domingo, 18 de julho de 2021

Viver, viver, e além... - Crítica - Séries: Altered Carbon - 1ᵃ temporada

O Evangelho da Imortalidade


por Alexandre César
(Originalmente postado em 06/ 05/ 2019)

Netflix aposta em Sci-Fi "Cyberpunk"

 


Ao final, nossos corpos são só "uma roupa"...

 
Imagine que você é riquíssimo e mais do que pagar as plásticas, lipoaspirações, implantes e outros procedimentos estéticos você pudesse pagar por viver indefinidamente, aumentando nesse processo a sua riqueza e poder, ascendendo cada vez mais na pirâmide social?  Levaria quantos séculos (ou décadas) para você se sentir um “deus”, por estar acima daquilo que iguala todos os homens, a morte? 
 



No passado: Takeshi Kovacs  (Will Yun Lee), como ele mesmo.


Esta é uma das indagações de Altered Carbon, a nova série do canal de streaming Netflix, que numa produção excepcional (que soma mais acertos do que erros) ao contar uma trama sci-fi-policial-noir-cyberpunk que visualmente nos remete a Blade Runner, Akira, Ghost in the Shell entre outras tantas obras de iconografia similar. Aposta arriscada, uma vez que apesar da popularidade em alguns nichos, dificilmente obras desse gênero se traduzem num grande sucesso ao grande público não-iniciado. 
 

 
"Discutindo a relação": 250 anos depois, a detetive Kristin Ortega (Martha Higareta) e Takeshi Kovacs (Daniel Kinaman), antigo caso da policial



Aqui o conceito de alma, deus e religião é severamente colocado à prova, face aos avanços tecnológicos, como clonagem, realidade virtual, e em alguns momentos levantando questões éticas e morais similares às do seriado Black Mirror (também da Netflix). 
 


Glamour e tédio: Laurens (James Purefoy) e Miriam Bancroft (Kristin Lehman). Casados há 150 anos

 
Ambientado num futuro distópico, onde a consciência e as habilidades de uma pessoa podem ser gravadas num “cartucho”, permitindo a sua transferência para outro corpo semelhante ou, até clonado (se você puder pagar por este serviço) criou uma nova elite, os “matusa” (alusão ao personagem bíblico Matusalém que viveu cerca de 960 anos) que se transferem de corpo para corpo (“capas” como são chamadas na série) século após século, aumentando o seu patrimônio de maneira exponencial, alargando o abismo entre as classes sociais, que vivem uma vida apenas, ou se viram quando sofrem um acidente ou são vítimas de um crime e o estado lhes dá uma “capa” nova, mas, o que tiver disponível, independente de combinar ou não o sexo, raça ou idade da “capa” com a da consciência do “cartucho”.


"Poe" (Chris Conner) a inteligência holográfica que cuida do Hotel "The Raven" e, de Kovacs...

 
Neste contexto, O Protetorado, Governa a Terra e vários sistemas de forma intensa, esmagando qualquer movimento opositor. Após cumprir uma pena de 250 anos “congelado” o ex-guerrilheiro e Envoy ( espécie de jedi) natural do mundo de Harlan, Takeshi Kovacs (Will Yun Lee em flashbacks de sua juventude e Leonardo Nam como sua versão mais velha) é despertado na “capa” de Elias Ryker (Daniel Kinaman) policial condenado e ex-parceiro da detetive Kristin Ortega (Martha Higareda) contratado pelo homem mais rico do planeta Laurens Bancroft (James Purefoy, o eterno Marco Antônio de Roma série da HBO ) para que desvende o seu próprio “suicídio”, uma vez que a sua “capa” morreu mas, o backup automático transferiu a maior parte de sua consciência para outra do seu estoque, perdendo um dia de memória por isso. Mas simples que isso impossível, não?
 


Processo civilizatório: "O Protetorado" mantém as rédeas curtas da população

 
Kovacs se hospeda no hotel The Raven (O Corvo) administrado por uma Inteligência Artificial holográfica que reproduz a imagem de Edgar Alan Poe (Chris Conner) alívio cômico e um dos melhores personagens da série, que fica seu amigo, ajudando-o em inúmeras situações.



