terça-feira, 20 de julho de 2021

As mazelas do desmando - Crítica - Filmes: Ilha dos Cachorros (2018)

 

Ilha-(Mundo) Cão

por Alexandre César

(Originalmente postado em 18/ 07/ 2018)


 Wes Anderson brilha com fábula sobre o autoritarismo
 
 
Dono de um estilo narrativo e visual todo próprio e de um humor depressivo, resignado, mas que também fornece uma razão natural-realista-existencialista para lutar por um mundo melhor, Wes Anderson rivaliza em termos estéticos com Tim Burton e com Terry Gillian, apesar de seu estilo ser mais introvertido do que destes dois. 


"Trash Island", local para onde os cães são mandados,vivendo uma realidade de abandono, fome e falta de perspectivas
 
 
Nele, toda e qualquer reação de seus personagens é fruto de um processo de racionalização e avaliação internos, até as decisões mais obtusas, aliando uma bizarra estranheza cômica, definindo seus personagens e respeitando suas particularidades, idiossincrasias, causas, porquês e defesas diárias da sobrevivência e de sofrimento massificado e recorrente. Universos de fábula, e como tais funcionam muitíssimo bem com a estilização inerente às técnicas da animação, sejam quais forem, que se tornam poderosas ferramentas narrativas.
 

O cruel Prefeito Kobayashi (Kunichi Nomura): Fascista adorador de gatos


Seu último filme. Ilha dos Cachorros (2018), filme de abertura do  Festival de Berlim 2018, ganhador do Urso de Ouro de melhor diretor se define como uma fábula político-social sobre a intolerância entre os povos. Os “diferentes” da vez, que não se encaixam na categoria de seres humanos, alvo da perseguição do poder vigente, são os cães à margem enviados a uma ilha campo de concentração. Quase uma década após o lançamento de O Fantástico Sr. Raposo  (2009) Anderson volta a trabalhar com stop motion, técnica que também utilizou nas sequências submarinas de  A Vida Marinha de Steve Zissou  (2004) e algumas sequências de  Grande Hotel Budapeste  (2014). 
 
 

Os "Alpha Dogs": Duke (Jeff Goldblum), Boss (Bill Murray), Chief (Bryan Cranston) o cão herói, Rex (Edward Norton) e King (Bob Balaban)

 
Uma das grandes características do filme é o uso de planos e enquadramentos geometricamente bem decupados influênciados pelo cinema japonês das décadas de 50 e 60 dos cineastas Akira Kurosawa e Yasujiro Ozu, mesclando harmonicamente humor, drama e visuais requintadíssimos, sem cair na superficialidade, temas como saudade, luto, perda e o sentimento de despertencimento são abordados de forma leve, mas sem perder a dramaticidade, pois, ainda se trata de um filme de forte apelo para com o público infantil.
 

O jovem Atari (Koyu Rankin), protegido do prefeito, vai a ilha em busca de seu cão Spots

  
A trama, passada na Cidade de Megasaki, no Arquipélago Japonês, num futuro de daqui a 20 anos se resume assim: Com o crescimento da população canina atingindo proporções epidêmicas, o que gera um surto de febre do focinho, prestes a infectar também os humanos. O prefeito Kobayashi (Kunichi Nomura), um político autoritário e ditatorial, cuja lógica é a de se livrar do problema e decide apressadamente (como todo fascista...), assinar um decreto executivo prevendo a expulsar e a prender a todas as raças de cachorros, sejam eles os de rua ou os de casa. Daí em diante, todos eles são capturados e enviados a Trash Island, que vira uma colônia de exilados: a Ilha dos Cachorros.
 

Técnica Mista: O filme é feito em "stop motion", mas as fotos que aparecem são desenhos na técnica do "mangá", e quando são mostradas cenas filmadas ou televisadas, as imagens são fitas na técnica do "anime"
 
 
 
Passados seis meses, Atari (Koyu Rankin), um jovem órfão de 12 anos tutelado pelo Prefeito Kobayashi, decide resgatar Spots (Liev Schreiber) seu cão de guarda, roubando um avião monomotor. Fazendo um pouso forçado na Ilha, ele é ajudado por uma matilha de cães (“Alfa Dogs” segundo um deles): Chief (Bryan Cranston) o cão vira-lata herói da trama, Rex (Edward Norton), Boss (Bill Murray), King (Bob Balaban) e Duke (Jeff Goldblum) uma trupe de cães domésticos com “nomes imponentes” mas que tudo fazem na base da votação em consenso (coisa bem wes andersiana” ...). 
 

