A árida e plácida beleza do deserto
por Alexandre César
Dennis Villeneuve e o desafio de encarar Frank Herbert 
A série escrita por Frank Herbert, que seria posteriormente continuada por seu filho Brian Herbert e pelo escritor Kevin J.Anderson
#Oscar 2022
Escrito por Frank Herbert (1920-1986) e publicado originalmente pela Chilton Books em 1965, Duna é considerado o livro de ficção científica mais vendido de todos os tempos, tendo feito uma grande inovação ao rechear o romance de citações/elementos que remetem a paradoxos filosóficos, religiosos, e que até então nunca haviam sido usados na literatura de ficção em geral, tendo influenciado várias outras mídias, do cinema, quadrinhos até a música*1, sendo o vencedor do Prêmio Hugo de 1966, e continuadamente apontada como uma das mais renomadas obras de ficção e fantasia já lançadas, e um dos pilares da ficção científica moderna, sendo pioneira ao tratar de aspectos importantes da ecologia e da biologia e, em seu ambiente, Duna é notável por não possuir computadores*2.
Consistindo de seis livros e um conto, todos escritos por Herbert, além de mais de uma dúzia de outros livros, escritos por seu filho Brian Herbert, em parceria com o escritor Kevin J. Anderson (todos eles desenvolvidos e publicados posteriormente a sua morte). O livro foi objeto de uma tentativa de adaptação por parte do chileno Alejandro Jodorowsky (El Topo) no início dos anos 1970, que embora não tenha saído do papel, revelou um time de colaboradores que, nas décadas seguintes, marcaram o gênero, além de revolucionar a forma de apresentação de projeto cinematográfico*3. Inviabilizada a empreitada de Jodorowsky, anos depois o produtor Dino de Laurentiis (Conan, O Bárbaro) adquiriu os direitos do romance e, coube ao diretor David Lynch (O Homem-Elefante) a empreitada de adaptar a história, que explora as complexas interações entre política, religião, ecologia, tecnologia, escolhas e consequências, num filme de cerca de 4 horas de duração, que De Laurentiis mandou resumir para 2 horas e 16 minutos, o que desagradou Lynch a ponto de considerá-lo como, disse numa entrevista como “o filme que começou como um sonho e que terminou como um pesadelo!”*4 (ou como disse em outra, “não foi tudo um pesadelo, foi apenas 75% pesadelo“). Lançado em 1984 o filme de Lynch não foi muito bem nas bilheterias, sendo muito criticado por seu tom teatral, com falas subjetivas revelando o pensamento de seus personagens mas graças à sua narrativa segura (que apesar de tudo, conseguiu sintetizar a trama básica do livro) e sua direção de arte suntuosa (parecendo um mix de Flash Gordon com filme de época) o filme ao longo dos anos ganhou um status de cult, apesar da frustração de Lynch, sempre que tocava no assunto: “- eu não tive a versão final nesse filme. […] Essa é a grande lição: não faça um filme se não for o filme que você quer fazer. É uma piada de mau gosto e vai acabar com você.”. Houveram ainda duas mini-séries pelo Sci-Fi Channel, em 2000 de John Harrison e 2003 de Greg Yaitanes que tiveram seus méritos por procurarem seguir mais de perto a trama, apesar das limitações que um orçamento televisivo (lembremos que eram tempos pré-Game of Thrones) impunham à narrativa. Agora, coube ao enfant terrible da FC Dennis Villeneuve (Blade Runner 2049) a missão de transpor para as telas este rico universo ficcional, cuja riqueza de construção de mundo rivaliza com a de O Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien. Duna (2021) traz Villeneuve, que dirige e assina o roteiro, junto com Jon Spaihts (Doutor Estranho), e Eric Roth (O Informante) em grande forma, traduzindo o livro de Frank Herbert em belas imagens, captadas com maestria pela fotografia de Greig Fraser (O Mandaloriano) e cuja edição de Joe Walker (Blade Runner 2049) imprime um ritmo contemplativo, que casa perfeitamente com as locações dos desertos Wadi Run na Jordânia, no Oásis Liwa em Abu Dhabi, que fazem as paisagens desérticas do planeta Arrakis (Duna) e as paisagens geladas de Stadlandet da Noruega, que fazem o Planeta Caladan, numa atmosfera que evoca referências aos dramas existenciais europeus e a épicos como Lawrence da Arábia (1962) de David Lean. 
