Retorno a Overlook
por Alexandre César
(Originalmente postado em 08/ 11/ 2019)
Mike Flanagam media Stanley Kubrick e Stephen King
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A recriação de cenas -chaves são uma mostra da competência das equipes de fotografia, direção de arte e edição
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Em 1977 Stephen King publicou O Iluminado,
uma das obras definitivas do terror, um clássico sobre o declínio de
uma família em meio à acontecimentos sobrenaturais, gerando um dos
maiores casos de desentendimento entre autores quando Stanley Kubrick adaptou a obra para as telas em 1980, com uma abordagem mais pé no chão, e aliviando nos elementos surreais do livro.
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Ewan McGregor retorna aos problemas de "Transpoting"...
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O
fato é que o livro fala sobre o terror, e o filme sobre a loucura,
vindo daí a discussão que o tempo tornou apenas uma trívialidade, uma vez que o
público em geral entendeu que ambas as obras eram visões diferentes de
uma mesma ideia.
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Andi "Cascavel" (Emily Alyn Lynd) a iluminada que entra para o grupo do mal
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King,
que publicamente repudiou o filme, optou por fazer sua própria
adaptação (em forma de minissérie por Mick Garris) e escreveu em 2013, Doutor Sono,
retomando este universo ficcional, mostrando um Danny Torrance já
adulto lidando com os seus fantasmas decorrentes dos eventos sinistros
ocorridos no Hotel Overlook, fugindo (e posteriormente aprendendo a fazer uso) do seu dom.
Na vibe atual em que as obras de King superaram o inferno astral de péssimas adaptações (vide o bom resultado de It - A Coisa)
era inevitável que o livro fosse adaptado, sendo o desafio conciliar
ambas as versões num resultado híbrido, mudando final do livro para
encaixar elementos que filme de Kubrick preservou...
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A jovem Abra Stone (Dakota Hickman) entra no radar do mal, ameaçando a todos. Entre eles, seu pai (Zackary Momoh)
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Dirigido, roteirizado e editado por Mike Flanagan (Jogo Perigoso, O Sono da Morte, A Maldição da Residência Hill), baseado no livro de King, Doutor Sono (2019)
é a resposta a essas indagações, sendo um terror sólido, criativo
visualmente mas que ao final perde parte de sua força ao final por
tentar conciliar o descompasso entre Kubrick e King.
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Rose, a "Cartola" (Rebecca Ferguson) se alimenta da energia vitl dos luminados, aspirando-os literalmente...
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Danny
Torrance (Roger Dale Floyd substituindo Danny Lloyd) durante uma boa
parte de sua vida após os eventos sinistros no hotel amaldiçoado
aprendeu a ocultar o seu don graças a ajuda do espírito de Dick Halloran
(Carl Lumbly de Homens de Honra, As Aventuras de Buckaroo Banzai substituindo
Scatman Crothers) e seguindo a vida com sua mãe Wendy (Alex Essoe,
substituindo Shelley Duvall) embora sempre guardando o trauma da
lembrança de Jack (Henry Thomas de E.T., Lendas da Paixão substituindo Jack Nicholson) e o seu mergulho na loucura.
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Rose, a "Cartola" alicia Andi "Cascavel" para a sua "família" para fazer uso dos seus poderes de aliciamento
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Anos depois, já adulto, Danny Torrance (Ewan McGregor de Transpotting e da trilogia Prequel Star Wars equilibrando
força e vulnerabilidade) após fugir entorpecendo o seu dom com álcool,
drogas e sexo casual vai para uma cidade do interior (do Maine, afinal é
uma obra de King...) recomeçar a vida e graças ao gente-boa Billy Freeman (Cliff Curtis de Fear The Walking Dead e Velozes e Furiosos: Hobbs & Shaw) vai para o Alcoólicos Anônimos,
se reconciliando com a sua figura paterna,ao se ver tendo problemas
similares com a bebida e, graças ao Dr. John (Bruce Greenwood de 13 Dias que Abalaram o Mundo, Star Trek)
consegue um emprego como enfermeiro numa clínica, ajudando com o seu
dom aos doentes terminais a fazer a passagem para o outro plano, daí
vindo o apelido de Doutor Sono.
