
Representatividade, Fetiche, Lacração
por Alexandre César
(Originalmente postado em 07/ 02/ 2020)
Arlequina e suas amigas mandam ver...
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Tendo surgido na animação, Arlequina logo foi incorporada ao universo dos quadrinhos, fazendo dupla com a Hera Venenosa
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Criada por Paul Dini e Bruce Timm para a série Batman Animated a Arlequina foi originariamente criada como uma ajudante do Coringa replicando as belas cúmplices da série televisiva dos anos 60 com Adam West. Seu jeito sapeca e visual de Pin-Up logo criou uma legião de fãs que fez a DC Comics a incorporá-la ao universo da editora, gerando entre várias histórias a premiada Louco Amor de 1994, ganhadora do Weisner Awards (o Oscar dos
quadrinhos) que definia a sua origem, mostrando a sua ambição desde os
tempos da Universidade, quando seduzia professores para tirar boas
notas(aqui, seria a típica moça que faz psiquiatria para poder ter um
receituário de remédios tarja preta) e a partir dessa formação moral
dúbia acabar “caindo na vybe” do Palhaço do Crime e surgindo aí o seu amor doentio e a relação abusiva dele para com ela, sendo que seu relacionamento com Pâmela Isley a Hera Venenosa servia
como uma ruptura desse ciclo de baixa auto-estima (nos quadrinhos elas
se casaram). Posteriormente a sua ascenção no audio visual se consolidou
no equivocado Esquadrão Suicida (2016) de David Ayer, graças à escalação da sua intérprete definitiva: Margot Robbie (Eu, Tonya) sendo a melhor coisa do filme e garantindo a atriz maior visibilidade e poder de fogo para novos voôs da personagem nas telas.
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"Esquadrão Suicida" (2016): Filme fraco mas que trouxe visibilidade à personagem para o grande público, que a abraçou
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Dirigido por Cathy Yan (Dead Pig) Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa (2020) se propõe a ser um conto distorcido narrado pela própria Arlequina,
mostrando todos os acontecimentos a partir do seu ponto de vista único,
sendo divertido e sem pudor, celebrando todas as formas do feminino em
uma jornada de autorrealização num filme desigual mas que tem os seus
méritos, apesar de suas contradições...
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Arlequina (Margot Robbie) entre outros momentos, relembra seus tempos de "rolergirl"
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Canário Negro (Jurnee Smollett-Bell) tem origem e visual reformulado, dando adeus à jaqueta, ao maiô e à meia-arrastão
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O roteiro de Christina Hodson (Bumblebee)
se propõe a mostrar que “Mulher forte” e “empoderada” (termo usado para
descrever personagens femininas que desafiam os padrões da sociedade
patriarcal) pode ser mais do que as visões idealizadas, masculinizadas
ou hipersexualizadas, que os quadrinhos, o cinema e a TV costumam
mostrar, que costumam ver a “força” embutida numa índole pura, curvas e
bíceps definidos combinados com um decote profundo com uma metralhadora.
Coisa que entra em contradição com a própria essência dos quadrinhos,
que flerta com o fetichismo desde as suas origens. Do início até após a
marca da metade, o roteiro tende a dar muitas voltas para estabelecer a
conexão de Arlequina com cada uma das Aves de Rapina, abusando de flashbacks e narrativas em off, de forma que quando finalmente, as anti-heroínas se unem para salvar a pivete Cassandra “Cass”Cain (Ella Jay Basco) temos a sensação de um primeiro ato desnecessariamente extenso. Se a edição de Jay Cassidy (O Lado Bom da Vida) e Evan Schiff (John Wick
Capítulos 2 e 3) tivesse reduzido a metragem do filme aqui e ali, em
uns 10 ou 13 minutos, teriam feito maravilhas no filme, alavancando mais
ainda o seu pique narrativo...