O Barão Vladimir Harkonnen (Stellan Skarsgard) inimigo mortal dos Atreides conspira com o Imperador para acabar com o Duque

Paul Atreides (Timothée Chalamet) é submetido pela Reverenda-Madre Gaius Helen Mohian (Charlote Rampling) à "Prova da Caixa da Dor"
Ambientado em um futuro distante*5, no ano 10.191, num império intergaláctico, onde feudos planetários são controlados por Casas nobres que devem aliadas à casta imperial da Casa Corrino (cujo Imperador Padishah Shaddan IV é mencionado, mas não aparece). Conhecemos o jovem Paul Atreides (o convincente Timothée Chalamet de O Rei),que tem sonhos recorrentes com uma garota do distante mundo de Arrakis. Ele é herdeiro do Duque Leto Atreides (Oscar Isaac de Star Wars: Os Últimos Jedi, aqui à anos-luz de Poe Dameron) e da respectiva Casa Atreides, na ocasião da transferência de sua família para o planeta Arrakis, a única fonte no universo da especiaria melange (o petróleo desse universo) a commoditie vital para o Grêmio Espacial, que controla o tráfego espacial, por ampliar as portas da percepção dos seus navegadores permitindo fazer suas viagens em segurança.

Nesta versão, Lady Jessica Atreides (Rebecca Ferguson) é mais sensível e emotiva
Concebido por Lady Jessica Atreides (Rebecca Ferguson de Doutor Sono numa performance sensível) que havia sido instruída pela Reverenda Madre Gaius Helen Mohian (Charlotte Rampling de Melancolia, em participação sinistra) a só gerar meninas. Jessica desobedeceu a esta instrução por amor ao Duque, que queria um menino, e assim colocou em risco os planos da Irmandade Bene Gesserit, que planejava através do casamento de uma Atreides com um membro da Casa Harkonnen, seus inimigos figadais, e assim acabar com a rixa entre as Casas*6. O Imperador vê os Atreides como uma ameaça para o seu trono, devido ao carisma e popularidade do Duque Leto Atreides entre os demais nobres presentes na assembléia Landsraad, e devido ao duque e seus talentosos militares Duncan Idaho (o carismático Jason Momoa de Aquaman, com bastante destaque), Gurney Halleck (Josh Brolin de Vingadores: Ultimato fazendo bem o seu tipo “cara-amarrada”) e o mentat Thufir Hawat (Stephen McKinley Henderson de Lincoln, eficiente). Padishah decide que a Casa Atreides deve ser destruída mas, para Para evitar envolver o seu nome (e não provocar a revolta das outras Casas Nobres), ele faz uso da rivalidade milenar entre Atreides e Harkonnens como forma de encobrir seu ataque, e enquanto designa os Atreides para administrar o planeta deserto de Arrakis (conhecido como “Duna”), substituindo os Harkonnen, por fora, planeja com o brilhante e ambicioso Barão Vladimir Harkonnen (Stellan Skarsgard de Chernobyl em ótima interpretação de um personagem sinistro) e seu brutal sobrinho Rabban, a Besta (Dave Bautista de Army of The Dead: Invasão de Las Vegas na medida certa) uma trama para eliminarem seu rival, em parceria com seu mentat Piter de Vries (David Dastmalçhian de O Esquadrão Suicida). O Duque Leto assume a incumbência, visando forjar uma aliança, em seu novo planeta, com seus habitantes nativos, os subestimados fremen, começando a dialogar com o austero Stilgar (Javier Bardem de Onde Os Fracos Não Tem Vez) um líder local, enquanto Paul, entrando em contato com a especiaria, vai cada vez mais tendo seus sonhos e, ampliando a sua percepção so-bre sua emoções, o destino de sua família, até quando se consuma o plano traiçoeiro do Imperador e dos Harkonnen, ele se depara com Chani (Zendaya de O Rei do Show) a misteriosa garota de seus sonhos. 
