Tributo e legado
Tributo e legado
por Alexandre César
Filme-tributo da vingadora é bom, mas chegou atrasado
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Ohio, 1995: Melina (Rachel Weisz) fala a suas "filhas" Natasha Romanoff (Ever Anderson) e Yelena Belova (Violet McGraw) sobre a bioluminescência na natureza |
Surgida nas telas em Homem de Ferro 2 (2010), Natasha Romanoff, a Viúva Negra, em suas origens nos quadrinhos era inimiga do alter-ego de Tony Stark, junto com Clint Barton, o Gavião Arqueiro - os dois viviam na época um “amor bandido”. Porém, se o artista de circo não demorou muito para se regenerar, fazendo parte da segunda formação dos Vingadores (junto com os dois ex-vilões Wanda e Pietro Maximoff*1), a espiã russa da KGB demorou um pouco mais em sua jornada de redenção. Ela ganhou espaço gradativamente em parcerias, como a que teve com o Demolidor (e com quem também teve um relacionamento amoroso) e ao integrar supergrupos, como os citados Vingadores e Os Campeões. Até ela tornar-se um valioso operativo da S.H.I.E.L.D., mas sempre assombrada por seu passado de espiã-assassina. Sua história de origem foi reajustada pela editora um bom número de vezes, devido às mudanças da geopolítica mundial desde os tempos da guerra fria*2.
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Os "pais" Melina e Alexei Shostakov (David Harbour) revelam às garotas que ele irão partir "para uma grande aventura" |
Dirigido por Cate Shortland (Síndrome de Berlin), Viúva Negra (2021) chega aos cinemas e no Disney+ com um certo atraso. Mais do que o receio de naufragar devido a pandemia do COVID-19, a Marvel Studios tinha dúvidas em lançar um filme de heróis com uma protagonista feminina - algo que o poderoso Kevin Feige queria desde 2012, mas a Disney (atual dona da Marvel) relutava. O filme, com roteiro de Eric Pearson (Thor: Ragnarok) a partir da história de Jac Schaeffer (WandaVision) e Ned Benson (Dois Lados do Amor), é bom em seu conjunto, apesar de, em muitos momentos, parecer ser mais um filme da fase 2, uma época em que ainda se estava pavimentando o terreno do Universo Cinematográfico Marvel (MCU, no original) e, portanto, o público ainda não cobrava tanta verossimilhança do roteiro (a tal “mentira que se passa como sendo verdade”) em relação ao contexto global.
O filme começa em 1995*3, quanto vemos em Ohio, uma família composta pelas jovens Natasha Romanoff (Ever Anderson) e Yelena Belova (Violet McGraw) e seus “pais” Alexei Shostakov (David Harbour, de Stranger Things e Hellboy) e Melina (Rachel Weisz, da cinessérie A Múmia). Na realidade eles são uma célula de espionagem russa (semelhante ao que ocorre no seriado The Americans), que acabam caçados pela S.H.I.E.L.D. e fugindo dos EUA para Cuba. Chegando à ilha caribenha, numa base aérea repleta de vários modelos de MiGs (23, 27, etc..) soviéticos, Alexei e Melina entregam a seu “camarada” Dreykov (Ray Winstone, de Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal) a fórmula de um composto de condicionamento mental que ele roubou do Instituto North. Com o término da missão, as meninas são sedadas e levadas para serem treinadas na Sala Vermelha, uma organização que condiciona e treina meninas para torná-las agentes de espionagem, infiltração e eliminação de opositores: As Viúvas Negras.
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...para Cuba! burlando a grade aérea dos EUA, com a piloto ferida e sem reabastecer! Vai pilotar bem assim na Marvel!!! |
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Alexei é parabenizado pelo “camarada” Dreykov (Ray Winstone) que fica com o fruto da missão, e com as meninas |
Vinte e um anos se passam e Natasha Romanoff (Scarlett Johansson, de Vingadores: Ultimato) está sendo caçada pelo Secretário de Estado Thaddeus Ross (William Hurt, de Vingadores: Guerra Infinita) por ela ser um dos heróis que violou o Tratado de Sokóvia, agredido o Rei T'challa de Wakanda, o Pantera Negra, e permitido a fuga do Capitão América e do Soldado Invernal*4. Após driblar seus perseguidores, ela foge para o Marrocos, enquanto Yelena Belova (a ótima Florence Pugh, de Midsommar: O Mal Não Espera a Noite) tem o seu condicionamento quebrado enquanto executava uma missão como uma das Viúvas Negras. Ela readquire o livre arbítrio e tem em seu poder as únicas amostras de um componente que pode libertar as outras Viúvas Negras. Com isso ela passa a ser caçada por suas colegas a mando da Sala Vermelha.