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A Caçadora (Mary Elizabeth Winstead) pedia um pouco mais de tempo de tela para ser melhor desenvolvida
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Deu Match: Roman Sionis, o Máscara Negra (Ewan McGregor) e seu fiel capanga Victor Zsasz (Chris Messina)
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Robbie
(que também é uma das produtoras) domina a narrativa, ocupando o maior
tempo de tela com os coloridos e extravagantes figurinos de Erin Benach (Nasce Uma Estrela) dando o espaço apenas necessários para que conheçamos o restante da equipe: Dinah Lance, a Canário Negro (Jurnee Smollett-Bell de True Blood)
cujo visual repaginado e sua origem modernizada, ainda mantém o tom
rebelde, desafiador e inconformista da personagem, além de ter uma
fisicalidade impecável nas sequências de ação; a detetive Renee Montoya
(Rosie Perez de A Escolha Perfeita 2) é a típica policial de seriados dos anos 70, que como a própria Arlequina diz ”- só resolve as coisas depois que recebe uma suspensão!” e aqui curiosamente não há qualquer insinuação a sua opção sexual (nos quadrinhos e no seriado Gothan sempre foi lésbica) e temos Helena Bertimelli, a Caçadora (Mary Elizabeth Winstead de Rua Cloverfield 10) que aparece um pouco menos do que deveria, sendo um bom alívio cômico (só se referem a ela como “a mulher que usa uma besta”), que satiriza o passado “sombrio e realista” do Universo Estendido da DC, com cenas que constroem sua origem e sua personalidade de forma concisa.
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A policial Renee Montoya (Rosie Perez), diferente das HQs, aqui é sexualmente neutra
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Não faltam momentos lisérgicos, em que a personagem se entope de bebida, sanduíche de ovo (chega a ser um fetiche) e outras "químicas"
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E temos os vilões: Roman Sionis, o Máscara Negra (Ewan McGregor de Doutor Sono) o vilão mais narcisista de Gotham, tipicamente cartunesco, volátil e ameaçador, assumidamente caricato a nível narrativo desse realismo “fantabuloso”.
Meritocrata de família rica, ele é a síntese do homem em busca de poder
cuja relação com o seu zeloso braço direito, Victor Zsasz (Chris
Messina de Argo), é mais a de amantes do que de patrão-e-capanga, refletindo um masoquismo que se submete sadicamente a qualquer um que tenha mais poder. Sinistro...
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A pivete Cassandra "Cass" Cain ( Ella Jay Basco) encontra um cobiçado diamante e vira o "MacGuffin" que movimenta a trama
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A narrativa usa de números musicais, animação e outros recursos para contar a história do ponto de vista alucinado de Harley Quinzel
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Sionis e Zsasz têm como alvo a jovem Cass, que num de seus roubos se torna o MacGuffin da história, ligando os caminhos de Arlequina, Caçadora, Canário Negro e
Renee Montoya unindo o improvável quarteto não tem escolha a não ser se
unir para derrubar Roman enquanto a cidade fica de cabeça para baixo
nesta procura insana (mas é Gothan, então tá limpo...).
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Bruce, a hiena dá as caras, ou o focinho....
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Cassandra e Arlequina assumem uma relação de aprendiz e mentora, embora as duas sejam igualmente destrambelhadas
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Visualmente o filme é digno de nota, sendo a fotografia de Matthew Libatique (Venon) uma explosão de cores e texturas
bregas e carnavalescas, assumindo o teor cartunesco da trama, sendo as
decisões visuais do designer de produção K.K. Barrett (Ela)
arrojadas, dando personalidade às heroínas e ainda fazendo belas
referências às Hqs, além das boa sequências de ação, injetando harmonia
entre câmera e dublês nas cenas, onde a direção de Yan reflete não só o
estilo clean popularizado pela franquia John Wick, como também opta nestes momentos por escolhas que ecoam a breguice no uso da iluminação em filmes de Batman de Joel Schumacher – com bons resultados! A música de Daniel Pemberton (Homem-Aranha: No Aranhaverso) recheada de hits dançantes clássicos e atuais farão a alegria das meninas festeiras.
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No terço final as meninas se tornam uma força coesa, pronta para enfrentar os marginais
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A direção de arte, figurinos e fotografia fazem a festa num caleidoscópio de cores, texturas e uma breguice bem estudada
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No final, embora seja um pouco formulaico e atrapalhado no desenvolvimento de seu enredo, talvez fruto de uma necessidade de “lacrar” à toda hora, Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa merece crédito junto às outras produções recentes da DC por escolher uma forma diferenciada o suficiente para trazer esta história e estas personagens ao cinema. Para a DC, não é tanto uma questão do quê, e sim como. Gostemos ou não da proposta testada pela diretora, Arlequina descobriu que pode servir a si mesma, e não à um mestre, mesmo que se entupa de sanduíches de ovo e burritos ocasionalmente nos momentos de “fragilidade mulherzinha”,
mas a emancipação apontada por Cathy Yan para o selo de quadrinhos no
cinema agora tem um rumo definido quanto às próximas adaptações de suas
HQs.
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O próximo passo deverá ser "Sereias de Gothan" com Arlequina, Hera Venenosa e Mulher-Gato
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"- E aí meninas? Vamos às compras???" |
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