quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Construída sobre uma base sólida? - Primeiras impressões: Fundação (Apple TV)

 

 

O desafio de uma construção


por Alexandre César
(Colaboração de Carlos Vinicius Marins)


Ambiciosa série da Apple TV promete
 

O psico-historiador Hari Seldon (Jared Harris) prevê a ruína do Império Galático

 
Sendo considerada a melhor série literária de fantasia e ficção científica de todos os tempos - desbancando pesos-pesados como O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien, ou As Crônicas de Nárnia, de C.S. Lewis, ou Duna, de Frank Herbert -, a saga original de Fundação, de Isaac Asimov*1, se compõe de três livros compila histórias publicadas uma revista de que contos e novelas de ficção científica com histórias originais *2 a partir de 1942 e foram concluídas em 1953. A saga influenciou inúmeras obras posteriores do imaginário pop, em várias mídias: quadrinhos, cinema, séries, animes, games. Se você fala de impérios galáticos e civilizações que abarcam milhares de mundos, seja com o nome de Império, Federação, Aliança, etc... você está dialogando, mesmo que não saiba (e muitos não sabem..) com Fundação.
 
Fundação, a série literária, se passa milhares de anos no futuro, quando a humanidade se espalhou por milhões de planetas em toda a galáxia, já sem terem mais a certeza de qual foi ou onde fica o planeta de onde ela se originou. Todos são governados há mais de 12 mil anos pelo Império Galáctico, que está prestes a sucumbir por sua grandeza e estagnação. Um cientista, Hari Seldon, além descer o primeiro a perceber esse fato, descobre que, quando isto acontecer a barbárie tomará conta da humanidade e que ela só se ergueria para formar um novo Império 30 mil anos depois. Com seus estudos, ele percebe que a barbárie seria inevitável, mas seu período de duração poesia ser reduzido. Pretendendo que este tempo dure apenas mil anos, ele elabora um plano que consiste em criar duas fundações, cada uma em um extremo da galáxia, que, com a desculpa de que iriam compilar e guardar todo o conhecimento humano em uma Enciclopédia Galática, estariam, na verdade, iniciando a formação de um novo império enquanto o original ruísse lentamente. Nestes três livros a saga atravessa um período de quase 400 anos e mostra, na maior parte do tempo, as ações perpetradas por membros de uma dessas Fundações, intitulada “Primeira Fundação”.
 

A direção de arte da série faz um mix de antiguidade clássica com o Sci-Fi


É claro que você pode não concordar que esta seja a melhor série de Fantasia & FC, mas foi ela que ganhou do mais conceituado prêmio do gênero, o Hugo*3, o título de “a melhor de todos os tempos”, na única ocasião em que este prêmio foi concedido, em 1966.

Há muitas razões para tal sucesso de crítica e de público: o fato de ser, provavelmente, a melhor tradução das Space Operas – gênero da Ficção Científica povoado de batalhas espaciais e cujas ações correm num amplo campo de ação, tanto no espaço, quanto no tempo; a semelhança com a queda do Império Romano, que culminou com o fim da Antiguidade e o conturbado período de ocupações bárbaras na Europa, chamado de Alta Idade Média; a ideia de Destino Manifesto assumida pelos membros da Fundação, segundo a qual um determinado povo acredita ter o direito divino de expandir seu alcance e comandar todos os povos; enfim, são paralelos que há entre diversos momentos da saga e passagens históricas reais.
 

O Triunvirato, composto por três versões (com faixas etárias diversas) do mesmo indivíduo: Irmão Alvorecer (Cassian Bilton), Irmão Dia (Lee Pace) e Irmão Crepúsculo (Terrence Mann), além da fiel preceptora Demerzel (Laura Birn)
 


Outra razão seria a cuidadosa construção de arquétipos de liderança que Asimov estabelece com seus personagens centrais. Além do próprio Hari Seldon, temos o prefeito Salvor Hardin (prefeita na série) e o príncipe mercador Hober Mallow. Personagens que parecem maiores que a vida, com personalidades distintas, mas capazes de tudo para garantir que a humanidade não se desvie do caminho que impeça a ruína da civilização. Dentre estes, porém, não há dúvida de que o Mulo é o personagem de maior destaque. Mas este surge só na metade do segundo livro, já com mais de 300 anos de histórias contadas, quando domina todas as atenções desde então. Falaremos muito dele nas próximas temporadas. 
 
