na prática, as leis de Jim Crow exigiam instalações separadas para brancos e negros em todos os locais públicos, principalmente nos estados que faziam parte dos antigos Estados Confederados da América, estabelecendo a doutrina legal de "separados, mas iguais”. Além disso, a educação pública entre as etnias era separada na maior parte do sul do país após a Guerra de Secessão (1861-1865), estendidendo a segregação racial aos transportes públicos (ônibus e trens). As instalações para afro-americanos e nativos americanos eram inferiores em comparação com as reservadas para americanos brancos. O presidente Woodrow Wilson, um democrata do sul, iniciou a segregação das repartições públicas federais em 1913. As leis de Jim Crow foram revogadas pela Lei dos Direitos Civis de 1964 e pela Lei dos Direitos de Voto de 1965.

 


*6: James Arthur Baldwin (Nova York, E.U.A. 02/08/1924 – Saint-Paul de Vence, França 01/12/1987) foi um romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta e crítico social americano. Neto de um escravo, Baldwin nasceu em um hospital no Harlem, bairro negro de Nova York, para onde sua mãe havia acabado de se mudar após deixar o pai biológico do escritor por conta de seu vício em drogas. Ela casou-se anos depois com um pastor evangélico que daria ao autor seu sobrenome, oito irmãos e uma conturbada relação. Seus textos, como o Notes of a Native Son (1955), exploram complexidades palpáveis e ainda não ditas nos dias de hoje sobre a sexualidade e as distinções de classes nas sociedades ocidentais baseadas na etnia  (principalmente nos EUA na metade do século 20) e suas inevitáveis tensões. Baldwin transforma em ficção perguntas pessoais fundamentais e dilemas em meio a pressões sociais e psicológicas complexas, não só de negros, mas também de homens homossexuais e bissexuais, descrevendo os obstáculos internalizados nas buscas de tais indivíduos à aceitação. Quase trinta anos após Baldwin morrer devido a um câncer estomacal, em 1º de dezembro de 1987, sua voz voltou a ressoar no documentário indicado ao Oscar de Raoul Peck, Eu não sou seu negro, que usa como roteiro um manuscrito inacabado do escritor sobre a vida e os assassinatos de três companheiros na luta pelos direitos civis: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King.

 

-"Shoggothzinho bonzinho, vem com a mamãe..."






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