Nesta versão, Rabban, o Barão e o Mentat Piter de Vries (David Dastmalchian) tem um look vampiresco, padronizado como um regime totalitário
O grande mérito do filme é se permitir cobrir apenas a primeira parte do livro, evitando despejar uma avalanche de conceitos sobre o espectador (como no filme de 1984) se permitindo ter o tempo necessário par os personagens trilharem suas jornadas, pois como diz a frase: “mais importante do que chegar ao ponto de destino, é a própria viagem em si!”, sendo a escolha de Chalamet perfeita, por convencer como um adolescente de 13/14 anos (como no livro), tal qual Zendaya. Os Harkonnen também deixam para trás a caracterização cartunesca de Lynch, para emanarem uma aura de perigo real e palpável, sendo o maior diferencial a composição de Lady Jessica Atreides, aqui bem mais sentimental (maior até do que do livro), visando uma maior empatia com o público. 
Paul e Lady Jessica conseguem escapar e procuram abrigo no deserto
Os valores de produção refletem o orçamento (estimado) de 165 milhões de dólares (um valor até razoável, se comparado ao de outros blockbusters recentes) no desenho de produção de Patrice Vermette (A Chegada) que criou grandes cenários de aspecto brutalista no Origo Studios na Hungria, caracterizados pela direção de arte de Tom Brown (O Espião que Sabia Demais), Karl Probert (Projeto Gemini), Tibor Lazar (Operação Red Sparrow), Gergely Rieger (Blade Runner 2049), David Doran (MIB: Homens de Preto Internacional) e Samy Keilani (Star Wars: A Ascenção Skywalker) que enfatizam o aspecto funcional e espartano das instalações em Arrakis, o mecanicismo de Giede Prime (planeta dos Harkonnen), o aspecto opressivo de Salusa Secundus (base dos Sardaukar, a guarda de elite do Império) e a austeridade ornada em madeira de Caladan, com elementos precisos da decoração de sets de Richard Roberts (Star Wars: Os Últimos Jedis) e Zsuzanna Sipos (O Alienista) que dão dicas do passado dos Atreides, como os elementos ligados às touradas do pai do Duque Leto. Da mesma forma, os figurinos de Bob Morgan (American Playhouse) e Jaqueline West (O Regresso) dizem muito nos sóbrios uniformes marciais dos Atreides, nos trajes de couro e materiais sintéticos dos Harkonnen e dos Sardukar, nos tecidos elegantes de Lady Jessica e da Reverenda Gaius Helen Mohian, ou nos panos rústicos de fibra vegetal dos Fremen.
Os efeitos visuais efeitos visuais das empresas Double Negative (DNEG), Clear Angle Studios, FBFX, Lidar Guys, Rodeo FX, Territory Studio, supervisionados por Paul Lambert (Blade Runner 2049), Bryan Godwin (Westworld) usam muito bem o CGI junto com os efeitos práticos, dando a escala certa dos minúsculos ratos da areia numa cena, e das descomunais proporções dos vermes da areia intimidantes, além de finalmente acertarem na criação dos ornitópteros, veículos similares a helicópteros, mas com uma disposição visual parecida ao de libélulas, em ótimas sequências de vôo. 
Os Fremen conseguem cavalgar os vermes, usando arreios especiais
Agora um elemento de destaque é a ótima música de Hans Zimmer (trilogia Batman de Christopher Nolan) que de maneira orgânica com suas diversas percussões e níveis diversos de ruídos incidentais e atmosféricos geram uma imersão, potencializada pela projeção em IMAX (se lhe for possível assistir ao filme numa sala com esse sistema, faça-o) que insere camadas sutis de nível sonoro. Vale a pena! 