 
Gaal Dornick (Lou Llobell) é convocada para ser assistente de Hari Seldon

 
 
O principal desafio de Fundação, a série que estreou no dia 24 de setembro na Apple TV, é o fato de sua matriz ser uma saga em que, apesar de ter bons e marcantes personagens, é a história, o contexto, que realmente importa. Por melhor que sejam, os personagens são transitórios em uma saga que é contada ao longo de mil anos. E traduzir isso de forma atraente para o audiovisual é complicado, pois a maioria das séries tende a valorizar o peso do indivíduo, para "pescar" o espectador pela identificação pessoal. Isto acontece muito também na política, onde o carisma dos candidatos se torna mais importante do que os seus programas de governo... 

No projeto de David S. Goyer (trilogia Batman, de Christopher Nolan), o seriado terá 80 horas, distribuídas em oito temporadas. “Ninguém sabe se vai funcionar, mas posso dizer que definitivamente nunca houve um programa como esse na TV antes”, concluiu numa entrevista o produtor e roteirista. 
 
Como ele confirma: “A história deve se estender por 1.000 anos, com enormes saltos no tempo – isso é difícil de contar. Os livros são meio que antologias. Você terá alguns contos no primeiro livro com o personagem principal Salvor Hardin, então você pulará cem anos adiante e haverá um personagem diferente”.
 
Trantor capital do Império, foi a fonte de inspiração para Coruscant de Star Wars

 
O primeiro episódio é impecável, tendo boas sacadas em como traduzir visualmente o mote central da trama, além de introduzir outros conceitos, inclusive alguns que o próprio Asimov só anexaria à trama em livros escritos décadas depois, quando ele retoma a saga por insistência dos fãs. Este é o caso das Inteligências Artificiais e dos robôs*4, bem como os Espaciais*5, para amarrar a trama e dar coerência ao fim daquela civilização. Já o segundo episódio peça na humanização dos personagens que estão à volta de Seldon, caindo naquela necessidade de dar destaque a romances para que o espectador médio se identifique, entrando no lugar comum. 

Toda a parte relacionada ao Império, porém, é impecável, com o triunvirato imperial, contendo uma versão clonadas - uma criança, uma adulta e uma idosa - do mesmo indivíduo. Essa opção permitirá ter um ator e um personagem fixos representando o Império e a sua incapacidade de mudar, pois eles vem sendo clonados há centenas de anos, tendo sempre as mesmas atitudes século após século. Isso demonstra de forma inequívoca a estagnação do Império*6, fazendo uma boa mescla de Roma e Game of Thrones com sci-fi...

Seguindo o depoimento de Goyer (que também assinou a série Blade e tem Sandman, da Netflix, entre os seus próximos projetos), os livros não são emocionais. Como boa parte da obra de Isaac Asimov, são mais levadas em consideração ideias e conceitos sociais e científicos para o futuro. Na opinião do roteirista, isso leva a ação para além do que é mostrado para o leitor: “Nos livros, o Império, que está em 10 mil mundos, literalmente sai da tela – pois ela acontece entre os capítulos. Obviamente, isso não funcionaria para um programa de televisão. Então, sem revelar muito, descobri uma maneira de fazer com que alguns dos personagens estendessem sua expectativa de vida. Cerca de seis personagens continuarão de temporada em temporada, de século em século. Dessa forma, a série torna-se metade antológica, metade história contínua”, revelou.

 

Uma das inovações da série é o Elevador Orbital, um porto espacial de onde após o desembarque das naves, os passageiros levam 14 horas para descer até a superfície de Trantor, capital do Império Galático

 

O ritmo cai um pouco ao tratar dos personagens à volta de Hari Seldon, investindo no tal "drama humano" em busca de personagens relacionáveis*7 com o grande público. No segundo capítulo passam a ter destaque elementos da vida cotidiana, de cunho emocional - relacionamentos, mortalidade, gravidez ... -,  que movem a maioria das pessoas, mas que destoam da visão de cunho técnico e prático que os personagens possuem nos livros. 

Ainda assim temos boas coisas, como o treinamento dos colonos que estabelecerão a Fundação em Terminus, e a discussão sobre o protocolo para determinar qual o conhecimento que deverá ser preservado e qual será descartado (o exemplo sobre o modo de pensar a matemática baseadas em modos diferentes do modo decimal foi espetacular), além de quem determina esse critério, é bem pertinente. Esperemos que invistam nesta discussão, pois, se a civilização vai ruir, será importante a preservação do conhecimento e do suporte de estocagem desse conhecimento. Não adianta ter milhares de terabytes de informações se houver um pulso eletromagnético ou se não houver equipamento digital para poder ler essa informação. Aí teria sido melhor investir na informação impressa e em arquivos físicos, como ocorre em outro clássico da ficção científica que os fãs adorariam ver adaptado para meios áudio visuais: Um Cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller, Jr. 
 
