sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Final prematuro - Crítica - Séries: GLOW 3ª Temporada

 

Aguentar o tranco, sem descuidar do baton...

 

por Alexandre César 

(Originalmente postado em 29/ 08/ 2019)


Explorando seus personagens a série continua relevante

 


Um neon na entrada do cassino "Fan-tan". De 3 meses, foram a um ano de apresentações

“Quando eu tinha 14 anos, tive a ideia de que a única coisa que as pessoas vão notar em mim é o meu corpo, então acho que é melhor ser perfeito”, diz Debbie Eagan (Betty Gilpin, uma verdadeira ”leoura”, merecidamente indicada ao Emmy) para Ruth Wilder (Alison Brie a própria ”complicada e perfeitinha”), assim que a amiga nota que a Liberty Bell estava pulando algumas refeições. Elas conversam, e logo depois comem hambúrgueres, dando risadas enquanto falam sobre a vida, e o quanto ela apresenta diferenças para homens e mulheres, e pouco depois, Debbie vai ao banheiro e vomita tudo, limpando o rosto para que ninguém perceba.


Azar: Na TV comentando o vôo da Challenger, "Liberty Belle" (Beth Gilpin) e "Zoya, The Destroyer" (Allison Brie) que diz: "- Os capitalistas tinham que se explodir!!!" e eles se explodem mesmo...


Com esta cena emblemática (uma das mais entre várias...) vemos que a terceira temporada de GLOW, se empenhará em desafiar o espectador a entender o quão difícil é compreender a relação traumática e muitíssimas vezes complicada da mulher com seu corpo. O “conhece a ti mesmo” (ou melhor ainda o “aceita, e ama a ti mesmo”) pode soar artificial, em vista do tipo de humor característico da série, mas como tudo soa de forma tão natural, entendemos logo de cara a situação, e entendemos porque as “belas mulheres da luta-livre” tornaram-se definitivamente uma jóia rara do catálogo da Netflix!!! A nova temporada conseguiu elevar o tom, revirar a sua dinâmica ao transportar as histórias para Las Vegas, seguindo novos caminhos, aprofundando a sua história e desbravando temas difíceis com bom humor, e ainda que isso se distancie de sua proposta original, – isto foi feito de forma interessante e necessária ao mostrar que as maiores lutas não estão dentro do ringue, mas fora dele!


O vasto grupo, que cresce e aparece...

Se no início, a série trazia um grupo de mulheres desgarradas que acabaram caindo em um processo de audição para um programa de luta-livre, tal premissa foi suficiente para render uma construção envolvente deste grupo de personagens, fornecendo espaços produtivos para explorar suas diferentes personalidades, agora, após ter o programa cancelado, a equipe do “GLOW” se mudou para Las Vegas, para apresentar o show semanalmente para uma plateia ao vivo (o que logo de cara já elimina as tramas e piadas envolvendo linhas narrativas para as lutas) tornando cada episódio em si uma nova aventura. Estando a série mais do que satisfeita com a sua exploração do universo da luta-livre, e embora ainda retenha parte das características da década em evidência para alguns de seus dramas, o grande foco desta temporada está totalmente voltado para as evoluções das personagens neste novo ambiente, “largando” o programa meio de lado (afinal, passamos duas temporadas vendo exaustivamente as lutas...) ficando o foco mais nas personas que vestem as fantasias e encarnam os mais loucos personagens, e o que eles revelam delas... Apesar de um começo irregular, a terceira temporada ainda traz desenvolvimentos interessantes para suas personagens.
 