 
As autoridades tentam a todo custo "resgatar" (capturar) Atari, que se tornou uma celebridade...

Nesta jornada, cruzarão o seu caminho a deslumbrante Nutmeg (Scarlett Johansson) uma cadela premiada e interesse romântico de Chief (que consegue manter os pelos sedosos no meio daquela sujeira...) e os cães “místicos” Oráculo (Tilda Swinton) e Júpiter (F.Murray Abraham) que os orientam em sua busca de Spots e da verdade, enquanto no continente se deflagra uma grande comoção pelo destino de Atari e das eleições disputadas pelo prefeito e pelo Prof. Watanabe (Akira Ito) cientista que se empenha em descobrir a cura da febre do focinho, coisa que contraria vários interesses ocultos. Conflitos e reviravoltas ocorrerão no caminho de nossos heróis até o desfecho final... 

 

Atari embarca com seus amigos numa "Jornada do Herói", em busca de seu amigo.

 

A trama, escrita pelo próprio Anderson, juntamente com Roman Coppola, Jason Schwartzman e Kunichi Nomura, é uma metáfora ao crescimento do neonazismo nos modernos tempos, seja no Japão, seja no resto do mundo, e ao crescimento dos seus discursos de ódio, que elegem bodes expiatórios para justificar suas práticas segregacionistas, sejam elas por raça, credo, classe econômica ou identidade sexual.

Opostos: O cruel prefeito e o seu rival político, o Prof. Watanabe (Akira Ito) e a sua assistente (Yoko Ono)

 

Percebemos nos excluídos (os cães) sentimentos de raiva, depressão, narcolepsia, entre outros sintomas, típicos daqueles que são “lixo” para a sociedade que os exclui a periferias, favelas, campos de refugiados entre outras práticas, sendo uma animação com a cara do diretor, mas com um tom bem mais político que  O Fantástico Sr. Raposo. Neste universo pós-apocalíptico, onde os animais mordem porque mordem (por tentar sobreviver a qualquer custo...) conseguir a liderança certa para encontrar um rumo pode ser a diferença entre a redenção ou a completa aniquilação... 

 

Atari e um Chief renascido e com um novo propósito de vida: O uso da cor em cada sequência reflete os estados emocionais dos personagens...
 

 Uma grande sacada foi a decisão de nem sempre traduzir as falas em japonês, pois de acordo com o próprio Anderson numa entrevista “(…) quando você está lendo as legendas, você realmente foca nelas durante todo o filme e não para pra ouvir a linguagem”. (…) “Deixar as falas em japonês sem legenda faz com que você realmente os ouça falando. Você não entende as palavras, mas certamente entende a emoção”  (numa tradução livre), sendo esta escolha criativa inicialmente incômoda para alguns, apesar do aviso irônico e bem-humorado incluído nos créditos de abertura, serve para contribuir na imersão na obra, refletindo de certa forma a subjetividade dos cachorros em relação aos humanos: Costumamos falar com os nossos bichos, conversando com eles e achamos que eles entendem realmente o que falamos, mas eles só depreendem a carga emocional que condicionamos eles a associarem a palavras, formas de falar ou tons de voz, associados à atitudes e linguagem corporal.

 

O design de cenários e bonecos aliado à fotografia, criam visuais oníricos e refletem a subjetividade da narrativa

 Ilha dos Cachorros mostra com suas sombras, suas lutas de sumô, o teatro Kabuki com sua música típica de tambores da dança de obon-ondo (aliada a trilha sonora de Alexandre Desplat que a tudo sublinha em seus 101 minutos de duração) com seus flashbacks com avisos de início, meio e fim, a capacidade de Wes Anderson, aliada à sua excentricidade em criar histórias bem executadas e únicas. A partir de um conceito simples, o diretor explora uma ampla gama de temas através do seu visual único e fabulesco, refletindo a sua visão de mundo.

A produção levou um ano durante o processo de filmagem,dada a minúcia da técnica do "stop motion"


 

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