quarta-feira, 1 de setembro de 2021

As engrenagens da calúnia - Crítica – Filmes: O Oficial e o Espião (2019)






Provas vs.“Convicção”

por Alexandre César 

(Originalmente publicado em 16/ 04/ 2020)


 Roman Polanski e a avó das "fake news" 

 

Um denso drama histórico e político.

Sendo um dos mais notórios casos de erro judicial da história, o “Caso Dreyfus” em que um capitão do 14ºRegimento de Artilharia do exército francês foi injustamente acusado de alta traição, julgado e condenado em 22 de dezembro de 1894, passando cerca de cinco anos na “Ilha do Diabo”, uma colônia penal na Guiana Francesa já rendeu boas obras cinematográficas*1, ora focados na figura de Émile Zola*2, célebre escritor e seu defensor nas páginas dos jornais (autor de J’Accuse, artigo de 1898 que dá nome aos responsáveis pela farsa), ora na figura do próprio Alfred Dreyfus, cuja luta para suportar a provação e manter a sua dignidade contra tudo e contra todos enfrentando o antisemitismo crônico da virada do século XIX/ XX (que tornaria a Europa um inferno décadas depois e que hoje resurge em várias nações.), e até mesmo em outras figuras públicas que o apoiaram a sua luta como o escritor Anatole France, o jornalista Bernard Lazare ou os políticos Aristide Braind e Georges Clemenceau, estadista da época (e futuro presidente da França em1906), entre outras na Europa e além*3 ainda hoje reflete a luta dos indivíduos face às engrenagens do poder, que quando erram, preferem usar de mais força ainda para abafar sua falhas, pois para ele, admitir falibilidade é algo fatal, sendo mais conveniente e fácil destruir reputações alheias do que expor os mandatários do poder.


O capitão Alfred Dreyfus (Louis Garrel) é conduzido ao pátio do quartel acusado injustamente de alta traição

 
Para se ter uma ideia, no final do século XIX a maioria dos jornais franceses estava inteiramente cooptada pela decisão da Justiça contra Dreyfus, sendo ela cúmplice com suas manchetes cobrando a condenação com penas duras e vergonhosas e ao final fizeram uma festa em tom cívico quando ele foi degradado perante à tropa, expulso do Exército e deportado. Coisa muito familiar aos últimos anos de certos países latino-americanos não?
 


A cerimônia de degradação é particularmente humilhante...

 
Dirigido por Roman Polanski (Baseado em Fatos Reais) O Oficial e o Espião (2019) mostra o polêmico diretor em grande forma de sua capacidade narrativa, inovando aqui ao optar por se focar não no mais célebre e central personagem do caso, mas sim num outro menos evidente, mas que revelou as falhas do processo, e por tabela a mecânica do sistema em criar e torcer narrativas, coisa muito atual nesses nossos tempos de fake news em que reputações e vidas são destruídas por argumentos tão vazios quanto um arquivo de Powerpoint feito de forma amadora.
 

O General Gonse (Hérve Pierre, de costas) convoca o Major Picquart (Jean Dujardin) para chefiar uma seção da inteligência militar

 
O roteiro, escrito por Polanski em parceria com Robert Harris (O Escritor Fantasma) baseado em seu livro An Oficer and a Spyse foca na figura do Major Marie-Georges Picquart (Jean Dujardin de O Artista ótimo numa performance contida) figura decisiva da trama, que havia sido professor de Alfred Dreyfus (Louis Garrel de Adoráveis Mulheres) na École Militaire e, inicialmente antisemita, é convocado pelo Gen. Gonse (Hérve Pierre de Momo) chefe do Serviço Secreto a assumir a “Seção de Estatísticas”, substituindo o Col. Sandherr (Eric Ruf de Maryline) que estava inválido em decorrência da sífilis, e, sendo neste processo promovido a Tenente-Coronel (na época o mais jovem do exército francês). Picquart herda além de Sandherr uma mala com $ 48.000 francos em fundos secretos (para oprações sigilosas e comprometedoras) e uma pasa com uma lista de 2.500 suspeitos de traição, a maioria estrangeiros, para serem presos em caso de guerra, evidenciando o clima da época quando a França havia perdido a região da Alsácia-Lorena para a Alemanha.
 