Escondida na Noruega, onde come miojo e geléia vendo no streaming 007 Contra o Foguete da Morte (1979), Natasha recebe os seus pertences dos “tempos de Budapeste”, e, para sua surpresa, no meio deles estavam os frascos do tal componente que estavam em poder de Yelena. Ela então é caçada pelo Treinador, indivíduo lacônico também originário dos quadrinhos, capaz de, por meio de observação e análise, mimetizar os reflexos de qualquer oponente, criando respostas ofensivas à altura.
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Yelena fica com as cápsulas do antídoto, passando a ser caçada por suas colegas... |
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... em especial o misterioso "Treinador", capaz de replicar qualquer reflexo e estratégia de luta |
Natasha então retorna à Budapeste, onde finalmente reencontra sua “irmã” de armas. Após se estapearem, elas unem forças e, após fugirem do Treinador e das outras Viúvas, decidem reunir a sua antiga “família”, resgatando Alexei (na realidade o Guardião Vermelho, equivalente soviético do Capitão América) de uma prisão russa e reencontrando Melina, a Dama de Ferro, para juntos acabarem de vez com a Sala Vermelha e Dreikov.
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Natasha, decobre que o "Treinador" pode espelhar as suas técnicas de combate, além da de outros combatentes |
O grande trunfo do filme é o quarteto principal, cuja dinâmica consegue nos fazer relevar as incongruências do roteiro. Acreditar, por exemplo, que dois agentes adultos, calejados da Guerra Fria, durante apenas três anos fingiram um relacionamento parental com duas crianças, as descartam posteriormente sem pensar duas vezes e, ao reencontrá-las vinte e um anos depois, demonstrarem sentimentos de afeto por elas, como se não tivesse passado nem um dia sequer, é dose! Em relação às moças, até podemos relevar, pois foi o mais próximo de uma relação familiar que tiveram, mas quanto aos “pais”, isso fica bem questionável.
Rachel Weisz destila uma serenidade contida e um olhar convincente, enquanto David Harbour está bem como alívio cômico, caracterizado como uma síntese de todos os estereótipos hollywoodianos sobre o que é um russo/ soviético. Isto demonstra o apego à caricatura do “ser comunista”, por parte do cinema mainstream, para continuar a vender ao resto do mundo o modo de vida americano. Mesmo que este modo de ser esteja igualmente desgastado por sua própria natureza...
Mas o espetáculo mesmo é de Scarlett Johansson - mais do que à vontade na personagem - e de Florence Pugh, que rouba a cena com sua composição de Yelena Belova: uma mescla de mágoa, ironia e sarcasmo, demonstrada quando questiona o “pouso de super-herói” de Natasha (que, convenhamos, não é nada prática) como se ela sempre estivesse posando para alguém. Tal observação reflete a objetificação do corpo feminino na cultura de massa, coisa mais do que comum nos quadrinhos, que tem uma considerável parcela de consumidores desse tipo de produção tóxica. São homens que detestam “lacração e mimimi”, vendo as voluptuosas heroínas (e as mulheres no geral) apenas como objetos de fetiche, refletindo na maioria das vezes suas dificuldades de relacionamento com o real.
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O "Treinador" mostra ser capaz de replicar as habilidades de Natasha, do Capitão América... |
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... e do Gavião Arqueiro, com resultados devastadores numa perseguição pelas ruas da capital húngara |
Quanto aos personagens secundários, Ray Winstone é o típico vilão desprezível que, no momento-chave, faz um discurso, revelando seu plano megalômano de dominação. Aquele tipo que não exita em usar Antonia (Olga Kurylenko de Hitman), sua própria filha, para atingir seus objetivos. Ainda temos o simpático e sensível (vai nessa...) Mason (O-T Fagbenie, de O Conto da Aia), o traficante de armas e fornecedor de equipamentos de Natasha (na realidade, ele é mais um recurso narrativo do que realmente um personagem). E, como boa sacada, temos o Treinador, que tem a sua origem reformulada (para melhor, pois, nos quadrinhos, sempre foi um personagem raso) e se torna equivalente a um Boba Feet, de Star Wars, no tocante a sua presença marcante, bom visual e postura calada. Suas cenas de luta são bem coreografadas, auxiliadas pela edição de Leigh Folson Boyd (Velozes & Furiosos 7) e Matthew Schmidt (Vingadores: Ultimato).
