terça-feira, 31 de agosto de 2021

O "Fantasma" exumado - Crítica - Filmes: A Morte de Stalin (2018)

 


 
 
Irônico, incômodo, polêmico... como a vida

 

por Alexandre César

(Originalmente postado em 08/ 06/ 2018)


 Criador de "Veep" faz comédia em período controverso
 

O "staff" do líder, e a pergunta: "E agora???"

Fazer um relato sobre um período histórico denso e carregado - usando como tom condutor da narrativa a comédia -, é, pelo menos, arriscado. Se estivermos falando de episódios dramáticos e sangrentos, possivelmente soará desrespeitoso àqueles que de alguma forma estejam emocionalmente ligados aos fatos relatados. Tal reação pode ser ainda mais complicada se as paixões políticas e interesses ideológicos se misturarem neste debate.
 
 
Josef Stalin (Adrian McLoughlin): O rei está morto! Longa vida..."

Dirigido por Armando Iannucci, de Dirigido por Armando Iannucci, de Conversa Truncada (2009) e criador da série (2009) e criador da série Veep (2012-2017), A Morte de Stalin (2017) parte da história em quadrinhos norte-americana homônima (2010-12), de Fabien Nury e Thierry Robin, dando uma visão do que acontece nos bastidores da União Soviética imediatamente após a morte de Josef Stalin (Adrian McLoughlin), em 5 de março de 1953. Isso ocorre após pedir uma gravação de um recital de música ao vivo (e gerar um caos na Rádio de Moscou para recriá-la, pois não havia sido gravada e negar um pedido do líder soviético era fatal) e ter um derrame e tombar após ler um bilhete malcriado da pianista Maria Yudina (Olga Kurylenko de Hitman). No chão ele permaneceu até sua condição ser descoberta horas depois, pois todos os guardas e empregados temiam bater à porta chamando-o e perguntar se estava tudo bem...
 
Nikita Krushchev (Steve Buscemi),Maria Yudina (Olga Kurylenko) e Lavrentiy Beria (Simon Russell Beale): As intrigas e "puxadas de tapete"

Mas quem, perguntarão os mais jovens, é Stalin? Peçamos ajuda a wikipedia:
 
 
 
 
Josef Vissariónovitch Stalin, (em russo: Иосиф Виссарионович Сталин) foi secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética e do Comitê Central de 1922 até a sua morte em 1953, sendo assim o líder supremo... 
... e o equivalente ao Bicho-Papão para toda a população, ou pelo menos para aqueles que ousavam ter um vago pensamento dissonante do estabelecido pelo Estado (personificado em sua pessoa).
 
O funeral: Pompa e circunstância

Após finalmente descobrirem o estado agonizante do líder, o seu staff se reúne para votar que providências tomar. Chamar um médico? Anos atrás Stalin havia fuzilado ou aprisionado a maioria dos médicos acusando-os de querer envenená-lo. E, assim até se tomar uma decisão, o tempo corre e finalmente o líder morre, iniciando a disputa interna pelo cargo vago.
 
 
Kaganovich (Dermot Crowley), Anastas Mikoyan (Paul Whitehouse) Krushchev (Buscemi), Malenkov (Jeffrey Tambor) e Bulganin (Paul Chahidi): Humor ácido sobre líderes despreparados

O temido Lavrentiy Beria (Simon Russell Beale) chefe da NKVD (sucedida pela KGB), toma a largada, mas Nikita Krushchev (Steve Buscemi) sabe jogar e vai ganhando terreno. A princípio o fraco Geórgiy Malenkov (Jeffrey Tambor) assume o posto, mas não durará muito. Vyacheslav Molotov (Michael Palin), Nicolai Bulganin (Paul Chahidi), Anastas Mikoyan (Paul Whitehouse) e Lazar Kaganovich (Dermot Crowley) entram nesta disputa, com um querendo apunhalar o outro pelas costas, tendo em vista o que podem ganhar no processo: de dar à libertação de presos políticos do antigo líder para “ficar bem na foto”, entre outras coisas. Como politicamente é um momento delicado, ninguém quer arriscar a vida ou perder os seus privilégios. 
 