Debbie Eagan, lutando para ser mãe, mulher, produtora e ser enxergada como mais do que apenas mais uma loura gostosona

 
Debbie, que tem uma carreira “consolidada”, está contando os dias para que esta temporada em Vegas termine logo, para poder retornar a Los Angeles e ficar com seu bebê, pois está perdendo os momentos do filho por causa do trabalho. Entendemos que não importa se Debbie é bulímica ou não, mas sim o quanto isso é devido a pressão a que ela se coloca, procurando sempre ser enxergada, só que agora de forma centrada. Sendo frágil e feroz, ela é uma produtora sem voz na construção do programa, e por isto quer ser vista e ouvida, e principalmente respeitada apesar do mundo à sua volta não colaborar um minuto sequer.
 


Ruth Wilder, a "perdedora" que luta, se doa e até agora não deixou a sua marca


Já Ruth, que sempre deu o máximo de si para tentar gerar uma produção de que pudesse se orgulhar, se dá conta de que realmente não sabe o que quer, pois tem agora um trabalho e um namorado, sendo amada e com pessoas ao seu redor mas, o sentimento de vazio permanece, para a sua surpresa. Provavelmente, por sentir que ela ainda não deixou a sua marca (face às circunstâncias que não a favoreceram), o que a incomoda profundamente, e por conta disso, mais para o fim da temporada, ao perder uma oportunidade para um papel, ela sente como se estivesse sempre fadada ao fracasso.
 


Sandy Deveraux St. Clair (Geena Davis) representa os velhos tempos de glamour dos cassinos de Las Vegas

 
Mas, o que ambas não percebem é que ambas estão vivendo seus momentos. Apesar de GLOW não ser o programa nem a carreira ideal, é através dele que ambas estão crescendo e amadurecendo, buscando seu lugar na sociedade, lidando a sua contribuição para que a mulher seja respeitada, mesmo que de uma forma menos convencional.


Os Produtores Bash Howard (Chris Lowell), Sam Sylvia (Marc Maron) e Bettie Eagan, a "invisível"


Por causa da repetição constante, praticamente noite após noite, as personagens passam a sentir uma certa estagnação nesta nova fase, pois o show vai entrando no “piloto-automático” (coisa inevitável neste caso) passando esta ideia ao espectador durante alguns dos primeiros episódios, apesar de mostrar a capacidade do grupo de lidar com o inesperado e o incômodo, como no primeiro episódio quando acontece o acidente com o ônibus espacial Challenger ( que explodiu em 1986) e o show da noite tinha justamente a viagem deste e o espaço como tema!!!
 


A atmosfera de Vegas leva algumas integrantes a uma rotina desregrada de noitadas, coisa que Melanie Rosen (Jackie Tohn de rosa) curte muito, arrumando um "namorado" de aluguel

 
Por conta desse repetir o show no automático, Sam Sylvia (Marc Maron, o melhor dublê de Stan Lee no qual a Marvel ainda não reparou...), o diretor que liderava muitos dos esforços para fazer o espetáculo acontecer nos dois primeiros anos, acaba ficando de lado, sem muito o que fazer neste novo cenário (e ainda assim com dificuldades para retomar suas ambições criativas). Neste processo, Sylvia deixou um pouco o lado canastrão e dando a oportunidade de desbravar uma nova trama bem distante com sua filha Justine Biagi (Brit Baron). Embora, no final, esteja interpretando ele mesmo, isto não importa, pois seus momentos são essenciais para que a narrativa continue fluindo, bem como seus desdobramentos no relacionamento com Ruth, a vida e seu lugar no mundo.
 


O casal Cherry e Keith Bang (Sydelle Noel e Bashir Salah): O dilema entre ter um filho ou ele adiar seus planos de vida

