Lágrimas no Fundo do Mar...
por Alexandre César
(Originalmente postado em 10/ 01/ 2020)
Bom e morno drama de uma tragédia anunciada
Com a História não há spoiler. Logo, o relato do acidente do submarino nuclear russo K-141 Kursk, um submarino da classe Oscar II, carregando mísseis balísticos, que afundou no Mar de Barents em agosto de 2000, e que não deixou sobreviventes,
não poderia dar um drama de sobrevivência hollywoodiano. À medida que
os 23 marinheiros remanescentes do acidente inicial lutam pela
sobrevivência dentro da embarcação, em terra, as suas famílias
desesperadas lutam com obstáculos burocráticos e as probabilidades
assustadoras quanto ao destino de seus entes queridos, num quadro cada
vez mais negro, constatamos que jamais veremos Michael Bay ou seus
colegas de blockbusters encararem empreitada deste tipo.
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União: O paizão Mikhail Averin (Matthias Schoenaerts) e o filho Misha (Artemiy Spiridonov)
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Dirigido pelo dinamarqês Thomas Vinterberg (A Caça de 2012 e Longe Deste Insensato Mundo de 2015) Kursk - A Última Missão (2018) é uma produção franco- belga, filmada na Romênia, Bélgica Noruega e França que tendo entre outros nomes Luc Besson (Anna - O Perigo Tem Nome)
como um dos produtores executivos, e lida com um relato que já sabemos
de antemão qual será o final, sendo o desafio real, dar um enfoque
especial a esta narrativa. Se não é o filme de ação esperado, paciência,
pois a vida tem um ritmo e caminhar próprio diferente das nossas
aspirações.
O roteiro de Robert Rodat (O Resgate do Soldado Ryan) e Robert Moore, baseado no seu livro ”A Time to Die” situa
historicamente a trama naquele período em que, extinta a União
Soviética, houve aquele limbo em que a recém-fundada Federação
Russa, liderada por um iniciante Vladmir Putin estava econômica e
militarmente estagnada, tendo que lidar com boa parte de seu antigo
arsenal estar se deteriorando por falta de condições materiais e, sendo
pressionada pelo ocidente, como em certa altura diz amargo, o Alm.
Vyacheslav Grudzinsky (Peter Simonischek de O Intérprete) : “- Há 20 anos tínhamos três vezes mais navios neste exercício... Agora, a maior parte da frota está parada enferrujando...” sabendo
que os marinheiros (orgulhosos de sua tradição) tinham que lidar com
baixos (e atrasados) salários, além de falta de equipamento e peças de
reposição, que os forçavam naquela época à canibalização de peças de uma
embarcação para outras.
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Mikhail Tanya são os padrinhos do casamento de Pavel Sonin (Mathias Schweghofer) e de Daria (Katrine Greis-Rosenthal) numa cerimônia aconchegante
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O
mais trágico exemplo deste quadro é que o melhor submarino de resgate
havia sido vendido, convertido para milionários verem no fundo do mar os
destroços do naufrágio do Titanic,
e restando à Frota do Norte, um modelo obsoleto, cujo anel de atracação
não conseguia fazer a vedação necessária para possibilitar o resgate,
com consequências funestas...
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O Alm.Vyacheslav Grudzinsky (Peter Simonischek à direita de costas) sabe que a frota não é mais a mesma...
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Grudzinsky pressente que nestas condições, a Frota do Norte está à beira de um desastre
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Vinterberg
faz a clara escolha de focar-se mais no lado emocional e humano da
tragédia, do que do lado político, resultando num forte drama que dá
mais importância às suas vítimas (e esposas) do que do submarino
propriamente dito, que aqui não chega a ser um personagem, como por
exemplo em outros filmes de tragédias, como o transatlântico Titanic ou o dirigível Hindenburg.
A despersonalização do submarino serve para se evidenciar a situação de
indivíduos presos numa situação em que o cálculo político (a demora do
governo russo em admitir precisar de ajuda externa, pela humilhação da
situação que vivia, além do temor de no resgate, ter segredos
estratégicos revelados) se sobrepõe às vidas envolvidas.
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Pavel se preocupa com um torpedo que estava se superaquecendo
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Assim acompanhamos o capitão-tenente Mikhail Averin (Matthias Schoenaerts de A Garota Dinamarquesa, Army of the Dead: Invasão de Las Vegas) e sua esposa Tanya (Léa Seydoux de Azul é a Cor Mais Quente)
grávida do segundo filho e seu rebento Misha (o ótimo Artemiy
Spiridonov). Mikhail, como os seus amigos mais chegados são
submarinistas embarcados no Kursk,
que irá sair num exercício da Frota Russa, sendo que no início
acompanhamos os preparativos do casamento do oficial Pavel Sonin
(Matthias Schweghofer de Der geilste Tag) com Daria (Katrine Greis-Rosenthal de Um Homem de Sorte) onde os colegas, entre eles o divertido Oleg Lebedev (Magnus Millang de A Comunidade)
fazem um rateio, vendendo os seus relógios de pulso (Um relógio de
submarinista é um ítem de grande valor) para conseguir as bebidas para a
festa, em virtude dos salários atrasados. Nesta cena a musica de
Alexandre Desplat (Ilha dos Cachorros)
usa acordes de balalaika, situando musical e sentimentalmente aqueles
homens casados com suas famílias e com o mar, o misterioso mar...