O visual "cyberpunk" é de encher os olhos...

 
A família Bancroft, como toda família de série, é disfuncional. Laurens e sua linda esposa femme fatale Mirian (Kristin Lehman) são casados há 150 anos e têm 21 filhos, (com pouquíssimo desenvolvimento tanto na série quanto no livro) todos dependentes de Laurens, que impede que amadureçam e se tornem adultos de verdade.



Um mistério corre paralelo quanto aos entediados Bancrofts...

 
Ele, emana aristocracia em cada gesto e frase, parecendo realmente um nobre dos velhos tempos (daria um bom vampiro de Anne Rice) e em uma cena genial, faz caridade numa região contaminada e ele vai dando presentes e tocando nos infectados , enquanto seu corpo se consome, morrendo no final, para consternação dos pobres miseráveis, mas só que é claro logo em seguida a sua consciência é carregada num de seus clones reserva, e assim, percebemos o ego do personagem, pois nada melhor para se sentir um “Deus” do que se sacrificar fazendo a caridade, morrer, e renascer, tal qual a ressurreição de Cristo.



Família unida: Kovacs e sua irmã "casca-grossa" Raileen (Dichen Lachman)


Uma das principais diferenças em relação ao livro foi um maior destaque e protagonismo das personagens femininas, com um maior empoderamento destas, obra da produtora e showrunner Laeta Kalogridis. 

Agora, um dado um tanto incômodo, muito comum em franquias de ficção-científica (sejam na tv sejam no cinema) é que tirando a grande questão-tema da série (a troca de consciência de um corpo a outro tal qual uma versão high-tech do conceito de "reencarnação") não vemos de fato um efetivo impacto da tecnologia na vida cotidiana da civilização representada, pois Kovacs, após passar 250 anos no "limbo", rapidamente se readapta ao ambiente, não havendo visivelmente uma evolução tecnológica desde a época de sua condenação e o tempo "presente" onde a trama se passa.



Nunca subestime o que um homem com uma mochila rosa de unicórnio é capaz...
.

 
O rendimento do elenco é bom, principalmente porque a maior parte dos personagens têm pouca profundidade, mas ainda sim o conjunto destes é bom,  o que mostra a sua competência. Ação, sangue, lutas e sexo, com direito a nu frontal, não faltam, mas estão bem dosadas, e apesar de certos desenlaces acontecerem de forma explicada, por conta da complexidade da trama, destoando às vezes o ritmo narrativo.
 

 O nu frontal corre solto, tanto feminino quanto masculino.



A produção é impecável, sublinhada pelo tema de Jeff Russo (Star Trek: Discovery) que com seus acordes sombrios, e tons incidentais, da um toque sobrenatural à narrativa, realçando o ótimo design de produção de Carey Meyer (Into the Badlands), que junto com a direção de arte de Chris Beach (Maze Runner: A Cura Mortal), Don Macaulay (Lemony Snicket: Desventuras em Série), Harrison Yurkiw (Os 100) e Colin De Royin (Patrulha do Destino) e a decoração de sets de Lin MacDonald (Star Trek: Sem Fronteiras) criam um junto com a fotografia de Martin Ahlgren (House of Cards) e Neville Kidd (Sherlock) e a equipe de efeitos visuais da Pixel Light Effects, um universo plural, onde a luminosidade dos palácios acima das nuvens dos ricos contrasta com as cidades entupidas, enevoadas e quase sempre com chuva, onde o grosso da população vive um cotidiano desesperançado, cujos figurinos de Ann Folley (Marvel´s Agents of S.H.I.E.L.D.) e Christine Wada (Pixels) contrastam os trajes imaculadamente brancos dos Bancofts com as roupas sem estilo do "povão" que tentam combinar o que podem, ora acertando, ora refletindo um aspecto largado. Familiar, não?

 
 A série ao final fecha com um gancho, para uma possível próxima temporada, que não precisará que o protagonista retorne com a “capa” de Kinaman necessariamente. Afinal neste universo de “reencarnações” high-tech um corpo é só uma roupa, e eu gosto de usar uma blusa diferente cada dia...


"- De onde viemos? 
- Para onde vamos??? 
- Para a próxima temporada?"

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