O Major Henry (Grégory Gadebois) esperava, antes de Picquart ser indicado a chefiar a "Seção de Estatística"

 
A “Seção de Estatística” tem o rude Major Henry*4 (Grégory Gadebois de Simon) como o 2º em comando, cujos oficiais analisam provas violando correspondência e colando cartas e bilhetes picados, de forma “intuitiva”, recuperando a correspondência do adido militar alemão Col. Schwartzkoppen, que tem caso com o adido militar italiano Major Panizzardi e logo, Picquart acaba esbarrando em evidências da inocência de Dreyfus ao analisar uma nova carta que a mesma agente do caso encontra, no mesmo escritório (do adido militar alemão) na qual o remetente promete entregar aos alemães mais segredos militares franceses, e cuja caligrafia é bem mais parecida com a da prova incriminatória do que a de Dreyfus, botando por terra a análise de Bertillon (Mathiew Amalric de Um Banho de Vida) o grafologista, que confundiu com a letra de Dreyfus, ficando evidente que o traidor estava à solta...



O real traidor: Charles Ferdinand Esterhazy (Laurent Natrella) que fazia aulas de artilharia sem ser da artilharia

 
Picquart toma a si as investigações e consegue relacionar a letra com a de outro oficial, o major Charles Ferdinand Esterhazy (Laurent Natrella de Os Olhos de Cabul), aventureiro de origem húngara com vultosas dívidas de jogo.Ao acompanhar as investigações do caso, Picquart trava um interessante diálogo com o investigador Jean Alfred Desvernine (Damien Bonnard de Dunkirk) num Museu, trocando instruções enquanto fingem admirar as estátuas:
- 'Apolo'. É grego?
- Não é uma cópia romana, o original está perdido.
- Quer dizer que é falso!
- Não, é uma cópia. É diferente.
Um diálogo banal, mas que reflete a essência da trama, onde a mentira se sobrepõe à verdade, a justiça torna-se injusta, a falsa traição esconde o verdadeiro traidor e a honra militar transforma-se em vergonha.
 

Momento Impressionismo: Picquart secretamente é amante de Pauline Monnier (Emmanuelle Seigner), casada com Phillippe (Luca Barbareschi)

 
Logo, ao mostrar não querer compactuar com a farsa e prestes a reabrir o caso, Picquart é transferido para a Tunísia. Porém, ele comunica suas suspeitas a seu advogado que, por sua vez, as revela aos políticos liberais e ao Senado mostrando a determinação das Forças Armadas em preservar sua "honra" minando o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei (conceito que incorpora a própria essência de qualquer governo republicano) iniciando uma campanha pela reabertura do caso, com um novo julgamento. Picquart vai preso e tem sua intimidade devassada por conta de seu relacionamento com Pauline Monnier (Emmanuelle Seigner de Baseado em Fatos Reais) sua amante casada e, o resto é história...
 

O tempo vai passando, mais devagar ainda para Dreyfus, apodrecendo na "Ilha do Diabo"


A música bem compassada de Alexandre Desplat (Ilha dos Cachorros) aliada à fotografia de Pawel Edelman (O Pianista) e à montagem de Hervé de Luze (Não Conte à Ninguém) criam ótimas cenas, como logo na cena de abertura, quando Dreyfus é exposto à vergonha pública e expulso das Forças Armadas, fica definido o processo de esmagamento a que será submetido ao longo do filme, mostrando em sua pulsante atuação, o timbre de sua voz (quase inaudível) defendendo aos gritos a sua inocência, abafada pelos gritos da turba à volta do pátio do quartel, a sua derrocada está traçada, num rumo de degradação física e psíquica, em sintonia com o clima gélido da solenidade de sua humilhação, num dia frio e escuro, refletindo o seu esmagamento pelos mecanismos da injustiça.
 

Bertillon (Mathiew Amalric) o grafologista que fez Picquart  perceber ter erroneamente ligado a caligrafia de Dreyfus à da correspondência suspeita


Como os cabeças da conspiração militar, o Gen. Mercier (Wladimir Yordanoff de Boomerang), o Gen. Pellieux (Laurent Stocker de A Casa de Veraneio), o Gen. Boisdeffre (Didier Sandre de Um Amor Impossível) e o Gen. Billot (Vincent Grass de No Portal da Eternidade) cada um defendendo seus pontos de vista reacionários de uma  “França livre da conspiração judia e de estrangeiros” e que não podem admitir que erraram (chegando ao cúmulo de liberar o verdadeiro culpado) para que o mundo não os veja como fracos, dialogando com o discurso atual da extrema-direita e seus líderes mesquinhos e paranóicos.
 