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A profundidade onde o Kursk estava nem era tão grande assim, mas o péssimo estado do equipamento de resgate inviabilizava tudo
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Logo
que acontece o acidente quando um torpedo defeituoso explode, detonando
os outros e destruindo a proa do submarino, matando Pavel entre
outros, levando Anton Markov (August Diehl de Bastardos Inglórios)
a lacrar o reator por dentro, sacrificando-se, e ficando os 23
sobreviventes numa espera excruciante, cabendo a Mikhail e a Oleg
manter o moral, controlando o pânico de Leo (Joel Basman de Terra de Minas), o desespero de Maxim (Pit Bukowski de O Bunker) que surta em certo momento e os demais marujos.
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Mikhail (deitado) e Sasha (Kristof Coenen ) por pouco não se afogam num momento dramático
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Cabe a Tanya e as esposas dos tripulantes cobrarem uma atitude das autoridades que não querem admitir sua incapacidade
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Do lado de fora, o Comodoro da Royal Navy David Russel (Colin Firth de Somente o Mar Sabe)
detecta o problema e agindo em conjunto com Grudzinsky, procura
agilizar o resgate, esbarrando na oposição pétrea do Almirante Vladmir
Petrenko (Max von Sydow de Flash Gordon)
homem forte da marinha que se opõe à dar acesso a qualquer um de fora
que possa implicar numa quebra de segredos de estado, o que acaba
atrasando o resgate de forma fatal... Temos ainda no elenco uma pequena
participação de Michael Nyqvist (John Wick: De Volta ao Jogo e da série de TV sueca Millennium) em sua derradeira atuação, tendo morrido logo em seguida de câncer.
A fotografia de Anthony Dod Mantle (Quem Quer Ser um Milionário)
alterna cores mais intensas nas locações externas em contraste com os
tons mais contrastados do interior do submarino naufragado, gradualmente
aumentando os cinzas e azuis a medida que o tempo vai passando
em seu interior, e a água vai subindo caracterizando o frio sepulcral,
tornando o ritmo lento mas expressando a agonia dessa situação-limite.
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A diferença de tamanho dos submarinos da classe Oscar em comparação com os da classe Ohio americana. Grande, mas ainda menor do que os Typhon russos...
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A edição de Valdis Óskarsdóttir (Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças)
vai pontuando o ritmo intenso das tentativas de resgate, ou os momentos
mais angustiantes como quando Milhail e Sasha (Kristof Coenen de Professor T.)
nadam num compartimento inundado para recuperarem cartuchos de
filtragem do equipamento de ar, ou o arrastar da negociação entre as
autoridades e o crescendo de desespero dos familiares dos tripulantes,
liderados por Tanya, Daria, Vera Markov, esposa de Anton (Helene
Reingaard Neumann de A Comunidade) e Oksana, a mãe de um dos tripulantes (Pernila August de Star Wars – episódios I e II).
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Tanya e Misha tem de seguir com suas vidas, carregando as lembranças de Mikhail
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O desenho de produção de Thierry Flamand (da versão francesa de A Bela e a Fera de 2014) aliada a direção de arte de Virginie Hernvann (Submersão) Simon Weisse e Gladys Garot e a decoração de sets de Lieven Baes (Promessa ao Amanhecer) e Pascalle Willame (O Novíssimo Testamento) acertam ao inicialmente usar de filmagem num submarino real, para logo depois do acidente, definir o espaço como claustrofóbico e frio (apesar de
ainda serem maiores do que a média desse tipo de embarcação)
contrastando com os espaços pequenos, simples e aconchegantes do
apartamento do casal Averin e as instalações do clube dos oficiais, já
deteriorado pelo tempo mas ainda ostentando as glórias passadas da URSS,
bem como os conjuntos habitacionais padronizados de concreto, lembrando
os dos nosso antigos IAPC e BNH (filmados na cidade de Vulcan, no condado de Hunedoara, Romênia) complementado pelos figurinos de Catherine Marchand (Marina)
que define bem a realidade social sem muita sofisticação destas pessoas
simples, cujos trabalhos exigem um alto nível técnico em contraste com
sua origens proletárias.
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Ao final a reprovação do olhar de uma criança e a sua recusa em aceitar desculpas são mais contundentes do que um discurso contra os responsáveis
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As condições de vida em submarinos russos/ soviéticos acidentados é um tema já abordado em filmes como o ótimo K-19 The Widow Maker (2002) de Kathryn Bigelow e Phantom – A Última Missão (2013)
de Todd Robinson e é claro que somente as trágicas missões é que acabam
ganhando espaço justamente pelo seu teor dramático, fora as implicações
de crítica política, Ao final, embora não seja o melhor filme do
diretor, Kursk: A Última Missão é
correto ao mostrar a relação entre pessoas, o tempo que temos de vida
(que nunca sabemos quanto temos...) e o choque entre a urgência da vida e
as conveniências das autoridades.
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Trágico: O casco do Kursk numa doca seca revelando a extensão da explosão na sala de torpedos, que destruiu a proa
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