As Mulheres da Vida de Paul: Lady Jessica e Chani devem ter maior particpação na sequência
Seu término de forma crua, que dá uma sensação de “- Po@! Agora que o filme vai começar de fato, ele acaba!?!”, Duna aponta para a sua sequência (na realidade, a segunda metade do livro) onde veremos a ascenção de Paul Atreides entre os Fremen, adotando a identidade de M´uadib, o escolhido e iniciar o Jihad, a Guerra Santa que varrerá o universo e nos apresentará a personagens ausentes, como Feyd Rautha Harkkonnen e o Imperador Padishah Shaddan IV e a Princesa Irulan, pois como diz Chani para Paul, na cena final: “-Isto é apenas o começo!”. Notas: *1: A famosa banda de Heavy Metal Iron Maiden fez uma música inspirada no livro, intitulada “To Tame a Land”, do álbum Piece of Mind, lançado em 1983. Uma curiosidade, é que a música era pra levar o nome do livro, porém Frank Herbert proibiu. Apesar disso, na Itália e no Canadá a música saiu com o nome de Dune. A banda Blind Guardian também aborda a história na canção “Traveler in Time” do álbum Tales from the Twilight World. A cantora eletrônica Grimes fez um álbum inspirado no livro, com o nome "Geidi Primes". *2: Devido a um conflito chamado “Jihad Butleriano”, a religião do Império proíbe o uso de máquinas pensantes, temendo que estas possam destruir a humanidade. Todo o trabalho de cálculos complicados é feito pelos Mentats, homens treinados desde a infância para usarem suas mentes como computadores. *3: Jodorowsky, junto do produtor Michel Seydoux, havia reunido como seus colaboradores o quadrinista Jean “Moebius” Giraud (com quem depois realizaria a saga do Incal nos quadrinhos) para os storyboards e concepções visuais; o escultor H.R.Giger para concepções cenográficas; o ilustrador Chris Foss para concepção de naves e ambientações espaciais; o roteirista e técnico de efeitos visuais Dan O´Bannon (todos eles iriam depois trabalhar em Alien, o 8° passageiro de Ridley Scott) além de durante todo o processo de captação de recursos ter adotado o método de apresentar o roteiro impresso num livro, com todas as ilustrações conceituais e storyboards de forma que os investidores pudessem ter uma melhor idéia do que se pretendia fazer. Esse livro correu vários estúdios, tendo várias de suas idéias copiadas em outros filmes que surgiriam anos depois, de certa forma polinizando o visual do Sc-iFi áudio-visual das décadas futuras. A história desse que é considerado “o maior filme não realizado” rendeu o documentário Duna de Jodorowsky (2013) de Frank Pavich.*4: O filme naufragou nas bilheterias americanas mas teve uma boa performance na Europa, adquirindo status de “cult”, e em 1988, ao ser lançado na TV americana, De Laurentiis fez uma versão “definitiva”, com cerca de uma hora a mais de cenas que ficaram na mesa de edição, mas por não seguir o roteiro de Lynch apresentava um ritmo desigual e incluindo um início alternativo todo narrado com ilustrações de estilo o mais amador possível, destoante com o visual sofisticado do filme, sendo claramente esboços de cor feitos à pressa. Esta narrativa “explica” tudo o que se irá passar na história do filme; quem são os personagens, onde vivem, quem são os bons, quem são os maus, etc... parecendo mais as origens de um qualquer super-herói da Marvel do que algo pertencente ao universo Duna. Esta nova versão levou Lynch a exigir não ser creditado como diretor (acabou sendo creditada a “Alan Smithee”- pessoa fictícia usada em casos de diretores que renegam a versão final de seus filmes). Embora essa versão tenha sido apreciada pelos americanos, surgiria anos depois, uma versão melhor, e mais fiel ao livro e ao roteiro de Lynch: “DUNE REDUX – The “Spicediver” FanEdit” remontada por alguém intitulado “Spicediver”; uma espécie de clube anónimo mundial de pessoas que trabalham no meio audio-visual, algumas operando inclusiva-mente a partir do interior dos estúdios, tendo acesso a muito material de arquivo relativo a produções famosas. Simplificando: Uma cópia pirata mas mais competente do que a versão oficial, estando disponível na internet. *5: O livro, situado há cerca de 24.600 anos após o presente, no qual a Terra não é mais habitada e muito da sua história já foi esquecida, sendo mencionada em algumas tradições históricas e religiosas. *6: A Irmandade das Bene Gesserit, uma ordem religiosa feminina, levava a cabo, ao longo dos séculos, um programa de manipulação genética, com suas irmãs gerando herdeiros entre as Casas Nobres, que através de casamentos arranjados, além de lhes garantir poder sobre o Império, lhes permitiria futuramente gerar o Kwzats Haderach, o ser perfeito, capaz de com sua visão atravessar o tempo e o espaço. Paul Atreides, seria um ponto fora da curva, ao apresentar tais características, mas sendo independente da Ordem.
