sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Talentosa & Fraturada -Crítica - Filmes: Judy: Muito Além do Arco-Íris (2019)


 

Beem debaixo do Arco-Íris...*1

 

por Alexandre César  

(Originalmente postado em 21/ 01/ 2020)


Renée Zelleweger brilha em filme correto

 

A sedução e a coação do poder: Louis B.Mayer (James Cordery) explica à jovem e rebelde Judy Garland (Darci Shaw) a sua razão de ser no mundo do entretenimento

 

“- Judy, existem milhares de garotas morando no Kansas, algumas delas são até mais bonitas do que você, outras mais inteligentes, mas elas não são Judy Garland. Elas vivem vidas simples e serão donas de casa, esposas de fazendeiros e professoras de escolas primárias, e terão essas vidas até o fim. Você acha que pode ser uma delas e se quiser ir embora para ter a vida de uma delas eu não a impedirei, mas não é uma delas. Elas vivem vidas comuns e como a economia está na lama, a único momento de fantasia que elas tem é quando vão ao cinema ver Judy Garland! Se é isso que você quer eu não a impedirei, pois você é a minha favorita, mas você tem que escolher...”



 
 
Assim em certa altura, Louis B.Mayer, o todo-poderoso da Metro-Goldwin-Mayer (Richard Cordery de Um Amor de Estimação numa caracterização que parece uma mescla de John Goodman com Imperador Palpatine de Star Wars) dá um sermão (intimidante e falsamente paternal) a sua jovem e rebelde Judy Garland (Darci Shaw de The Bay) atriz mirim, entrando na adolescência que se ressente de ter desde a mais tenra infância um ritmo diário entre aulas de canto, sapateado, interpretação e filmagem dignos de um quartel do exército e não ter tempo de ser uma criança, e mais tarde uma pré-adolescente, querendo poder dormir um pouco mais sem a rotina de pílulas para ficar acordada, para dormir, para emagrecer e (heresia!!!) comer um hambúrger e tomar um milk-shake sem se sentir culpada.

 
Judy com Mickey Rooney em "Sangue de Artista" (1939).


 Neste e nos outros momentos em que a fotografia de Ole Bratt Bierkeland (Animais Americanos) recria a aura do Technicolor da “Era de Ouro do Cinema” Hollywoodiano que percebemos a benção e a maldição que acompanhará a nossa protagonista de cima até muito embaixo do arco-íris...
 
 

Lorna (Bella Ramsey) e Joey (Lewin Loyd) Luft e sua mãe Judy Garland (Renée Zelleweger): Sem hospedagem por falta de crédito após um dia de trabalho

A caracterização da atriz incluiu próteses faciais e dentárias, lentes de contato e peruca


 
 Vencedor da 77ª edição do Globo de Ouro na categoria de melhor atriz em filme de drama, Judy: Muito Além do Arco-Íris (2019) de Rupert Goold (A História Verdadeira) traz Renée Zelleweger (a eterna Bridiget Jones) em grande forma (magra e desbotada) como a multi-talentosa (e auto-destrutiva) Judy Garland, a eterna Dorothy do clássico O Mágico de Oz (1940) da “Era de Ouro” de Hollywood, quando imperava o sistema do “Star System” *2 dos grandes estúdios, criando toda uma mitologia sobre as suas estrelas, que muitas das vezes pagavam um preço altíssimo pela fama perdendo a sua privacidade e personalidade em função do marketing exigido para promover o mito, num verdadeiro “moedor de carne” de drogas, álcool, casamentos de fachada, ”testes do sofá”, etc...
 