Ao final dos dois primeiros episódios fica o saldo de Fundação ser uma série de grande potencial, que pode traduzir bem a saga de Isaac Asimov. Uma trama que versa sobre a necessidade do corpo social aprender a pensar em trabalhar visando soluções coletivas, algo contrastante com a tendência hegemônica atual de se apostar no individualismo egoista e tacanho, que beneficia grupos privados em oposição ao bem comum.

 
 
Não faltam espaçonaves de tipos e tamanhos variados


Notas:
 


*1: Isaac Asimov  (1920-1992) é um dos mestres da Ficção Científica e, junto com Robert A. Heinlein Arthur C. Clarke, foi considerado um dos "três grandes" da ficção científica em sua Era de Ouro. A obra mais famosa de Asimov é a série Fundação, também conhecida como Trilogia da Fundação, que faz parte da série do Império Galáctico e que logo combinou com Robôs, a sua outra série mais famosa. Também escreveu obras de mistério e fantasia, assim como uma grande quantidade de livros de divulgação científica e histórica. No total, escreveu ou editou mais de 500 volumes, aproximadamente 90 000 cartas ou postais, e tem obras em cada categoria importante do sistema de classificação bibliográfiica de Dewey, exceto em filosofia. 



*2: A série foi originalmente publicada na revista Astounding Magazine entre Maio de 1942 e Janeiro de 1950. Posteriormente as primeiras quatro histórias foram reunidas, junto a uma outra história tomando lugar antes das outras, em um volume único publicado pela Gnome Press nos Estados Unidos em 1951 como Fundação. O resto das histórias foi publicado em pares pela Gnome como Fundação e Império (1952) e Segunda Fundação (1953), resultando na Trilogia da Fundação, como a série ficou conhecida por décadas. 
 
 

*3: O Prêmio Hugo é uma homenagem ao pioneiro inventor e editor Hugo Gernsback (1884-1967) sendo entregue a vários trabalhos de ficção científica anualmente, pelos membros da World Science Fiction Society.
 
 
 
 
*4: A sua série de livros sobre os robôs, é ambientada num futuro quase imediato, visto que a RoboPsicóloga Susan Calvin teria se formado em RoboPsicologia em 2001.Ao longo dos livros. os robôs ajudam a humanidade a inventar o motor hiperatômico, e os pilotos Donovam e Powell fazem a primeira viagem no hiperespaço, na qual se alimentam somente de ervilhas. Como dano colateral da invenção do salto no hiperespaço, há a quase destruição do cérebro positrônico que o criou, pois ele não consegue distinguir entre a desmaterialização de um ser humano e a morte, implicando em quebra da Primeira Lei da Robótica.
 
 

*5: Nas obras de Asimov, a humanidade começa a colonizar os planetas mais próximos, sendo o primeiro deles Aurora, na órbita de Tau Ceti, a dois parsecs da Terra. Cinquenta planetas são colonizados, mas então a expansão para e os chamados Planetas Espaciais proíbem a imigração de Terrestres - o pontapé inicial para a guerra entre a Terra e os espaciais. A Terra perde o conflito, sendo forçada a adotar o controle de natalidade e permitir o uso de robôs. As cidades começam a ser cobertas por cúpulas de aço. Anos depois, ações do detetive Elijah Baley e R. Daniel Olivaw (um robô) aproximam novamente os Espaciais da terra e dão início à segunda onda de colonização espacial
 
 
 

*6: Numa cena em que o Império condena à morte os "responsáveis" pelo atentado ao elevador orbital (refletindo o 11 de Setembro) e ordena um ataque massivo aos dois planetas suspeitos, o Imperador-menino pergunta à preceptora-IA quantas vezes eles já haviam agido desta forma no passado e ela responde: "Sempre..."

*7: Os três principais personagens da trilogia original na adaptação tiveram mudança de gênero, pois na época em que a série foi escrita (a década de 1950), a sociedade era diferente, com poucos personagens femininos relevantes nas obras de Ficção Científica, refletindo uma sociedade basicamente mais fria e impessoal.

 


A imponência e a opressão se refletem na grandiosidade dos prédios e estátuas do Império 


2 comentários:

  1. Para quem lê pouco ficção científica, essa resenha deu água na boca, no sentido "veja o filme e leia o livro". Vou correndo comprar os livros e acompanhar a série.

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  2. Obrigado! A diferença mais sensível que você observará nos livros é que o personagem principal da série é a própria história em si. Como no grosso de sua obra, Asimov cria personagens que movem a história, sem grandes aprofundamentos psicológicos.

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