 
Embora a empreitada de luta-livre esteja passando por esta estagnação, os conflitos anteriores ainda permanecem sem solução, e a série dedica boa parte do tempo desenvolvendo estas tramas pessoais. Bash Howard (Chris Lowell) e Rhonda Richardson (Kate Nesh) se casaram, para ela conseguir o greencard e parecem estar felizes um com outro apesar do dilema de Bash com sua sexualidade (mas ele se esforça muuito...), coisa similar com o casal Yolanda Rivas (Shakira Barr) / Arthie Prenk (Sunita Mani) ainda não perfeitamente confortável em sua relação, e continuando o debate sobre o corpo feminino, a série ainda aborda o fato da mulher necessariamente não querer ter filhos, devido as transformações e impactos que isso pode causar nos seus planos de vida – como o caso de Cherry Bang (Sydelle Noel) para a tristeza de seu marido Keith Bang (Bashir Salah). Ou o fato de não se acharem sexy devido a etnia, como Arthie, que junto com Bash serviram para o texto explorar a dúvida em relação a sexualidade, culminando no episódio 09 em uma cena interessante, que mostra isso tanto pelo viés masculino quanto pelo feminino (bem alternadas pela edição de Tyler L. Cook) dando um destaque maior para estes personagens, com cenas beem mais picantes.
 


O acampamento no deserto ajudou as garotas a acertarem algumas diferenças e tornarem-se um grupo mais coeso


O grande mérito desta temporada foi dar vozes para personagens que estiveram extremamente apagadas nas temporadas anteriores, dando grande variedade de perspectivas e representações de diversidade. Utilizando um pouco do esquema de Orange Is The New Black (outra série que também com Jenji Kohan nos créditos), em que cada episódio dá um certo foco para algum nome, a série explorando as suas histórias, sem que os capítulos fossem focados, exclusivamente, em uma personagem mas nos fazendo perceber em determinados momentos, que a principal história era de uma ou de outra personagem, não deixando que nenhuma delas acabe caindo em construções previsíveis, nos dando a oportunidade de vermos atrizes que não se encaixam no padrão hollywoodiano, entregarem performances impactantes, o que continua sendo um mérito válido nesta terceira temporada, ainda que mais esporádico e isolado do que na anterior.
 

Troca de papéis: Debbie como Zoya e Ruth como Liberty Belle, com Sam Sylvia como juiz


Gradativamente conflitos anteriores vão sendo reintroduzidos e assentando o grupo nesta nova realidade de Vegas, apresentando novos personagens como Bobby Barnes (Kevin Cahoon) a Drag Queen e Sandy Devereaux St. Clair (Geena Davis) a administradora do Cassino Fan-Tan para dar uma revigorada neste universo narrativo, decolando a partir do quinto episódio quando a série deixa e lado a frustração desse estado engessado, e tal qual as suas personagens, retornam às brincadeiras com o formato da luta-livre, quando as lutadoras resolvem trocar os papéis entre si, num dos episódios mais divertido da temporada. É curioso ver Debbie como Zoya, the Destroya (até porque, como ela é maior, a roupa fica bem mais justa...) e Ruth como Liberty Belle, numa outra interpretação do conceito, além de outros que vão sendo criados por fatores outros, com resultados inesperados como Sheila (Gayle Rankin) que abandona a faceta de lobo e, mais bem-resolvida consigo mesma, redefinir-se como atriz e como mulher.
 

O casal Yolanda Rivas (Shakira Barr) / Arthie Prenk (Sunita Mani): As incertezas de aceitar a própria identidade

 
O sexto episódio, em que elas saem para acampar no deserto, foi um divisor de águas quando depois dessa muito bem-vinda reanimação, confrontam-se vários dos problemas que já permeavam as histórias das personagens desde o começo (num episódio maior duração). Sendo um dos mais importantes até então, e as questões sobre estereótipos ofensivos são escancaradas a ponto de poderem ficar para trás, com vários diálogos que entregam muitas das resoluções que vinham sendo adiadas. Jenny Chey (Ellen Wong) conta de forma emocionada como veio fugindo do Camboja para os Estados Unidos, e os problemas de imigração que sempre existiram, como as práticas desumanas para burlar o bloqueio no território norte-americano a que muitas pessoas ainda são submetidas; Melanie Rosen (Jackie Tohn) fala de sua herança judaica; Tammé Dawson (Kia Stevens) a “Rainha da Previdência” que sofre de dores atrozes ns costas, mas aguenta tudo até o fim com o estoicismo dos sobreviventes natos e, apesar disso tudo, as menos definidas continuam sendo Regie Walsh (Marianna Palka), a “viking” sarada grandona do grupo e a dupla Stacey Beswick (Kimmy Gatewood) e Dawn Rivecca (Rebekka Johnson), as “velhas”.
 