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A dupla decide resgatar de uma prisão russa na sibéria... |
A fotografia de Gabriel Beristain (Marvel´s Agent Carter) valoriza bem as belas locações na Hungria, Noruega, Marrocos, Georgia (que se passa por Ohio), Inglaterra (a base aérea de Upper Heyford, que se passa por Cuba). Nos cenários dos estúdios Pinewood (Inglaterra) e Korda (Hungria), o desenho de produção de Charles Wood (Doutor Estranho) e Clint Wallace (Space Jam: Um Novo Legado) e a direção de arte de Thomas Brown (Guardiões da Galáxia), Jim Barr (Star Wars: A Ascenção Skywalker), Oliver Carroll (Han Solo: Uma História Star Wars) e equipe, não escondem as influências de James Bond nas instalações high-tech da base do vilão e de algo mais de Jason Bourne nos ambientes cotidianos e plenos de elementos utilizáveis numa boa luta. Tudo valorizado pela decoração de sets de John Bush (O Céu da Meia-Noite) e Jess Royal (Stranger Things), que situa o tempo e espaço da trama. Os figurinos de Jany Temime (Judy: Muito Além do Arco-Íris) e Lisa Lovaas (Hotel Artemis) dão destaque a beleza e a ótima forma das atrizes.
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Alexey e Melina se reencontram, compartilhando lembranças |
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Alexei Shostakov resgata o seu uniforme de "Guardião Vermelho", a versão soviética do "super-soldado" |
A música de Lorne Balfe (A Guerra do Amanhã) é eficiente, permeando a ação, embora não memorável, e conta com a supervisão musical de Dave Jordan, intercalando hits como American Pie, Cheap Thrills, Smells Like Teen Spirit, Atshan Ya Zeina, entre outros. Os efeitos visuais de Rising Sun Pictures, Digital Domain, Scanline VFX, Cinesite, Trixter, Weta Digital, The Third Floor Inc., Industrial Light & Magic e Lola Visual Effects, supervisionados por Geoffrey Baumann (Pantera Negra), garantem o padrão Marvel de qualidade visual ao qual já estamos acostumados. Tudo isso dá uma escala grandiosa ao espetáculo, mas talvez o mais adequado à uma aventura-solo da heroína fosse um filme menor e mais contido, que explorasse mais profundamente os seus dilemas e levantasse a discussão sobre o uso da mulher como mercadoria pela sociedade, seja no meio do crime, da política, ou da espionagem. Ou entre outros meios, como na exploração na mídia, pois a questão do corpo feminino ser moldado e padronizado é algo historicamente crônico na nossa sociedade. Até porque só se incomoda com o questionamento disso quem, de forma direta ou indireta, se beneficia (ou acha que se beneficia) desse status quo…
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Capturada, Natasha é confrontada por Dreykov, que como todo vilão, revela o seu plano... |
Ao final, Viúva Negra, embora seja fortemente atrelado à “Fórmula Marvel”, tem seus méritos como filme-legado, mostrando a passagem de bastão de Natasha para Yelena, que deverá seguir ainda no MCU, como a cena pós-créditos deixa claro. Futuras participações da antiga espiã russa membro dos Vingadores, se ocorrerem, deverão ser como flashbacks e em histórias relacionadas a viagens no tempo ou em realidades alternativas, pois, tal qual Phil Coulson e Peggy Carter, Natasha Romanoff é uma página virada na história do Universo Cinematográfico Marvel.
Notas:
*1: A Feiticeira Escarlate e o velocista Mercúrio.
*2: Período entre 1947 a 1991 quando os E.U.A. e a U.R.S.S. disputavam a hegemonia político-ideológica e militar no mundo, polarizando o globo em dois grandes blocos alinhados ou ao capitalismo (OTAN) ou ao socialismo (Pacto de Varsóvia). Houve vários conflitos bélicos ocorrendo nos países periféricos, sendo cada lado apoiado por um desses blocos, visando aumentar a área de influência deles.
*3: A União Soviética dissolveu-se em 1992, o que é um dos muitos anacronismos do filme, pois, pela lógica, a célula espiã deveria ser então da nova Inteligência Russa (que até o momento não se sabe se continuou usando as mesmas redes e procedimentos da antiga KGB). Da mesma forma Dreikov, que devia ser general da KGB, por sua caracterização, remete aos mafiosos russos. O caricato Alexei Shostakov ter tatuado em seus dedos “Karl Marx” e o fato de se orgulhar das “assassinas que suas filhas se tornaram” passam uma mensagem do típico “comunista comedor de criancinhas”. O filme coloca tudo num mesmo pacote, confirmando aquela “ideia” de que a Rússia atual é uma grande “terra de ninguém”.
*4: Os eventos do filme se passam entre Capitão América: Guerra Civil (2016) e Vingadores: Guerra Infinita (2019).
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