 
Bernard Delfont (Michael Gambon, o eterno Dumbledore) arranja a turnêe londrina da estrela

Na sua juventude na MGM, qualquer canto de cenário servia para um cochilo

 
 
Esta produção da BBC Films, Calamity Films, Pathe UK, Twentieth Century Fox, se apoia no roteiro de Tom Edge (The Crown) adapta a peça “End of the Rainbow” de Peter Quilter, que acompanha a rotina do dia a dia de Garland, já numa fase decadente, no inverno de 1968, sempre com a mídia no seu encalço em busca de um escândalo, e inicialmete vemos lutando para manter a guarda de seus filhos Lorna (Bella Ramsey de Game of Thrones) e Joey Luft (Lewin Loyd de His Dark Materials / Fronteiras do Universo) mas por problemas financeiros ela se vê obrigada a deixá-los com o pai, Sid Luft (Rufus Sewel de O Homem do Castelo Alto) do qual se divorciara (de forma meio “atritosa”, dado o seu gênio forte). 
 
 

Sua asssistente Rosalyn Wilder (Jessie Bucley) lida com a difícil e auto-destrutiva estrela, ajudando-a no possível

 
Judy se encanta pelo jovem e cativante Mickey Deans (Finn Wittrock) que se torna seu empresário e... dá com os burros nágua


 
Mais adiante numa festa em que encontra sua filha mais velha Liza Minnelli (Gemma-Leah Devereux de The Tudors) conhece o jovem picareta Mickey Deans (Finn Wittrock de A Grande Aposta) e embora se encante por ele, embarca para uma turnê de shows em Londres, onde ainda era idolatrada, pois seus excessos já a haviam “queimado” no mercado americano, e como ele diz em certa altura: “- Os ingleses são loucos!”
 
 

Sid Luft (Rufus Sewell) seu ex-marido tenta entrar em acordo quanto à guarda dos filhos

Quando tudo sai direito, é uma maravilha para o pianista Burt Rhodes (Royce Pierreson) e o resto da banda

 
 
Na capital britânica, onde o desenho de produção de Kave Quinn (Longe Deste Insensato Mundo), a direção de arte de James Price (Paddington 2) e Tilly Scandrett (Espírito Jovem) e a decoração de sets de Stella Fox (7 Dias em Entebbe) com uma pequena ajuda dos efeitos visuais da Peerless Camera Company reconstroem tanto os ambientes caretas quanto os boêmios da efervescente e louca Londres de James Bond e dos Beatles, e ali Judy dá bastante trabalho para o seu empresário Bernard Delfont (Michael Gambon da cine série Harry Potter) e para a sua assistente Rosalyn Wilder (Jessie Bucley de As Loucuras de Rose) entre momentos de puro brilho, para alívio do músico Burt Rhodes ( Royce Pierreson de Our Girl) que tocava piano na banda do teatro em que se apresentou no Picadilly Circus, e ao longo do filme, onde a música de Gabriel Yared (O Talentoso Ripley) permeia os flashbacks da vida rígida de sua juventude, com seu amigo de tela Mickey Rooney*3 (Gus Barry de Mar Negro) e vemos entre os ensaios e suas tentativas de dormir (e não conseguir sem as pílulas...) surgindo momentos mais intimistas como quando ela faz amizade com o casal gay Dan (Andy Nyman de O Passageiro) e Stan (Daniel Cerqueira de A Mulher de Preto) dividindo momentos belamente tristes, revelando o quanto ela querida pelo público queer por identificar-se com os descriminados pela sociedade*4. Posteriormente Mickey vai ao seu encontro e os dois casam-se (ele seria seu quinto e último marido) e logo tudo começa a desandar...
 
 

O casal Dan (Andy Nyman) e Stan (Daniel Cerqueira) representam o amor da comunidade gay pela estrela

Numa cena em que é entrevistada sua fragilidade se mostra no olhar e na voz

 
Mas neste processo apreciarmos a qualidade do trabalho de Renée Zellweger (que nasceu em 1969, o mesmo ano da morte de Garland) que dedicou um ano treinando canto com o coach vocal Eric Veltro antes das filmagens começarem, e sendo trasupervisionada pelo Diretor Musical Matt Dunkley por quatro meses para acertar a sua vocalização, emulando o tom e a projeção de Garland a um padrão muito semelhante ao da origina, coisa que transborda no número final, dinamizada pela edição de Melanie Oliver (A Garota Dinamarquesa) e que figurinos de Jany Temime (da cine série Harry Potter) e o trabalho do Designer de maquiagem Jeremy Woodhead, que estendeu e afilou a ponta do nariz da atriz por meio de próteses de maquiagem, incluindo próteses dentárias, para aproximá-la do perfil de Garland. A Reel Eye Company fez lentes de contato de cor castanho escuro que foram usadas para aproximar os icônicos olhos da estrela, e uma peruca foi feita para reproduzir o seu igualmente icônico penteado.
 