A série escrita por Frank Herbert, que seria posteriormente continuada por seu filho Brian Herbert e pelo escritor Kevin J.Anderson |
#Oscar 2022
Escrito por Frank Herbert (1920-1986) e publicado originalmente pela Chilton Books em 1965, Duna é considerado o livro de ficção científica mais vendido de todos os tempos, tendo feito uma grande inovação ao rechear o romance de citações/elementos que remetem a paradoxos filosóficos, religiosos, e que até então nunca haviam sido usados na literatura de ficção em geral, tendo influenciado várias outras mídias, do cinema, quadrinhos até a música*1, sendo o vencedor do Prêmio Hugo de 1966, e continuadamente apontada como uma das mais renomadas obras de ficção e fantasia já lançadas, e um dos pilares da ficção científica moderna, sendo pioneira ao tratar de aspectos importantes da ecologia e da biologia e, em seu ambiente, Duna é notável por não possuir computadores*2. Consistindo de seis livros e um conto, todos escritos por Herbert, além de mais de uma dúzia de outros livros, escritos por seu filho Brian Herbert, em parceria com o escritor Kevin J. Anderson (todos eles desenvolvidos e publicados posteriormente a sua morte). O livro foi objeto de uma tentativa de adaptação por parte do chileno Alejandro Jodorowsky (El Topo) no início dos anos 1970, que embora não tenha saído do papel, revelou um time de colaboradores que, nas décadas seguintes, marcaram o gênero, além de revolucionar a forma de apresentação de projeto cinematográfico*3.
Inviabilizada a empreitada de Jodorowsky, anos depois o produtor Dino de Laurentiis (Conan, O Bárbaro) adquiriu os direitos do romance e, coube ao diretor David Lynch (O Homem-Elefante) a empreitada de adaptar a história, que explora as complexas interações entre política, religião, ecologia, tecnologia, escolhas e consequências, num filme de cerca de 4 horas de duração, que De Laurentiis mandou resumir para 2 horas e 16 minutos, o que desagradou Lynch a ponto de considerá-lo como, disse numa entrevista como “o filme que começou como um sonho e que terminou como um pesadelo!”*4 (ou como disse em outra, “não foi tudo um pesadelo, foi apenas 75% pesadelo“).
Lançado em 1984 o filme de Lynch não foi muito bem nas bilheterias, sendo muito criticado por seu tom teatral, com falas subjetivas revelando o pensamento de seus personagens mas graças à sua narrativa segura (que apesar de tudo, conseguiu sintetizar a trama básica do livro) e sua direção de arte suntuosa (parecendo um mix de Flash Gordon com filme de época) o filme ao longo dos anos ganhou um status de cult, apesar da frustração de Lynch, sempre que tocava no assunto: “- eu não tive a versão final nesse filme. […] Essa é a grande lição: não faça um filme se não for o filme que você quer fazer. É uma piada de mau gosto e vai acabar com você.”.
Houveram ainda duas mini-séries pelo Sci-Fi Channel, em 2000 de John Harrison e 2003 de Greg Yaitanes que tiveram seus méritos por procurarem seguir mais de perto a trama, apesar das limitações que um orçamento televisivo (lembremos que eram tempos pré-Game of Thrones) impunham à narrativa.
Agora, coube ao enfant terrible da FC Dennis Villeneuve (Blade Runner 2049) a missão de transpor para as telas este rico universo ficcional, cuja riqueza de construção de mundo rivaliza com a de O Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien.
Duna (2021) traz Villeneuve, que dirige e assina o roteiro, junto com Jon Spaihts (Doutor Estranho), e Eric Roth (O Informante) em grande forma, traduzindo o livro de Frank Herbert em belas imagens, captadas com maestria pela fotografia de Greig Fraser (O Mandaloriano) e cuja edição de Joe Walker (Blade Runner 2049) imprime um ritmo contemplativo, que casa perfeitamente com as locações dos desertos Wadi Run na Jordânia, no Oásis Liwa em Abu Dhabi, que fazem as paisagens desérticas do planeta Arrakis (Duna) e as paisagens geladas de Stadlandet da Noruega, que fazem o Planeta Caladan, numa atmosfera que evoca referências aos dramas existenciais europeus e a épicos como Lawrence da Arábia (1962) de David Lean.