O advogado Labori (Melvil Poupaud) e Émle Zola (André Marcon) partidários de Dreyfus nos tribunais

 
Temos ainda do outro lado o advogado Leblois (Vincent Perez de Os Aeronautas), e em pequena participação Émile Zola (André Marcon de O Melhor Está Por Vir), Georges Clémenceau (Gérard Chaillou de Assassinato Em 4 Atos e que já viveu Clemenceu num telefilme de 2012) e Philippe Monnier (Luca Barbareschi de Dolceroma) marido de Pauline que aparece no início num pic-nic bucólico com os amigos, evocando as pinturas do impressionismo.
 

"Em Nome da Honra do Exército Francês": Alguns dos cabeças da farsa, os generais Billot (Vincent Grass) e Boisdeffre (Didier Sandre) & Cia. fizeram de tudo para ocultar a verdade

 
Visualmente o desenho de produção de Jean Rabasse (Ladrão de Sonhos) trabalha bem as referências históricas, criando espaços marcantes como o teatro decadente iluminado à lampiões, com suas dançarinas de Can-Can onde Picquart e Desvernine espiam Esterhazy com sua amante ou, a sede da “Seção de Estatística”, que fica num prédio mal-cuidado, próximo ao esgoto, com janelas que não abrem, sendo de pouca ventilação. Com seus tons escuros em tons de marron, verde, cinza, coisa que a direção de arte de Dominique Moisan (Anna: O Perigo Tem Nome) e a decoração de sets de Philippe Cord`homme (Gaças a Deus) ajudam muito a caracterizar onde esses personagens habitam e seus estados emocionais pois tal qual na “Seção”, este aspecto mofado se reflete no quarto do Col. Sandherr, que lembra o leito de um vampiro, contrastando com o apartamento de Picquart, austero, mas aconchegante, como quando recebe Pauline, sendo ela quem traz os momentos mais leves e descontraídos ao filme. Seigner, de forma sutil mesmo na meia idade ainda carrega a volúpia do olhar dos tempos de Lua de Fel (1992) sendo a sua participação um momento de respiro no clima tenso da película, sendo a sua presença valorizada pelos figurinos de Pascaline Chavanne (Rodin) que lhe dão um toque de figura dos quadros de Renoir.

Picquart acaba sendo preso e processado pelo exército, acusado de traição

 
Ao final, somente em 1906, quando Clemenceau, um dos defensores de Dreyfus, assumiu a presidência da França, e em 12 de julho desse ano, a Corte de Cassação anulou o julgamento de Rennes, reabilitando o capitão Dreyfus, e reintegrando-o ao exército como major e condecorando-o com a Legião de Honra, embora tenha sofrido um atentado de que escapou em 1908.
 

Picquart vai a julgamento, sendo posteriormente absolvido...
 
 
Paralelamente, Picquart era nomeado ministro da Guerra, Dreyfus se ressentia de não ter sido levado emconta o seu tempo de 8 anos preso injustamente para conceder-lhe a promoção para a patente de major (embora os 8 anos que Picquart ficou fora do exército foram considerados como se tivessem sido passados na ativa, dando-lhe a patente e general...) pois se lhe fosse dado um tratamento justo ele já seria tenente-coronel, coisa que foi inviabilizado porque havia muitos inimigos*5 de sua absolvição no exército e nos meios políticos para se corrigir este erro e assim ele seguiu, tendo participado da Primeira Guerra Mundial, vindo a morrer em 1935, dois anos depois de Adolf Hitler tornar-se chanceler alemão.
 
