De como a moda passageira dos filmes de Kung Fu criou um marco longevo nos quadrinhos
E a Marvel nos surpreende de novo com a produção de mais um filme que os leitores e fãs das antigas acreditavam que só existiria nos reinos de suas imaginações. Estreia no dia 02 de setembro o primeiro filme do Universo Cinematográfico Marvel (UCM) protagonizado por um personagem asiático: Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis.
É óbvio o motivo do investimento da Disney, atual detentora da Editora Marvel e seus personagens. O mercado chinês é o o mais rentável atualmente para as produções de Hollywood. Isso já era verdade há algum tempo, com o público de boa parte do mundo deixando de ir ao cinema para ver filmes na comodidade de casa, devido ao crescimento dos serviços de streaming - tanto na quantidade de opções de operadoras como no número de filmes lançados por mês. Mas a tendência piorou com a chegada da pandemia de Covid-19. Depois do longo período de quarentena em boa parte do mundo, a China foi um dos primeiros países a abrir suas salas de cinema. Seu imenso público estava ávido por entretenimento. E que forma melhor da Disney cativar esse público do que oferecer um filme dentro do UCM protagonizado por um personagem nativo daquele país e levando em conta, com respeito, a sua cultura? A Marvel tinha um grande personagem para esse papel: Shang-Chi. Só que ele tinha alguns problemas que precisavam ser contornados. Falamos sobre isso na nossa crítica do filme, que você pode ver aqui. Neste texto vamos responder a uma pergunta: quem é esse personagem, antigamente conhecido como o Mestre do Kung Fu, que é desconhecido da grande maioria dos que irão assistir seu primeiro filme?
Bom, não me encaixo na maioria do público. Mas, mesmo entre os fãs das antigas, eu faço parte de uma minoria ainda maior: aqueles que leram suas histórias na época em que foram lançadas pela primeira vez no Brasil, pela lendária Editora Brasil-América Ltda. (EBAL).
Estávamos em 1974, quando os filmes de artes marciais estavam no ápice do sucesso. Bruce Lee, seu grande divulgador, havia morrido no ano anterior, após o lançamento daquele que seria seu maior filme: Operação Dragão, de Robert Clouse. Com isso, aquele que levou a fama de maior lutador de todos os tempos seguiu os mesmos passos de James Dean e tornou-se um mito - talvez maior do que ele poderia ter sido se continuasse vivo e fazendo mais filmes. Nunca saberemos.
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Bruce Lee: a lenda. Shang-Chi teve suas feições em boa parte das suas HQs |
A série foi um grande sucesso por todo o mundo, inclusive no Brasil. Querendo navegar naquela onda, surgiu na Marvel a ideia de fazer uma adaptação do programa para os quadrinhos. Só que o seriado era produzido pela Warner, empresa que também era dona da maior concorrente da Marvel: a DC Comics. Claro que não houve negócio. A Marvel então buscou um caminho alternativo: negociou os diretos de adaptação de parte significativa da obra literária de Sax Rohmer, um escritor inglês de grande sucesso nos anos 20. O interesse da Marvel estava nos livros de Rohmer em que o vilão era Fu Manchu, o gênio chinês do crime e da intriga. Líder de uma lendária seita que o viam como uma encarnação divina, Fu Manchu queria dominar o mundo. Era o protótipo do cientista louco, do inimigo número um, do próprio mal encarnado. O personagem já havia protagonizado diversos filmes, seriados, programas de rádio e até quadrinhos - aliás, a citada DC Comics já criara HQs com o vilão na Era de Ouro do gênero. Ele era o personagem que estampou a capa da edição número 1 da revista Dectetive Comics - a publicação que mais tarde daria nome a editora (dela vem as iniciais DC) e onde surgiria pela primeira vez, em sua edição 27, um certo morcego de Gotham City.
Na proposta pra as histórias da Marvel, seria utilizado todo o background e personagens do universo literário de Fu Manchu, mas o protagonista seria um personagem inédito: o filho do vilão, que havia sido criado para ser seu sucessor, mas se volta contra o pai, não concordando com seus propósitos maléficos e tornando-se seu maior inimigo. Era o jovem Shang-Chi, um artista marcial completo, versado não só em diversos tipos de luta usando apenas seu corpo, como também com o manejo de variadas armas: nunchakus, espadas, bastões Kali, shurikiens...
O personagem surgiu em Dezembro de 1973 na edição 15 da Special Marvel Edition, uma revista que então era usada para republicar material antigo da editora. Com roteiros de Steve Englehart e desenhos de Jim Starlin, a proposta deu tão certo que, duas edições depois, a revista mudou o nome para The Hands of Shang-Chi: Master of Kung Fu. Com o sucesso, a editora decidiu investir ainda mais e lançou uma outra revista: Deadly Hands of Kung Fu. A revista se encaixava no projeto da editora de publicações em formato maior, com páginas em preto e branco, focado em um público mais velho que buscavam revistas que não se encaixavam no rígido Código de Ética dos quadrinhos que controlava o que era lançado no mercado desde os anos 50. Seu título mais consagrado nesse formato e que durou mais tempo é a lendária Espada Selvagem de Conan. O formato da revista e suas páginas em preto em branco, não se encaixavam no conceito de gibis estabelecido pelo Código, por isso não era regido por ele. Além de quadrinhos, a revista tinha matérias sobre artes marciais, aulas para iniciantes na prática delas e críticas sobre filmes com este tema lançados no período. E seus quadrinhos não eram restritos as aventuras de Shang-Chi: a revista serviu também de tubo de ensaio para o lançamento de histórias de outros heróis praticantes de artes marciais: os Filhos do Tigre, Tigre Branco, as Filhas do Dragão e o Punho de Ferro - este último já adaptado para um seriado pela Netflix.
