Saindo entre as frestas da casinha...
Saindo entre as frestas da casinha...
por Alexandre César
(Originalmente postado em 30/ 08/ 2018)
Um intimista drama lésbico de terceira idade
Um universo majoritariamente feminino de uma classe média-alta decadente e de idade avançada, alternando-se entre noites de karaokê com as amigas, jogos de cartas entre senhoras ricas, prisões femininas, táxis femininos, hospitais com alas para mulheres. Poucos homens, e quando aparecem, fazem figuração, não influindo na trama. O centro deste universo se foca em Chela (Ana Brun) uma lésbica de terceira idade, que vive discretamente com a companheira Chiquita (Margarita Irún) há trinta anos. Elas são tão ajustadas uma a outra que sua relação não gera questionamento para qualquer um, menos para as duas, como todo casal estabilizado e acomodado.
Oriundas de famílias outrora bem abonadas, por causa da velhice e da crise econômica (que não é explicada) para arcar com os custos de remédios, alimentação e seu padrão de vida, as duas passam a vender móveis, porcelanas, etc... herdados por ambas ao longo dos anos – embora Chela reclame, amarguradamente, que a maior parte dos objetos pertencia a ela - para pagar as dívidas acumuladas. Condicionada a uma vida de passividade, sua vida se resume a pintar quadros (sem concluí-los...) e a esperar que a empregada a acorde levando o café da manhã, com seus remédios e que a sua companheira receba os interessados em comprar os bens que lhes permitirão diminuir um pouco o sufoco econômico. Ela só observa a “invasão” em seu espaço por força da necessidade, com resignação.
Dirigido por Marcelo Martinessi, com roteiro de sua autoria, Dirigido por Marcelo Martinessi, com roteiro de sua autoria, As Herdeiras (2018) segue a linha de um cinema latino-americano que acredita nos dramas silenciosos das mulheres de meia-idade, como vistos em A Mulher Sem Cabeça (2008) da argentina Lucrecia Martel, Gloria (2014) do chileno Sebastián Lelio, ou A Noiva do Deserto (2018) das argentinas Cecilia Atán e Valeria Pivato. E Chela é bem isto com a sua boca sempre entreaberta suspirando pelo passado e olhos arregalados de quem presta atenção a tudo, mas não necessariamente compreende o que se passa ao redor.
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Chela, pela primeira vez em sua vida, se vê obrigada à tomar o controle de sua vida |
Ela vive condicionada a sempre ceder, obedecer, com um ar de estar sempre cansada, escondida do mundo no casarão onde vive desde o nascimento, com grandes janelas e portas, mas é um ambiente escuro, triste, envelhecido, cuja fotografia de Luis Armando Arteaga se foca nas frestas das portas, nos restos de prataria enfileirada sobre a mesa, esperando por uma compradora, nas manchas da parede (cujo papel está caindo) mostrando onde havia quadros, agora vendidos. Uma casa cuja atmosfera claustrofóbica, cerca a personagem na sua recusa de sair de casa, em enquadramentos constantemente fechados ou parcialmente bloqueados por cortinas e portas, refletindo um padrão de vida que já passou. Um mausoléu em vida.
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Chela, enquanto espera suas amigas ricas jogando, reflete sobre a sua decadência... |
Chiquita é presa por fraude fiscal – em função das dívidas (para pressioná-la, o banco alegou que se tratava de fraude) indo para a prisão com uma atitude de que isto não é o fim, por ser uma sobrevivente nata – deixando Chela ainda mais sozinha, e deixando que as suas amigas conversem com advogados e tomem as providências, e demais procedimentos. “Meu pai me chamava de poupée. Sigifica ‘boneca’”, conta Chela para uma amiga em determinada altura, com um olhar triste, já que este apelido não é mais dirigido a ela, agora no lado menos promissor da terceira idade, mas ainda uma “boneca”: bela, sorridente, passiva, obediente, inerte.
Contrastando com a protagonista, temos um exército de coadjuvantes atiradas, e agressivas, como a rica Pituca (María Martins) emperequetada e barulhenta (ponto para os figurinos de Tania Simbrón que caracteriza bem um universo de uma decadente elite), que convence Chela a lhe levar de carro para encontrar-se e jogar com suas amigas ricas e, pagando-a pelo serviço. Temos Carmela (Alicia Guerra) a empregada contratada para fazer companhia a Chela e que pouco a pouco forja com esta uma relação de cumplicidade inesperada, além de fazer uma ótima massagem nos pés. E completando, temos a sedutora Angy (Ana Ivanova) que prefere lhe chamar de ‘Poupée’ sendo a primeira realmente a falar com ela, e se dispõe a ouvi-la, reparando nas suas unhas feitas, que lhe dá atenção e demonstra interesse, sendo bem mais nova – com cerca de 40 anos de idade -, a encanta imediatamente, por ser uma força da natureza, impossível de ignorar-se.
A música de Fernando Henna embala de forma sutil o início inseguro e titubeante de Chela (assumindo o papel da sua subjetividade) tomando coragem e aprendendo a dirigir sozinha e, pegando jeito para a coisa. Logo o serviço se torna uma fonte de renda que começa a fazê-la sair de sua inércia (embora nem carteira de habilitação própria tenha). Essas transformações sutis vão numa progressão minúscula, da total passividade aos mínimos gestos e sorrisos, mostrando a ótima performance da estreante Ana Brun, que constrói a trajetória emocional e psicológica de sua personagem com precisão, tornando-se gradualmente mais alegre, leve e independente, aprendendo a lidar com o orgulho ferido, e de ver-se sozinha e desamparada nessa fase da vida, já passando dos 60 anos. Isto é feito sem cair em panfletarismos e discursos fáceis sobre homossexualidade, desigualdade social, abandono da velhice e libertação feminina.
Estas sutilezas fizeram de As Herdeiras, o longa paraguaio de maior sucesso dos últimos anos – recebeu nada menos do que 3 troféus no Festival de Berlim, entre eles o Urso de Prata de Melhor Atriz, para Ana Brun, e o de Melhor Filme pelo Júri da Crítica Internacional. Um filme que aborda um universo feminino com um olhar feminino, com sutilezas relatando a busca de um senso de pertencimento no mundo sem precisar para isso levantar bandeiras.
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Angy (Ana Ivanova). O furacão sensual que balança a discreta e medrosa Chela. |
O final aberto, quando Chiquita retorna do presídio (não sem ter balançado corações por lá...) disposta a retomar a sua vida, mas agora trazendo angústia a Chela, que não quer voltar a ter a vida enclausurada a que sempre se sujeitara no passado por descobrir ter uma força que desconhecia, e aprendendo a andar com as próprias pernas, o que abre a questionamentos universais: Trocar o certo de uma vida previsível estável e estagnada ou pelo duvidoso da aventura incerta da vida? Que cada um faça a sua escolha, independente da sua orientação sexual, idade, condição social ou financeira que irá fazer diferença. Chela reflete bem essas questões, e tentará do seu jeito responde-las.
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Angy, com sua vivacidade, leva Chela à querer ter mais controle sobre a sua própria vida... |
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