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Danny agora se estabilizou, com um emprego e amigos, vivendo pacatamente
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Paralelo a isso somos apresentados a jovem Abra Stone (Dakota Hickman)
que vai revelando ter um dom similar ao de Danny, mas em intensidade
maior, deixando os seus pais David (Zackary Momoh) e Lucy Stone (Jocelin
Donahue) desconcertados a cada mostra de suas habilidades. Aos poucos
ela vai expandindo as suas habilidades, até ser capaz de fazer contato
com Danny anos depois, sendo este o ponto em que a história abre mão da
claustrofobia, fazendo uma viagem por cidades do interior americano
(marca de King) mostrando que não apenas Danny ou Abra, mas o mundo é
iluminado, sendo o dom que ele acreditava ser restrito apenas a ele,
existir em outras pessoas, em graus e diferentes intensidades; da mesma
forma, assim como ele é um dos mocinhos, e inclusive quer distância de
tais poderes, e diferente do seu caso em que só teve desgraça com o seu
dom, existem aqueles que usam dessa força de formas distintas em suas
vidas, sem sofrerem diretamente com isso...
Mas aí,para termos uma história de terror, precisamos de um Mal, e aí conhecemos Rose, a Cartola (Rebecca Ferguson de Missão:Impossível - Efeito Fallout, O Rei do Show,) líder do clã do Verdadeiro Nó,
cuja principal característica é a sensualidade e intimidação mística,
sendo ela a antagonista perfeita: cruel, sedutora e estranhamente
relacionável, graças à motivação de luta pela sua sobrevivência dela e
de seu bando, pois eles se alimentam do vapor, o sopro vital, a Força, ou o que você batizar o dom da Iluminação. Seu grupo, de visual meio hippie, bem definidos pelos figurinos de Terry Anderson (Eli, Covil de Ladrões) de características nômades, incluem entre seus membros, a maioria não definidos, o exótico Vovô Flick (Carel Struycken de A Família Addams, Twin Peaks, MIB: Homens de Preto ) e o seu braço direito Papai Corvo (Zahn McClaron de Westworld, A Rainha do Sul, Fargo) que em um momento chave a ajuda a aliciar a bonitinha mais ordinária ninfeta Andi Cascavel (Emily Alyn Lind de Réplicas: De - Volta à Vida, Revenge)
que usa o seu dom para atrair homens na internet para encontros, e após
adormecê-los e roubá-los com o seu poder marca seus rostos com uma
faca, como uma mordida de cobra (provavelmente no livro a personagem
deve ter sido vítima de abuso...). A cena em que ela é transformada num
membro do clã, algo não humano, é similar a muitas cenas de vampirismo
energético e espiritual...
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O vapor pode ser aspirado ou injetado para transformar um humano em algo não-humano
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Anos depois, Danny Torrance está estabilizado e Abra Stone (Kyliegh
Curran) é uma pré-adolescente que começa a tomar comando de seu próprio
dom e o utiliza para manter contato com outros iluminados, mantendo
uma sutil conexão entre si, sendo o catalisador do encontro desses
núcleos narrativos a morte de Bradley Trevor (Jacob Tremblay de O Predador, O Extraordinário), outro Iluminado, que acaba ecoando nas vidas tanto de Danny quanto de Abra, revelando a existência deles para a família de Rose (que não deixa de ter um “quê” de “Família Mason”), que tal qual tubarões farejam o sangue de uma presa mais substancial...