Plumas e Paetês: Boby Barnes (Kevin Cahoon) e Sandy Deveraux St. Clair revivem os tempos do glamour no espetáculo do Cassino Rhapsody para angariar fundos e auxílio aos aidéticos
 
 
O penúltimo episódio é um dos melhores, mais contundentes e tristes da série, dando bom destaque a Bobby Barnes, que mostra o seu show Drag e Sandy Devereaux St. Clair revive os seus tempos de glória passada como vedete dos cassinos, cheia de plumas e paetês (destacamos aqui os figurinos Beth Morgan e o trabalho de Hair stylist de Mishell Chandler e Valerie Jackson). Aqui, um baile no cassino Rhapsody é dado para que fundos direcionado ao combate a AIDS sejam recolhidos. numa boa e precisa exploração do mundo gay, mostrando que na década de 1980 a homofobia era um comportamento soberano presente em qualquer esquina e, sabiamente a série mostra o preconceito como algo sem rosto, assumindo uma onipresença, no construto social, ao vermos que o ódio aliado às agressões sempre existiu e possivelmente, sempre existirá, nos levando a questionar sobre a sociedade, e o respeito ao próximo que ela deveria estimular, coisa muito pertinente ao momento atual, quando o comportamento fascista vai sendo relativizado por todo lado...
 

O show no Rhapsody mostra a intolerância sistêmica da sociedade à comunidade LGBT


Mas para respiro geral após momentos tão tristes, temos a incrível apresentação final, quando o grupo decide acatar a ideia da giganta (e o coração do grupo) Carmen Wade (Britney Young) de adaptar “Um Conto de Natal” de Charles Dickens na dinâmica do show, com Ruth como Ebenezer Scrooge, e todo grupo como os outros personagens do clássico, num ótimo uso da luz e sombras, graças a fotografia Chris Teague, que valoriza a recriação do espaço do palco/ ringue mostrando a competência do Desenho de Produção de Todd Fjelsted, da direção de arte Harry E.Otto e da decoração de sets de Cynthia Anne Slagter em resgatar as raízes teatrais da narrativa, e da própria luta-livre... e ao encerrar a temporada, apesar de toda a maré contrária, Debbie vai tomando cada vez mais controle de sua situação, e graças a uma “vacilada” de J.J. “Tex” McCready (Toby Huss) seu namorado investidor que inadvertidamente acaba lhe mostrando uma possibilidade de negócio, ela a agarra, convencendo Bash a segui-la, garantindo o futuro do programa numa reviravolta, resultando num grande gancho para uma possível quarta temporada, onde ela precisará “reunir a turma de novo”, apesar da aparente ruptura com Ruth, o que ao final nos dá um dialogo, definidor das duas amigas:
 

Rhonda Richardson (Kate Nesh) casou-se com Bash Howard para conseguir o "geencard", e ele se dedicou (MUITO!!!) apesar de suas reais inclinações, tornando-se um casal atípico

Ruth:  “- Eu não quero uma saída! Eu ainda nem consegui uma entrada!”
Debbie“- Eu não te entendo!”
Ruth: “- Entende sim. Você é a que mais me entende!!!” 
Segurança e estabilidade versus o aventurar-se em busca de sua própria verdade e lugar no mundo... Ying & Yang, Ruth & Debbie. Humano & Humano... GLOW
 
E que venha a próxima temporada!!!
 
 
A versão de "Um Conto de Natal" é um genial "qualquer-coisa" e mostra a criatividade da equipe

 

 

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