Culpados até segunda ordem...
por Alexandre César
(Originalmente postado em 21/ 04/ 2020)
Anime cyberpunk mescla bem ação, violência e filosofia
No século XXII, mais especificamente na cidade de Tokyo, o princípio de que "todos são inocentes até que se prove o contrário"não se aplica, sendo os cidadãos continuamente avaliados por um sistema intitulado de "Sybil" que analisa o estado mental das pessoas e as categoriza como potenciais criminosos ou não, e se por motivos pessoais, como stress, o nível de um indivíduo se altera, fazendo o seu estado passar de certa medição (100), ele passa a ser considerado “turvo”, sendo
dada uma possibilidade de "cura" (terapia), de recuperação mental para
indivíduos nesta situação. Caso essa medição chegue a 300 ou mais essas
pessoas são classificadas como “irrecuperáveis”, sendo a sua sentença a prisão ou a morte, mesmo que não tenham cometido crime algum.
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Contrastes: O veterano inspetor Nobuchika Ginoza e a novata Akane Tsunemori, que tirou a maior pontuação e entrou para a polícia por acreditar "poder fazer a diferença"... |
Produzido pela Production I.G. Japonesa, Psycho-Pass é um anime que estreou originalmente no dia 11 de outubro de 2012 no bloco Noitaminada Fuji TV sendo posteriormente adaptada para mangá, e começando a ser publicado em 2 de março na revista Jump Square. A série animada se compõe de 22 episódios de 30 mins. e atualmente veiculado pela Netflix.
Nesta metrópole cyberpunk (ambientação recorrente aos animes) a polícia, em auxílio para as suas investigações, usa um grupo de prisioneiros "especiais", chamados Executores* (Enforcers),
para ajudá-los a capturar ou matar esses indivíduos "não mais
necessários". Para tal, utilizam uma arma especial, chamado de “Dominators”, ou "Os olhos da Sibila".
Neste contexto temos como personagem principal Akane Tsunemori, uma
jovem policial que acaba de ser transferida para essa divisão, tendo
entrado para a polícia por suas excelentes notas (ninguém obteve uma
pontuação tão alta quanto a dela). Por isso, Akane acredita ser capaz de
fazer algo que ninguém mais pode, pois ela não acredita que existam
pessoas irrecuperáveis, além de ter uma alta tolerância ao álcool. É a
sua jornada de chocantes surpresas, traumas, decepções e amadurecimento
que carrega a narrativa desta 1ªtemporada.
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O jovem Shusei Kagari quer apenas pagar a sua dívida e sair... |
Como
o protagonista masculino da série, temos Shinya Kogami era um Inspetor,
mas, após um incidente que resultou na morte de um de seus
subordinados, teve seu coeficiente criminal alterado para níveis muito
altos, se tornando um dos Executores.
O resto da equipe são Nobuchika Ginoza outro inspetor, colega de Kogami que testemunhou a sua decadência, sendo por isso e por um trauma familiar, um indivíduo tenso e rígido com o comportamento profissional; Tomomi Masaoka, um ex-investigador, de passado obscuro e com uma braço esquerdo protético, que enxerga o potencial de Akame, e lhe dá suporte, ajudando a todos da equipe como uma figura quase-paterna; Yayoi Kunizuka, uma ex-cantora de punk rock e ex-membro de uma organização anarquista, que usa o seu talento de hacker para poder futuramente se reintegrar à sociedade, Shusei Kagari, joven outsider (o piadista do grupo) que também quer cumprir a sua pena e seguir adiante, não ligando muito para os cidadãos comuns a quem deveria proteger, Shion Karanomori, uma sarcástica analista na Divisão Geral de Análise do Departamento de Segurança Pública (e além de tabagista,uma criminosa latente também) sempre “vestida para matar”. Ela fornece apoio aos Enforcers e inspetores em sua investigação, analisando os dados e as provas enviadas por eles. Ela e Yayoi são amantes.