O Barão Vladimir Harkonnen (Stellan Skarsgard) inimigo mortal dos Atreides conspira com o Imperador para acabar com o Duque |
Paul Atreides (Timothée Chalamet) é submetido pela Reverenda-Madre Gaius Helen Mohian (Charlote Rampling) à "Prova da Caixa da Dor" |
Ambientado em um futuro distante*5, no ano 10.191, num império intergaláctico, onde feudos planetários são controlados por Casas nobres que devem aliadas à casta imperial da Casa Corrino (cujo Imperador Padishah Shaddan IV é mencionado, mas não aparece). Conhecemos o jovem Paul Atreides (o convincente Timothée Chalamet de O Rei),que tem sonhos recorrentes com uma garota do distante mundo de Arrakis. Ele é herdeiro do Duque Leto Atreides (Oscar Isaac de Star Wars: Os Últimos Jedi, aqui à anos-luz de Poe Dameron) e da respectiva Casa Atreides, na ocasião da transferência de sua família para o planeta Arrakis, a única fonte no universo da especiaria melange (o petróleo desse universo) a commoditie vital para o Grêmio Espacial, que controla o tráfego espacial, por ampliar as portas da percepção dos seus navegadores permitindo fazer suas viagens em segurança.
Nesta versão, Lady Jessica Atreides (Rebecca Ferguson) é mais sensível e emotiva |
Concebido por Lady Jessica Atreides (Rebecca Ferguson de Doutor Sono numa performance sensível) que havia sido instruída pela Reverenda Madre Gaius Helen Mohian (Charlotte Rampling de Melancolia, em participação sinistra) a só gerar meninas. Jessica desobedeceu a esta instrução por amor ao Duque, que queria um menino, e assim colocou em risco os planos da Irmandade Bene Gesserit, que planejava através do casamento de uma Atreides com um membro da Casa Harkonnen, seus inimigos figadais, e assim acabar com a rixa entre as Casas*6.
O Imperador vê os Atreides como uma ameaça para o seu trono, devido ao carisma e popularidade do Duque Leto Atreides entre os demais nobres presentes na assembléia Landsraad, e devido ao duque e seus talentosos militares Duncan Idaho (o carismático Jason Momoa de Aquaman, com bastante destaque), Gurney Halleck (Josh Brolin de Vingadores: Ultimato fazendo bem o seu tipo “cara-amarrada”) e o mentat Thufir Hawat (Stephen McKinley Henderson de Lincoln, eficiente). Padishah decide que a Casa Atreides deve ser destruída mas, para Para evitar envolver o seu nome (e não provocar a revolta das outras Casas Nobres), ele faz uso da rivalidade milenar entre Atreides e Harkonnens como forma de encobrir seu ataque, e enquanto designa os Atreides para administrar o planeta deserto de Arrakis (conhecido como “Duna”), substituindo os Harkonnen, por fora, planeja com o brilhante e ambicioso Barão Vladimir Harkonnen (Stellan Skarsgard de Chernobyl em ótima interpretação de um personagem sinistro) e seu brutal sobrinho Rabban, a Besta (Dave Bautista de Army of The Dead: Invasão de Las Vegas na medida certa) uma trama para eliminarem seu rival, em parceria com seu mentat Piter de Vries (David Dastmalçhian de O Esquadrão Suicida).
O Duque Leto assume a incumbência, visando forjar uma aliança, em seu novo planeta, com seus habitantes nativos, os subestimados fremen, começando a dialogar com o austero Stilgar (Javier Bardem de Onde Os Fracos Não Tem Vez) um líder local, enquanto Paul, entrando em contato com a especiaria, vai cada vez mais tendo seus sonhos e, ampliando a sua percepção so-bre sua emoções, o destino de sua família, até quando se consuma o plano traiçoeiro do Imperador e dos Harkonnen, ele se depara com Chani (Zendaya de O Rei do Show) a misteriosa garota de seus sonhos.
