Pois é, ... bom, ... foi mal ...
por Alexandre César
(Originalmente postado em 09/ 02/ 2019)
Comédia dramática relata as agruras do meio editorial
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A recriação e o original: Melissa McCarthy (esq.) vive Lee Israel (dir.) garantindo a sua idicação ao Oscar
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Gorda, sarcástica, mal-humorada, chegada à entornar o copo, emocionalmente mal resolvida e sem qualquer apego a própria aparência, Lee Israel (Melissa McCarthy, de Mike & Molly) jornalista e biógrafa aclamada nas décadas de 60, 70 e 80 chegou a ter livros na lista dos mais vendidos do New York Times, publicando obras sobre mulheres vencedoras em suas áreas, como as atrizes Katharine Hepburn e Tallulah Bankhead, ou a executiva dos cosméticos Estée Lauder.
Ela tentou seguir o caminho correto, mas o seu gênio difícil e antissocial lhe impediram de ser uma figura “simpática”
e, em 1991, ela está falida pois ninguém do campo editorial se
interessa por suas propostas de biografias, fora de sintonia com o
mercado... ninguém mais quer escutá-la.
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Algumas das biografias escritas por Lee Israel (1939-2014). |
Desesperada pelos problemas financeiros, ela encontrou na mentira a sua
verdade, ao combinar o seu senso de humor ácido e seu conhecimento
histórico de celebridades há muito falecidas, para forjar cartas da
mesmas, abrindo uma nova (e lucrativa) porta, ao vendê-las a
colecionadores, um negócio criminoso que dá muito certo. Quando as
primeiras suspeitas quanto à autenticidade dos textos começam, para não
parar de lucrar, ela modifica o esquema e passa a roubar os textos
originais de arquivos e bibliotecas, usando a ajuda de Jack Hock
(Richard E. Grant, ganhador do Satellite Award e o New York Film Critics Award
de Melhor Ator Coadjuvante) um gay decadente e traficante de drogas,
que com o seu charme dá vida à narrativa das histórias dos textos
supostamente achados em sótãos e livros herdados de tias, avós e etc...
todo o trambique têm de ter um lado fabulesco para cativar o cliente...
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"São só negócios": Lee e Marjorie (Jane Curtin) a agente que já não se interessa por seus projetos... |
Indicado ao Oscar de
Melhor Atriz (Melissa McCarthy), Melhor Ator Coadjuvante (Richard
E.Grant) e Melhor Roteiro Adaptado (Jeff Whitty e Nicole Holofcener), e
dirigido com muita competência por Marielle Heller, baseado na história
real da escritora, Poderia me perdoar? (2018),
adapta ao cinema as memórias de Lee como falsária, mostrando uma
jornada que usa celebridade e anonimato como unidades de medida para a
valorização do talento e, embora não poupe seus protagonistas, mostrando
os seus defeitos e hábitos questionáveis, dá-lhes uma dimensão humana
que é impossível, ao se entender o seu ponto de vista, e o seu lugar no
mundo, não lhes dar um certo desconto em suas atitudes. Diferente de seu
último projeto, a comédia dramática O Diário de uma Adolescente (2015) que escreveu e dirigiu, aqui, ela apenas dirige, sendo o roteiro de Jeff Whitty e Nicole Holofcener (ganhadores do Satellite Award de Melhor Roteiro Adaptado). Holofcener , que é também diretora de filmes, como Gente de Bem (2018) ou À Procura do Amor (2013), conhecido por ter sido o último filme do ator James Gandolfini (tendo sido lançado três meses após a morte).
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Companheirismo: Jersey (vivido pelo gato Towne) faz companhia à Lee nos altos e baixos
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O roteiro tem uma construção bem sedimentada, acertando ao mostrar bem o quanto o “ser político e sociável” influi para a valorização de coisas mais abstratas como talento, tornando os seus autores comercialmente interessantes ou não, e a questão sobre o “encontrar sua própria voz” , pois Lee tornou-se uma mulher amarga, cínica e antissocial, incapaz de colocar no papel, ideias próprias, ressentida de autores como Tom Clancy (autor de “best sellers”como Caçada ao Outubro Vermelho e outras obras de temática tecno-militar, que tinha um “modo operário” de trabalhar suas obras, e sendo com isso consagrado pelo mercado editorial) aumentando o seu bloqueio e, lhe restando apenas falar ou imitar uma outra pessoa; enquanto Lee Israel, a sua palavra não tinha importância, como a comediante Fanny Brice passava a ser artigo de colecionador, ficando ao final a ideia de que seus textos eram“autênticas falsificações” , ou seja: Eram falsificações sim, mas eram autênticas ou, “mentiras verdadeiras” como só os autores de verdade conseguem...
