domingo, 11 de julho de 2021

Abandono & acolhimento - Crítica - Filmes: MidSommar – O Mal Não Espera a Noite (2019)



O SOL é Testemunha


por Alexandre César

(Originalmente postado em 18/ 09/ 2019)



Diretor Ari Aster surpreende em filme de ritual pagão 




"- Terá uma boa vida até aos 72 anos!!!" Só...


A vida está um inferno para Dani (Florence Pugh), estudante de Psicologia que após uma tragédia pessoal deixá-la sem sem chão ao perder toda a sua família, se agarra, em busca de apoio, no seu namorado Christian (Jack Reymor), mas o relacionamento já se arrasta há muito tempo no automático, pois ele já não via hora de terminar o relacionamento, coisa que a tragédia o impediu por pena. Isso fica mais claro entre os amigos de Christian Mark (Will Poulter, de Maze Runner: A Cura Mortal), que acha que ele devia mandá-la “passear”e Josh (William Jackson Harper), tal qual Christian um estudante de Antropologia, mais focado em seu projeto acadêmico do que em Josh relacionamentos. Ela, sentindo-se deslocada,vê no convite de Pelle (Vilhelm Dan), amigo sueco de Christian, para que o casal e mais dois amigos o acompanhem para uma tradicional celebração de verão na aldeia em que cresceu, como uma oportunidade para espairecer e processar seu luto.


Christian (Jack Reymor) e Dani (Florence Pugh) o casal que se "empurra com a barriga" e o "choque de realidade..."

 
Chegando à bucólica e solar comunidade de Hårga, a princípio temos uma visão do que parece ser o paraíso – cheio de música suave, roupas brancas, colheita de flores e dança. Pelle estabelece o ciclo de vida de Hårgans para seus amigos logo depois que eles chegam à comuna: A vida de cada membro da comunidade é dividida em quatro estações, com duração de 18 anos cada. A infância (primavera) dura de 0 a 18 anos e, de 18 a 36 anos (verão), os jovens partem em peregrinação, passando aqueles anos vivendo em outros lugares do mundo. Eles retornam à comuna e trabalham dos 36 aos 54 anos (outono) e dos 54 aos 72 (inverno) lideram a comunidade como anciãos. Após uma brutal morte ritualística, vai ficando gradativamente claro que os convidados para a celebração do dia mais longo do verão em 90 anos (o Midsommar) desempenharão um papéis beem diversos do que o de meros espectadores...
 

Sol, comida, bebida e "estimulantes naturais" fazem parte da colorida comemoração...


Dirigido por Ari Aster (Hereditário de 2018 e o curta The Strange Thing About the Johnsons de 2011 entre outros) Midsommar: O Mal Não Espera a Noite (2019) caminha para o terror psicológico de forma elegante, seja pela força visceral de seus pontos de virada, deixando explícita a transição entre o drama mundano e o terror absoluto, seja pelas suas viradas, essencialmente existenciais. Belo e perturbador, o novo terror, assim como o seu primeiro filme, traz um suspense crescente, instigante e excêntrico. Tal qual o seminal O Homem de Palha (1973) de Robin Hardy, com roteiro de Anthony Shaffer responde à aquela velha “- Quem disse que toda história de terror precisa acontecer no escuro?” Aster, mostra que não é necessário, utilizando as paisagens bucólicas do país europeu, com suas cores vibrantes e radiantes para criar o clima caótico, visceral, perverso e claustrofóbico, dedicando grande carinho à construção da atmosfera de terror pastoral (ou folk horror).
 

Christian,quer terminar com Dani, Josh (William Jackson Harper) quer fazer uma tese sobre os Hargans e Mark (Will Pouter) só  quer "pegar geral a mulherada..."

 
Tal qual no clássico de 1973, ou em Spellbinder (1987) de Janet Greek, O Culto (2017) de Justin Benson e Aaron Moorhead bem como em outros “filmes de ritual” o roteiro se estabelece daquela forma que os personagens acabam fazendo papéis (mesmo que não o saibam, pois devem faze-lo de livre e espontânea vontade para que o ritual seja válido...) e assim quem os convida já tem em mente o perfil dos convidados e, assim, fatalmente acabarão se comportando de uma determinada maneira (Mark é o típico turista sem respeito por outras culturas, Josh quer pesquisar a aldeia para sua graduação mesmo contra o desejo dos habitantes, Christian está procurando uma forma de terminar com Dani,etc...) sendo eles gradativamente ludibriados pelos excelentes e benevolentes anfitriões, cujos sorrisos não deixam de lembrar os dos milhares de devotos que comparecem à Marcha para Jesus ou à Jornada Mundial da Juventude. Fés diferentes, mas devoção igual.
 
 
Dani vai vendo que o "Sol" (simbolizado pela entrada na comunidade) a todos vai tragando...

 
Se o prólogo prende a atenção por ter exatamente o que se espera de um filme de terror: ambientes escuros, trilha sonora potente, o suspense de não saber o que pode ter acontecido e desespero das personagens, sendo Dani a emanação da claustrofobia do início até o fim e, sob a sua perspectiva, da sobriedade e dor contidas iniciais, o filme se transforma de pesadelo a sonho, de trevas a luz, levada a um ambiente de pura luminosidade e paz, neste dia que não vira noite, sentindo-se acolhida (abraçada) por aquela comunidade enquanto conhece o modo de vida daquelas pessoas incomuns e fervorosas diante de suas crenças, e assim a escuridão parece se afastar aos poucos dela, embora fique claro que de dentro de si ela nunca se foi...
 

Renovação de ciclo: Os devotos no solstício de verão festejam a renovação da vida da terra, "trocando uma vida por outra..."