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Yayoi Kunizuka e Shion Karanomori, as personagens-fetiche da série... |
Temos ainda Joshu Kasei a chefe do Bureau, uma mulher idosa que se interessa pela imunidade do criminoso Shogo Makishima aos Dominators (ver abaixo) e ordena a Nobuchika Ginoza não matar o criminoso. Na realidade ela esconde o grande segredo por trás do Sistema Sybil, recorrendo a expedientes questionáveis contra quem tenta expor a verdade por trás de tudo.
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Ao Mestre com Carinho: O terrível Makshyma Shogo e sua pupila psicopata Rikako Oryo são o Mal encarnado... |
Até o episódio 8 o tom da série é investigativo e procedural, com a equipe resolvendo os casos, e com Akane familiarizando-se com a equipe, crescendo o seu valor ao longo deste trajeto, mas, quando emergem as maquinações do já mencionado Makshyma Shogo, vilão refinado e ambíguo, que é capaz de burlar o sistema “Sybil”, que a temporada realmente engata pois Shogo é um perigo real e imediato para o departamento e para toda a coletividade, pois ele vê a vida como um jogo, tanto fazendo para ele matar uma ou centenas de pessoas para provar um ponto, ou apenas quebrar o tédio em armações brilhantes, dignas do Doutor James Moriarty (o adversário figadal de Sherlock Holmes). Shogo poderia ser considerado um “humanista do lado sombrio” obcecado com a crueldade e todos os piores aspectos da natureza humana.
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O inspetor Nobuchika Ginoza e o executorTomomi Masaoka têm atritos oriundos de um passado em comum... |
Um "evangelista" nato,Shogo
é possuidor de carisma incomum e com um verdadeiro dom para a
narrativa. É mostrado que Makishima pode ser o cérebro por trás dos
muitos casos que o Bureau de Segurança Pública está investigando (sendo o responsável pela morte do ex-parceiro de Kogami, e seu rebaixamento de Inspetor para Executor ao causar a sua queda no Psyco-Pass).
Apesar de sua intenção assassina, seus níveis do Coeficiente Criminal
nunca alcançaram níveis perigosos, tornando-o seguro para as Dominators. Ele próprio afirma que isto é porque a sua própria mente e seu corpo não considerá-lo estar “errado” ao matar pessoas e cometer crimes, pois considera que para ele, isto é perfeitamente "normal", resultando na Psyco-Pass não detectar nada anormal ou ilegal no seu comportamento que o denuncie ao Sistema Sibila,
chamando a atenção para ele (ele se veste de branco,em oposição a
Kogami, que na maioria das vezes está de preto numa interessante
inversão de papéis) e neste embate de antagonistas, Akame paga o seu
preço de amadurecer, sendo testados os seus limites sem piedade, embora
mudando o seu jeito de ser, ela nunca abdica de seus valores...
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Os "Capacetes" isolam as pessoas do sistema, permitindo-lhes praticar toda a sorte de violência... |
A
galeria de vilões da temporada ainda incluem Choe Gu-sung (o braço
direito do Shogo Makishima) um imigrante coreano que se mudou para o
Japão com sua família quando era criança, desprezando a sociedade criada
pelo Sistema Sybil,
desejando removê-lo. inicialmente um mensageiro, Gu-sung tem um papel
maior na série quando ele registra o assassinato de uma mulher nas mãos
de um homem imune à Sybil usando um capacete avançado e usando este
vídeo para causar vários distúrbios na cidade; a estudante na Oso Academy (uma escola pra moças) Rikako Oryo, que apesar de sua personalidade gentil, é uma serial killer
que usa os cadáveres de suas vítimas para criar monumentos de arte para
seu pai doente (todos os seus crimes são orquestrados por Shogo
Makishima que aparece em sua escola como um de seus professores) e
Toyohisa Sengūji, um sociopata, obcecado com a caça esportiva, que
conseguiu ampliar sua vida artificialmente, tornando-se um ciborgue,
primeiro aparecendo para matar uma subalterna descartada por Makishima, posteriormente trabalhando seus ossos em cachimbos como um dos seus muitos troféus de caça.