Nesta versão, Rabban, o Barão e o Mentat Piter de Vries (David Dastmalchian) tem um look vampiresco, padronizado como um regime totalitário |
O grande mérito do filme é se permitir cobrir apenas a primeira parte do livro, evitando despejar uma avalanche de conceitos sobre o espectador (como no filme de 1984) se permitindo ter o tempo necessário par os personagens trilharem suas jornadas, pois como diz a frase: “mais importante do que chegar ao ponto de destino, é a própria viagem em si!”, sendo a escolha de Chalamet perfeita, por convencer como um adolescente de 13/14 anos (como no livro), tal qual Zendaya. Os Harkonnen também deixam para trás a caracterização cartunesca de Lynch, para emanarem uma aura de perigo real e palpável, sendo o maior diferencial a composição de Lady Jessica Atreides, aqui bem mais sentimental (maior até do que do livro), visando uma maior empatia com o público.
Paul e Lady Jessica conseguem escapar e procuram abrigo no deserto |
Os valores de produção refletem o orçamento (estimado) de 165 milhões de dólares (um valor até razoável, se comparado ao de outros blockbusters recentes) no desenho de produção de Patrice Vermette (A Chegada) que criou grandes cenários de aspecto brutalista no Origo Studios na Hungria, caracterizados pela direção de arte de Tom Brown (O Espião que Sabia Demais), Karl Probert (Projeto Gemini), Tibor Lazar (Operação Red Sparrow), Gergely Rieger (Blade Runner 2049), David Doran (MIB: Homens de Preto Internacional) e Samy Keilani (Star Wars: A Ascenção Skywalker) que enfatizam o aspecto funcional e espartano das instalações em Arrakis, o mecanicismo de Giede Prime (planeta dos Harkonnen), o aspecto opressivo de Salusa Secundus (base dos Sardaukar, a guarda de elite do Império) e a austeridade ornada em madeira de Caladan, com elementos precisos da decoração de sets de Richard Roberts (Star Wars: Os Últimos Jedis) e Zsuzanna Sipos (O Alienista) que dão dicas do passado dos Atreides, como os elementos ligados às touradas do pai do Duque Leto. Da mesma forma, os figurinos de Bob Morgan (American Playhouse) e Jaqueline West (O Regresso) dizem muito nos sóbrios uniformes marciais dos Atreides, nos trajes de couro e materiais sintéticos dos Harkonnen e dos Sardukar, nos tecidos elegantes de Lady Jessica e da Reverenda Gaius Helen Mohian, ou nos panos rústicos de fibra vegetal dos Fremen.
Os efeitos visuais efeitos visuais das empresas Double Negative (DNEG), Clear Angle Studios, FBFX, Lidar Guys, Rodeo FX, Territory Studio, supervisionados por Paul Lambert (Blade Runner 2049), Bryan Godwin (Westworld) usam muito bem o CGI junto com os efeitos práticos, dando a escala certa dos minúsculos ratos da areia numa cena, e das descomunais proporções dos vermes da areia intimidantes, além de finalmente acertarem na criação dos ornitópteros, veículos similares a helicópteros, mas com uma disposição visual parecida ao de libélulas, em ótimas sequências de vôo.
Os Fremen conseguem cavalgar os vermes, usando arreios especiais |
Agora um elemento de destaque é a ótima música de Hans Zimmer (trilogia Batman de Christopher Nolan) que de maneira orgânica com suas diversas percussões e níveis diversos de ruídos incidentais e atmosféricos geram uma imersão, potencializada pela projeção em IMAX (se lhe for possível assistir ao filme numa sala com esse sistema, faça-o) que insere camadas sutis de nível sonoro. Vale a pena!
As Mulheres da Vida de Paul: Lady Jessica e Chani devem ter maior particpação na sequência |
Seu término de forma crua, que dá uma sensação de “- Po@! Agora que o filme vai começar de fato, ele acaba!?!”, Duna aponta para a sua sequência (na realidade, a segunda metade do livro) onde veremos a ascenção de Paul Atreides entre os Fremen, adotando a identidade de M´uadib, o escolhido e iniciar o Jihad, a Guerra Santa que varrerá o universo e nos apresentará a personagens ausentes, como Feyd Rautha Harkkonnen e o Imperador Padishah Shaddan IV e a Princesa Irulan, pois como diz Chani para Paul, na cena final: “-Isto é apenas o começo!”.