Vasily Stalin (Rupert Friend) e Svetlana Stalina (Andrea Riseborough) : os infelizes filhos do ditador

O ótimo elenco está totalmente à vontade, com seus personagens utilizando nuances, olhares, formas de andar, tiques, movimentos das mãos e outras sutilezas para revelar líderes venais, inadequados e despreparados para o que tem pela frente - vindo daí muito da comicidade sutil do filme, cujas piadas de gosto agridoce nos leva a questionar se realmente deveríamos rir daquilo. As ações deles também revelam um governo corrupto, cujo malabarismo para alcançar seus nefastos objetivos nós brasileiros conhecemos bem de nossa história política passada, presente e, possivelmente, futura.
 
 
Marechal Georgy Zhukov (Jason Isaacs): "Soviet Action Hero"

 
O roteiro de Iannucci, David Schneider e Ian Martin tem uma narrativa ágil, mesmo usando uma boa dose de realismo histórico - apesar de comprimir demais o tempo de eventos que originalmente ocorreram entre março (quando Stalin morreu) e dezembro (quando Beria foi executado) de 1953. O roteiro mostra com sarcasmo toda a loucura, depravação e desumanidade do totalitarismo onde o povo, este personagem tão mencionado e tão ausente das decisões, costuma fazer o papel de bucha de canhão entre forças antagônicas.
 
Tudo era decidido por votação "democrática"...

Compõem o elenco Andrea Riseborough e Rupert Friend como Svetlana Stalina e Vasily Stalin, filhos do ditador. Ela se definia "a maior prisioneira política do Stalinismo". Ele, morreu na casa dos 40, vítima do alcoolismo. E ainda temos Jason Isaacs de Star Trek: Discovery como o Marechal do Exército Vermelho e Herói de Guerra Georgy Zhukov. Quando entra em cena carrega o clímax do filme com ele. É antológica a cena em que ele surge no funeral e abre o casacão revelando o seu uniforme de gala azul com uma constelação de estrelas, medalhas e penduricalhos que levariam Mutley (“Medalha! Medalha!”) - do nosso querido desenho Esquadrilha Abutre, da Hanna-Barbera - ao orgasmo.
 
 
"Nunca ache que a KGB tem mais moral do que o Exército Vermelho..."

Ao final fica claro o ritmo cíclico das engrenagens do poder: Krushchev sucedeu Stalin, se revelando reformista. Leonid Brejnev afastou Krushchev por “excessos reformistas” e brecou avanços. Ele ficou no cargo até morrer de velhice, como os seus sucessores Iúri Andropov (ex-chefe da KGB) e Konstantin Chernenko. A seguir assumiu o reformista Mikhail Gorbachev, que tentou salvar o sistema, mas aí era tarde. E agora, Vladimir Putin procura retomar o papel de superpotência que a Rússia havia perdido nestes quase trinta anos após o final do regime comunista da União Soviética.
 
 
O fim de Beria: seu nome foi retirado da Enciclopédia Soviética e substituído por um verbete referente ao Estreito de Bering...

 
É curioso o fato desta Tragicomédia de poder chegar aos cinemas em 2018, quando os governos liberais ao redor do mundo exumam o fantasma do “perigo vermelho comunista” - apesar de nenhum levante comunista se insinuar no horizonte (será que ainda esperam o ataque dos médicos cubanos?) -, usando este fantasma para legitimar medidas inescrupulosas. Muito disto, é claro, deriva dos mistérios, mitos e ignorância de muitos em relação aos fatos que rondam a agora quase lendária União Soviética, o que torna mais surpreendente como A Morte de Stálin é, ao mesmo tempo, hilário de forma sutil e satisfatoriamente fiel aos fatos retratados.
Hoje, na Rússia e em vários países do leste a figura de Stalin foi parcialmente reabilitada por sua vitória contra o nazismo na Segunda Guerra Mundial e por ter, mesmo que de forma autoritária, trazido industrialização e progresso a regiões extremamente atrasadas, que dificilmente progrediriam em situação normal. Seria algo como falar a um romeno que Vlad Tepes Dracul, "o impalador" foi um tirano sanguinário e cruel. Ele provavelmente diria que sim, mas que ele foi também um líder que resistiu ao avanço do Império Otomano no leste europeu, sendo um símbolo de identidade nacional. Em vista disso, como é que ficamos Brasil???
 
 

 

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