Questões de cunho cultural são levantadas como na sequência do brutal suicídio ritual de um casal de aldeões, que chegou à idade máxima de 72 anos, cuja violência gráfica choca, mas abre uma discussão perturbadora, levantada por Christian: “- Nós colocamos nossos idosos em asilos, e isso deve ser perturbador a eles”. Fim de ciclo para uns, e loucura para outros...

Christopher Lee em "O Homem de Palha" (1973): 
Clássico seminal e pai de todos os "Filmes de Ritual"...

Embora não dê um minuto de paz à sua protagonista, usando-a para mostrar a indiferença e afastamento do próprio namorado, o roteiro dá uma atenção maior sobre as relações humanas, explorando o relacionamento do casal.
 

A "Capela Sixtina" de Hargan, onde várias dicas sobre os rituais são mostrados.
Agora se você convidado não presta atenção... só lamento.


Tanto Pugh quanto Reynor sutilmente retratam o desconforto mútuo entre pessoas que já não se gostam mais, e a intensidade dos momentos de loucura. mostrando uma relação em declínio em meio ao caos.Neste filme, Aster trabalha muito bem a crueza no terror, mas essencialmente no quanto é possível assustar até mesmo nas situações que se tornam cômicas de tão absurdas sem tornar-se uma comédia de terror, pois o incômodo é real e se une aos momentos "leves" de forma quase que automática, como quando percebemos que para o homem moderno, não há maior antídoto para os efeitos da alucinação por drogas do que a noção de uma futura paternidade inesperada.


Dani vai sendo separada de seus amigos na mesma medida que vai sendo acolhida por aquela comunidade insólita

Chocar e confundir o público entre riso e repulsa parece ser o objetivo que só um filme essencialmente confuso pode realizar, deixando um gosto estranho mas também, único.

Josh sabe que não deve fotografar os textos sagrados, mas a tentação acadêmica é maior...

 
Esteticamente, o filme é uma homenagem à direção de arte presente nos filmes como El Topo (1970) do cineasta, poeta, psicólogo e escritor chileno, Alejandro Jodorowski. Seus efeitos visuais contorcidos, alucinógenos e psicodélicos remetem às obras do pintor pós-impressionista Vincent Van Gogh, trazendo as distorções realísticas em algumas cenas que estão presentes em diversos quadros do pintor, como os momentos em que elementos da paisagem se distorcem refletindo o entorpecimento dos personagens da percepção da realidade à sua volta.
 

Pelle (Vilhelm Blomgren) o "ombro amigo" de Dani...


 A música de Haxan Cloak ( das séries The Enemy Within e O Atirador, ) enfatiza o tom obscuro, misterioso e assustador, trazendo todo terror psicológico graças ao músico Bobby Krilc, que utiliza o clássico instrumental com o estridente som eletrônico causando no espectador uma sensação de repulsa, angustia e agonia, que dialoga com a Montagem de Lucian Johnston (Hereditário, Noé de 2014) nas alternâncias de momentos tensos e outros leentos para depois intensificar o pique narrativo num crescendo.
 

"- Dá uma cheiradinha meu filho que é melhor do que a 'azulzinha' eu garanto!"


A dedicação dos Hårgans à sua comunidade se reflete na criação das vestes e na decoração de suas casa sendo um ponto que os turistas acham bonito e semelhante a um camping. Sendo os seus costumes representados em cenas de longo silêncio, ou através das peculiares ilustrações que adornam as casas e estábulos do vilarejo. O caprichado Desenho de Produção de Henrik Svensson (O Círculo de 2015) e a Direção de Arte de Csaba Lodi (Caça às Bruxas de 2011) Richard T.Olson (Hereditário, Pânico na Neve de 2010) Nille Svensson (da série Alt faller) e Eszter Takács (da série Os Bórgia) carrega as tintas em cores vivas, e em ilustrações ingênuas e didáticas, semelhantes às do nosso cordel, que explicam muitos rituais tal qual tiras de quadrinhos, coisa registrada pela Fotografia de Pawel Pogorzelski (Hereditário, As Garotas da Tragédia de 2017) propositalmente superexposta, cria mais outro paradoxo com o interior sombrio da personagem principal, que certas vezes se sobrepõe à beleza externa (é estupendo o momento quando os carros seguem a estrada rumo à Hårga a câmera vira de ponta a cabeça, ficando assim um bom tempo para demonstrar que eles estão indo a “um outro mundo”). Cor e branco se mesclam nos Figurinos de Andrea Flesch (Colette de 2018, O Duque de Burgundy de 2014) que utiliza tecidos naturais, palha e muitas flores nas ornamentações e arranjos de cabeça, contrastando com a realidade manufaturada das camisas de malha, jeans e tênis dos visitantes.
 

"e a Rainha da Colheita é eleita e distribui as suas bençãos pelos campos, assegurando a fertilidade da terra"


Ao final, tal qual Hereditário, Midsommar: O Mal Não Espera a Noite não é um longa que agradará a todos. O seu horror é subjetivo, é profundo e psicológico, cujo final acaba sendo sobre o abandonar um relacionamento ruim e abrir-se para um relacionamento melhor – de uma maneira muuiiito distorcida, obviamente, que quebra um clássico paradigma presente em vários filmes de terror centrados em rituais, seitas ou cultos, que é o demonizar crenças de matriz africana ( que diferente das de matriz nórdica, celta ou greco-romana, não têm tradição de sacrifícios humanos), surpreendendo ao trazer o terror através de uma religião européia. A troca traz reflexões e desmistifica o preconceito criado contra o continente africano, sendo nestes tempos de fundamentalismo institucionalizado, o tipo de filme do qual o espectador sairá do cinema perturbado, reflexivo e angustiado, mas no bom sentido.
 


"- Há milênios temos a nossa solução para a questão da aposentadoria..."

 

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