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A holografia e a realidade virtual estão no cotidiano das pessoas no figurino e no ambiente residencial e profissional... |
Enquanto estava criando a animação, o diretor chefe Katsuyuki Motohiro queria uma série que contrariasse as tendências dos animes atuais,
precisando para isso de um roteirista carismático, o que o fez convidar
Gen Urobuchi para trabalhar junto com ele em 2011, pois a equipe gostou
de seu trabalho em Puella Magi Madoka Magica, que eles consideram melhor que Neon Genesis Evangelion. Após ler alguns livros e roteiros escritos por Urobuchi, ele ficou fascinado e convencido de que ele faria um bom trabalho. O design dos personagens foi feito pelo artista Akira Amano. Na criação da série, além dos temas psicológicos baseados nos do anime Lupin III
que ele assistiu durante a sua infância. Motohiro permitiu que a equipe
usasse os elementos originais desejados pelos criadores, mesmo que isso
pudesse afastar o público feminino e infantil, pois também sabia que a
série era violenta demais, comentando não queria seu filho assistisse o anime devido
a sua "brutalidade psicológica", atiude sábia pois quando é para
pressionar, a série não hesita em pisar no acelerador, não poupando os
seus personagens.
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As duas faces de uma moeda: Shogo Makishima e ,Shinya Kogami em seu duelo de vida e morte... |
Mesclando grandes doses de ação e violência gráfica com referências à Platão, Rousseau, Shakespeare, Phillip K.Dick (cuja obra “Do androids dream with an electrical sheep?”serviu de inspiração para o filme Blade Runner de Ridley Scott de 1982) entre outros nas falas rebuscadas de Shogo, que se vê como um herói revolucionário, já que consegue mascarar o seu real estado do Sybil como um camaleão que se mimetiza com o ambiente, e com isso ele pretende desmascarar o status quo, que no fundo apenas engaiola os indivíduos em condicionamentos repressores. Assim, temos embates memoráveis entre Shogo e Kogami até o seu desenlace final.
Um fator de destaque da animação é a tecnologia virtual incorporada ao uso da vida cotidiana, permitindo aos personagens mudar o aspecto visual da decoração da sua casa e até das suas roupas com um “click” de laptop, além de itens de camuflagem como os '"Konshans" que permitem aos policiais andarem mimetizados na multidão, ou até se “mascarar” pessoalmente do sistema usando capacetes que Shogo prepara e distribui durante um levante, para estimular às pessoas a praticarem crimes violentos, disseminando o caos.
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O clímax se dá na área rural,numa central de processamento, onde a agricultura é automatizada e seus espaços amplos fogem do estereótipo dos ambientes urbano restritos... |
No cômputo final Psyco-Pass é
um ótimo anime de ação e aventura policial que vale a pena ser visto, e
leva a pensar neste tempos de liberdade vigiada a que vivemos quando
cada vez mais motivados pelo medo, e em nome da segurança abdicamos
gradativamente de valores individuais que definem a nossa humanidade
básica.
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Os suspeitos de sempre... |
Notas:
*: Deve-se chamar a atenção da Netflix para o fato de que nas suas legendas, trocaram o termo “Enforcer” por “Miliciano” o que é problemático, uma vez que glamouriza o termo, dando-lhe uma dimensão “heróica” e sabemos todos muito bem que milicianos são criminosos,
mafiosos da pior espécie que aqui no Brasil dominam comunidades
inteiras como senhores feudais. Outra falha grave que temos observado é
que em outros animes sempre que aparece algum monge, a legenda traduz
como “pastor”o
que dá uma conotação neopentecostal inexistente, pois “todo monge é no
fundo um pastor, mas nem todo pastor (a grande maioria) é monge. Já
tenho observado essa “guerra de narrativas” há algum tempo, desde que o Brasil começou a comprar o discurso da extrema-direita e seus associados.
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