O filme define harmoniosamente assim seu tom estético e escolhas narrativas, transitando livre e fluentemente entre comédia e drama de forma orgânica, sem pesar a mão em uma ou outra, dando a importância dos seus protagonistas, que desprovidos de qualquer glamour aparente, refletem uma narrativa descritiva de ruína, entre roupas velhas, jazz suave (há “um quê de Wood Allen” na forma de filmar Nova York, graças à fotografia de Brandon Trost, embalada pela trilha musical de Nate Heller), gatos vira-latas (Jersey, a gata de Lee é um personagem à parte...), apartamentos imundos e tipos aquém de qualquer padrão de beleza, pois embora a caracterização de McCarthy seja marcante, ela não se deixa dominar por trejeitos físicos e maquiagem (ou falta de) revelando a capacidade da atriz de dar camadas e mais camadas à sua personagem, usando a aparência como condutor não como estrutura. inicialmente podemos lembrar da Megan, de Missão Madrinha de Casamento (que lhe deu uma indicação ao Oscar) mas aqui param as similaridades: McCarthy faz da escritora a anti-heroína perfeita do artista subestimado, negligenciado por empresários e agentes, revelando no seu discurso à juíza, quando já pega, o seu sentimento de vingança contra o sistema que a ignorava, e cujos intelectuais metidos ela enganava com seu talento e inteligência, cujos narizes empinados, eram incapazes de perceberem que ela os enganava, divertindo-se, e sentindo-se livre. Irônica e melancólica, ela nos cativa com o seu “charme do mau humor”.
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Anna (Doly Wells) tem um sutil flerte com Lee. A identidade Queer é tratada sem bandeiras
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Richard E. Grant, brilha de forma estupenda em sua performance como Jack Hock, o amigo gay
e auxiliar de Lee em seus trambiques literários. Aparentemente apenas
um alívio cômico, é impossível não rir ou se encantar com este
sobrevivente da indigência da vida. Mentiroso, tratante, imoral e sem
papas na língua, ele é o tipo de personagem fácil de se aproximar, pois
tudo sobre ele é incerto mas cativante cujos trejeitos, falas,
expressões corporais, ou o sorriso sardônico híbrido do Conrad Veidt de O Homem que Ri (1928 - de Paul Leni) com o Gato Risonho de Alice no País das Maravilhas (2010 – de Tim Burton) revelam um charme irônico, que serve como o mecanismo de defesa do “talentoso fracassado”,
e não apenas, uma desculpa para tornar a história mais leve. Grant
construiu um personagem único: Caricatural, mas real, algo digno de
Quentin Tarantino.
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Jack Hock conhece Kurt (Christian Navarro) e engata um namoro, bagunçando seus "trampos"...
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Poderia me perdoar?
é acima de tudo um filme agradável, cujo potencial é multiplicado por
seu elenco super carismático, e ainda que o título sugira culpa, revela
mais orgulho do que arrependimento na história de Israel. A razão é que muitas
vezes, a mentira se revela uma forma de modelar a realidade, se
revelando conveniente tanto para o mentiroso quanto para o enganado,
pois as suas falsificações eram tão boas e coloridas que aceitá-las era
melhor do que admitir a tristeza do quão cinzenta e sem graça a verdade
pode ser. Pessoas outsiders
como Lee Israel, ou Jack Hock sobrevivem à margem dos principais
eventos da vida cotidiana, criando nesta marginalização uma amizade
improvável, mas verdadeira, plena de dor e empatia, pois mesmo eles, os
delinquentes e criminosos, sofrem com as mesmas perdas que nós. Só que
estes, não aceitam que o mundo os paralise com tanta facilidade. Eles
ousam coisas e correm riscos que nós pagadores de boletos não concebemos
fazer. Perigoso é verdade, mas não tão diferente assim do que o
primeiro australopithecus deve ter sentido ao deixar às árvores e tentar andar de pé... é a luta pela sobrevivência.
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Amigos de copo: Lee e Jacky Hock vão fundo no negócio das falsificações, até chegar o FBI, aí o copo derrama...
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