Notas:
*1: A famosa banda de Heavy Metal Iron Maiden fez uma música inspirada no livro, intitulada “To Tame a Land”, do álbum Piece of Mind, lançado em 1983. Uma curiosidade, é que a música era pra levar o nome do livro, porém Frank Herbert proibiu. Apesar disso, na Itália e no Canadá a música saiu com o nome de Dune. A banda Blind Guardian também aborda a história na canção “Traveler in Time” do álbum Tales from the Twilight World. A cantora eletrônica Grimes fez um álbum inspirado no livro, com o nome "Geidi Primes".
*2: Devido a um conflito chamado “Jihad Butleriano”, a religião do Império proíbe o uso de máquinas pensantes, temendo que estas possam destruir a humanidade. Todo o trabalho de cálculos complicados é feito pelos Mentats, homens treinados desde a infância para usarem suas mentes como computadores.
*3: Jodorowsky, junto do produtor Michel Seydoux, havia reunido como seus colaboradores o quadrinista Jean “Moebius” Giraud (com quem depois realizaria a saga do Incal nos quadrinhos) para os storyboards e concepções visuais; o escultor H.R.Giger para concepções cenográficas; o ilustrador Chris Foss para concepção de naves e ambientações espaciais; o roteirista e técnico de efeitos visuais Dan O´Bannon (todos eles iriam depois trabalhar em Alien, o 8° passageiro de Ridley Scott) além de durante todo o processo de captação de recursos ter adotado o método de apresentar o roteiro impresso num livro, com todas as ilustrações conceituais e storyboards de forma que os investidores pudessem ter uma melhor idéia do que se pretendia fazer. Esse livro correu vários estúdios, tendo várias de suas idéias copiadas em outros filmes que surgiriam anos depois, de certa forma polinizando o visual do Sc-iFi áudio-visual das décadas futuras. A história desse que é considerado “o maior filme não realizado” rendeu o documentário Duna de Jodorowsky (2013) de Frank Pavich.
*4: O filme naufragou nas bilheterias americanas mas teve uma boa performance na Europa, adquirindo status de “cult”, e em 1988, ao ser lançado na TV americana, De Laurentiis fez uma versão “definitiva”, com cerca de uma hora a mais de cenas que ficaram na mesa de edição, mas por não seguir o roteiro de Lynch apresentava um ritmo desigual e incluindo um início alternativo todo narrado com ilustrações de estilo o mais amador possível, destoante com o visual sofisticado do filme, sendo claramente esboços de cor feitos à pressa. Esta narrativa “explica” tudo o que se irá passar na história do filme; quem são os personagens, onde vivem, quem são os bons, quem são os maus, etc... parecendo mais as origens de um qualquer super-herói da Marvel do que algo pertencente ao universo Duna. Esta nova versão levou Lynch a exigir não ser creditado como diretor (acabou sendo creditada a “Alan Smithee”- pessoa fictícia usada em casos de diretores que renegam a versão final de seus filmes).
Embora essa versão tenha sido apreciada pelos americanos, surgiria anos depois, uma versão melhor, e mais fiel ao livro e ao roteiro de Lynch: “DUNE REDUX – The “Spicediver” FanEdit” remontada por alguém intitulado “Spicediver”; uma espécie de clube anónimo mundial de pessoas que trabalham no meio audio-visual, algumas operando inclusiva-mente a partir do interior dos estúdios, tendo acesso a muito material de arquivo relativo a produções famosas. Simplificando: Uma cópia pirata mas mais competente do que a versão oficial, estando disponível na internet.
*5: O livro, situado há cerca de 24.600 anos após o presente, no qual a Terra não é mais habitada e muito da sua história já foi esquecida, sendo mencionada em algumas tradições históricas e religiosas.
*6: A Irmandade das Bene Gesserit, uma ordem religiosa feminina, levava a cabo, ao longo dos séculos, um programa de manipulação genética, com suas irmãs gerando herdeiros entre as Casas Nobres, que através de casamentos arranjados, além de lhes garantir poder sobre o Império, lhes permitiria futuramente gerar o Kwzats Haderach, o ser perfeito, capaz de com sua visão atravessar o tempo e o espaço. Paul Atreides, seria um ponto fora da curva, ao apresentar tais características, mas sendo independente da Ordem.
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