 
Ao final apesar de sua ligação com Pauline vir à público, Picquart e ela conseguem um arranjo satisfatório
 
 
Recordando a célebre frase de Mark Twain: “Mais difícil do que enganar uma pessoa é convencê-la de que ela foi enganada!” O Oficial e o Espião reflete sobre o “cair a ficha”de consciência e a nossa capacidade de reformular julgamentos face à fatos palpáveis, ficando claro porém, que nem todos são capazes disso, principalmente quando interesses institucionais pela manutenção do status quo se impõem, como quando os meios de comunicação clamam que o “combate à corrupção” não deve ser submetido ao contraditório, a discordância, ou mesmo a uma simples crítica, exigindo adesão absoluta, com práticas questionáveis como abusos contra prisioneiros submetidos a prisões preventivas, com o óbvio objetivo de produzir delações.
 
 
Ao final de uma longa batalha Dreyfus foi inocentado e reintegrado ao exército, mas ainda sim a sua ascenção hierárquica foi prejudicada

 
Tal como na Berlim da década de 1920, de O Ovo da Serpente (1977) de Ingmar Bergman, a “cadela do fascismo” está à solta, num cio desvairado, cabendo a nós lidar com ela...


O artigo "J´Accuse..." ("Eu Acuso!") da autoria de Émile Zola até hoje é citado nas aulas de direito processual  como um dos grandes libelos pelas liberdades individuais

 
Notas:
 
*1: Dreyfus, de Richard Oswald (Alemanha, 1930); The Dreyfus Case, de F.W. Kraemer e Milton Rosmer (Reino Unido, 1931); The Life of Emile Zola, de William Dieterle (EUA, 1937); I Accuse!, de José Ferrer (EUA/Reino Unido, 1958); Dreyfus ou lIntolérable Vérité, de Jean Chérasse (França, 1975) além das séries e telefilmes Affäre Dreyfus, de Hanns Farenburg (Alemanha Ocidental, 1959); Affäre Dreyfuss,série de TV (Alemanha Ocidental, 1968); Prisoner of Honor, de Ken Russell (EUA/Reino Unido, 1991); Rage and Outrage: The Dreyfus Affair, de Raoul Sangla (Canadá/França/Reino Unido, 1994); L’Affaire Dreyfus, de Yves Boisset (França/Alemanha, 1995) além de vários curta-metragens.
 
*2: Hoje celebrado em coquetéis de fim de curso de jornalismo, Zola na ocasião foi perseguido, processado e condenado à prisão, sendoque sua morte em 1902 por asfixia até hoje permanece não esclarecida.
 
*3: Dentre as vozes que se levantaram em defesa de Dreyfus encontrava-se a do brilhante advogado e escritor brasileiro Rui Barbosa, que vivendo, à época, na Inglaterra, onde se auto-exilara após seu rompimento com o governo do Marechal Floriano Peixoto, Rui Barbosa escreveu um inflamado artigo denunciando os fatos que envolveram o oficial judeu. Datado de 7 de janeiro de 1895, dois dias antes da degradação do capitão francês, foi publicado no Brasil, no Jornal do Comércio, no mês seguinte.
 
*4: Joseph Henry, que ficara à frente à Seção após o afastamento de Picquart, e falsificou documentos cerca de um ano antes com o objetivo de ligar Dreyfus aos alemães, só que o novo ministro da Guerra, Godefroy Cavaignac desconhecia o andamento do reexame dos autos que ele próprio pedira, no intuito de liquidar de vez o Caso Dreyfus, mas o seu ajudante-de-ordens, o capitão Louis Cuignet, após estudar atentamente o documento, concluíra que era grosseiramente forjado e assim, Cavaignac não teve outra alternativa e no dia 30 de agosto de 1898, convocou Henry ao seu gabinete, que “encostado na parede”, confessou a fraude e na noite de 31 cortou a garganta com uma navalha, suicidando-se. Três dias depois, Lucie Dreyfus voltava a exigir a revisão do processo de seu marido.
 
*5: Em 1985, o presidente François Mitterrand ofereceu uma estátua de Dreyfus à Escola Militar. O Exército recusou-se a exibi-la e, hoje, está exposta nos Jardins das Tulherias. Somente em 1995, mais de um século após a deportação do capitão para a Ilha do Diabo, sua inocência foi reconhecida pelas Forças Armadas depois que um historiador oficial do Exército provocou um escândalo ao questionar publicamente a injustiça humana e histórica cometida.
 

O "Caso Dreyfus" permanece como um dos maiores exemplos de "-Não tenho provas mas tenho convicção" da história

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