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Kung Fu, da EBAL |
Naquela época meu pai comprava quase tudo de quadrinhos que saia nas bancas e me surpreendi com um gibi naquele formato de revistas de notícias, como as semanais Isto É e a Veja. Até chamada para as matérias na capa a revista tinha - entre elas, claro, havia uma biografia de Bruce Lee. Eu me entusiasmei ao ver um negro na equipe de protagonistas de Os Filhos do Tigre, uma criação de Gerry Conway e Dick Giordano. Personagens negros em destaque nos quadrinhos era raro naquela época (ainda hoje não é um elemento comum). Mas foi a HQ de Shang-Chi que mais gostei. Hoje podemos dizer que o personagem sempre foi bem genérico - uma mistura do que se via nos filmes de Kung Fu e filosofia oriental de botequim, com ele falando máximas que encontramos em biscoitos da sorte. Seus criadores eram norte-americanos que estavam criando um produto sem conhecimento profundo da cultura em que se baseia, usando o pouco do que tinham ouvido falar apenas para aproveitar a onda do momento. Ainda assim aquilo me encantou, talvez por ser algo novo e cativante para um garoto de sete anos. Além disso, a arte de Starlin era dinâmica, demonstrando seu grande conhecimento de narrativa e diagramação que, associados a seus roteiros elaborados e psicodélicos, o tornariam um mestre das HQs.
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Arte de Jim Starlin |
As histórias de Shang-Chi, porém, não foram muito longe na revista. Poucos meses após seu lançamento, a EBAL perdeu os diretos dos personagens da Marvel para a Bloch Editores. Mas, como a revista era um sucesso, a editora incumbiu seu cast de artistas de preencher as páginas da revista com algum herói do gênero. Em dois tempos eles fizeram um personagem que seguia a falta de pudor da revista, um chinês chamado apenas de Kung Fu - sim, esse o seu nome de batismo - que era a cara do David Carradine, o ator que protagonizava o seriado Kung Fu, e tinha a personalidade de Shang-Chi, emulando até suas roupas. Mas aquele herói que chamou minha atenção em apenas duas ou três histórias não ia passar muito tempo longe das bancas. No ano seguinte a Bloch o traria de volta, desta vez em sua própria revista.
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Mestre do Kung Fu, da Bloch |
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Arte de Paul Gulacy |
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A Espada Selvagem de Conan: A publicação não sujeita ao Comics Code de maior destaque da Marvel |
O longo período da dupla criativa no título culmina com a aparente morte de Fu Manchu na edição 50 da revista. Tudo isso foi publicado pela Editora Bloch, com suas cores equivocadas, suas traduções excessivamente reducionistas do material original.
Paul Gulacy deixa a revista após a aparente morte de Fu Manchu, mas Moench prossegue nos roteiros acompanhado de outros ilustradores - alguns ótimos, como Gene Day. Em sua reta final, Mike Zeck consegue impor seu próprio estilo de ilustração no título. Mas algo importante se perdeu quando a principal dupla criativa do título se desfez. Como ocorre com aqueles seriados que prosseguem, mesmo quando a história que tinham para contar já se concluiu. A revista ainda teve uma longa sobrevida até a edição 125. Moench esteve presente nos roteiros até quase o final - a última edição escrita por ele foi a 122. Talvez, se tivesse sido dado espaço mais cedo para outro escritor criativo, com novas ideias e uma proposta diferente, a revista pudesse ter sido sucesso por mais tempo.
Pelo que se vê no trailer do filme que estreia agora, visualmente ele será calcado nas versões mais recentes do personagem. Sua revista foi cancelada, mas o personagem continuou a existir no Universo Marvel, passando a interagir cada vez mais com os super-heróis da editora - até porque agora ele quase sempre só dá as caras como convidado. Está muito diferente atuamente - até passou a ter superpoderes. Mas ainda vejo algo da essência do personagem no trailer. O seu pai não se chama mais Fu Manchu, mas a complexa relação entre eles permanece. Seu pai ainda é um líder criminoso e Shang-Chi renega seu destino de sucedê-lo e vai em busca de si mesmo no Ocidente. Torço para que, mais uma vez, a Marvel consiga fazer diferente sem renegar as raízes da sua obra original. Estarei lá para conferir. E, claro, se me agradar como fez no passado, pode ter certeza que, como8 fiz nos quadrinhos, verei o fime mais de uma vez.
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