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Dick Halloran (Carl Lumbly) é o espírito guia de Danny, que o aconselha nos momentos difíceis
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Assim, após investir mais de metade de suas 2h 30 min. de projeção na
formação desse universo, mostrando com profundidade cada um desses três
elementos antes de colocá-los em rota de colisão, o filme vai acelerando
de forma sutil seu ritmo, num clima de crescente tensão e uma atmosfera
perturbadora, sendo esta a maior herança da obra de Kubrick, presente
também na estrutura de enquadramento de certas cenas,mas atendendo às
necessidades narrativas.
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Rose capta Abra em seu "radar" e, com sua "família" vai atrás da presa mais suculenta...
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No quarto final, acontece a grande junção das narrativas, conectando os dois filmes (ao contrário do que ocorre no livro O Iluminado,
Dick Hallorann, o chef de cozinha que ajuda Danny, está morto, ao passo
que o hotel amaldiçoado continua de pé) e aqui tal qual um fanservice muitíssimo bem feito, vão se somando as referências, quando a música de The Newton Brothers (Extinção, A Maldição da Residência Hill) refazendo o inquietante score original de O Iluminado de Wendy Carlos e Rachel Elkind, e a fotografia de Michael Fimognari (Para Todos os Garotos, Antes que Eu Vá)
vai emulando bem o trabalho de fotografia de John Alcott em algumas
cenas reproduzindo quadro a quadro trechos daquele longa de forma
funcional, não apenas em nome da nostalgia, estando de parabéns o
desenho de produção de Maher Ahmad (Caça aos Gangsters, Zumbilândia) e Patricio M. Farrell (Gotti: O Chefe da Máfia, Ouija: Origem do Mal) bem como a direção de arte de Rich Bearden (Stranger Things, Covil de Ladrões), Austin Gorg (La La Land: Cantando Estações, Ela) Justin O´Neal Miller (O Primeiro Homem, Homem-Formiga) na recriação dos espaços do amaldiçoado Hotel Overlook, refazendo momentos, personagens e situações-chave mas, caindo aqui no velho problema de derrapar no convencional final de “Vamos-levar-o-vilão-a-uma-armadilha-que-ele-não-esperava” o que alguns dizem ser a “maldição das histórias de King” coisa mais comum às versões cinematográficas do que às histórias escritas propriamente ditas.
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A certa altura fica claro que não haverá trégua entre as duas forças femininas
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Ao final, em que pesem os prós e contras temos um bom filme que vale a
pena o ingresso,destacando o bom trabalho do elenco, com Ewan McGregor
forte como Danny, destacando a jovem Kyliegh Curran que empresta uma
confiança quase prepotente a Abra, contrastando com a relutância de
Danny, sendo capaz de numa cena em que os dois trocam de corpo, emular o
olhar e o tipo de interpretação de McGregor convincentemente.
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No climax, Danny e Abra atraem Rose para combater em terreno minado: O Hotel Overlook, que aqui, ainda está de pé... |
Mas quem rouba a cena mesmo é Rebecca Ferguson como Rose, a Cartola,
realizando verdadeiros duelos interpretativos com Curran, como quando a
antagonista invade os sonhos de Abra - sem saber que caiu em uma
armadilha da garota, enfrentando-se em um ambiente que representa a
mente humana como uma biblioteca, com ambas brigando pelo conhecimento
da outra, numa ótima mescla de efeitos visuais, edição, e direção de
arte. Fica a dica para a Marvel, agora que conseguiram de volta os direitos do X-Men, é bom olhar para a ruiva, que daria uma ótima versão adulta de Jean Grey / Fênix...
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Abra: Duelo no labirinto...
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Ao final se Doutor Sono não
é 100% pelo menos não nos fará dormir ou parar de prestar atenção ao
que se vê em cena, visto que Mike Flanagam provou ser capaz de conciliar
duas narrativas de forma a dar um produto atraente no seu todo, ainda
que não perfeito.
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A recriação de certos momentos deixa evidente o "fanservice", mas nada que prejudique a narrativa
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"- Eu estou te veennndoo!!!"
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