 
 
o show final, quando ela já está de partida, é uma erupção de vida e intensidade, numa despedida comovente

Mãe e filha: Judy e Liza Minelli

 
 
Ao final o que o filme deixa claro, apesar das simplificações inevitáveis para se condensar a vida da estrela, era que ela era uma artista muito talentosa desde a sua infância, intensa como um vulcão, e talvez por carregar tanta “lava”dentro de si, numa intensidade maior do que ela mesma pudesse segurar acabasse sabotando a si mesma ( em boa parte por causa dos próprios desvios impostos pelo sistema comercial acima dela) por não conseguir encontrar um canal que desse vazão suficiente a tudo que trazia em seu peito, o que a levava a bater de frente com os padrões sociais e as conveniências comerciais vigentes, levando esses choques na sua vida pessoal e amorosa, até a sua morte aos 47 anos. Coisas que costumam ocorrer nesta coisa sem manual de instruções chamada vida...
 
 
 
Dorothy (Garland) e Terry, o cão, entre a Bruxa Má do Oeste (Margareth Hamilton) e Glinda (Bilie Burke) a fada


Notas:

*1: Brincadeira com a tradução de “somewhere over the rainbow” (“algum lugar acima o arco-íris”) título e principal verso da canção título de O Mágico de Oz (1940) de Victor Fleming
 
*2: Sistema vigente até o início dos anos 1950, quando os estúdios contratavam os potenciais astros por um período inicial, e investiam maciçamente neles, com aulas de dicção, canto, dança, interpretação e recebiam uma remuneração, além da cobertura na imprensa necessária para promovê-los, num rígido controle de suas vidas pessoais (por exemplo, quem fosse gay tinha de ser discreto, arrumando relacionamentos ou até casamentos de fachada) exigindo muita disciplina. Findo esse contrato inicial, se o ator/ atriz desse retorno em popularidade apresentasse potencial de bilheteria, assinaria outro contrato, mais interessante financeiramente e seria de fato astro do estúdio, e iria renovando até renegociando esse enquanto ele/ a fossem garantia de bilheteria e se não dessem problemas com escândalos, vida desregrada ou qualquer coisa que arranhasse o bom nome do estúdio.
 
*3: Mickey Rooney (1920-2014) foi um muito popular ator mirim e juvenil da década de 30, tendo estrelado a série de filmes juvenis Mickey McGuire e Andy Hardy, no qual Judy Garland era a sua amiga/ namoradinha Betsy, tendo estrelado3 dos 16 filmes da série, e as colunas de mexericos dos jornais da época especulavam se os dois eram ou não namorados fora das câmeras. Ao crescer Rooney conseguiu seguir carreira longeva em comédias no cinema e TV, mas sem o mesmo brilho de sua fase inicial.
 
*4: Judy Garland e sua personagem-ícone Dorothy de O Mágico de Oz são idolatrados pela comunidade gay americana (da mesma forma que a sua filha Liza Mineli, que não apoiou a realização do filme) sendo muito retratada em Cosplays e shows de transformistas, tendo havido na época da guerra fria uma investigação CIA, procurando espiões soviéticos na marinha americana, e numa dessas buscas, investigado um grupo suspeito, que nas ligações grampeadas sempre se referiam a um ou outro suspeito como confiável por ser “amigo de Dorothy”. Levou um tempo até se descobrir que o que se pensava ser uma célula de espionagem vermelha comandada pela “Codinome Dorothy” era apenas conversa cifrada usando gíria da comunidade, pois “Amigo de Dorothy” seria o equivalente a “entendido”...
 
E o culto à diva persiste...

 

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