sábado, 27 de novembro de 2021

Crítica - Séries: Star Trek: Discovery - 2ª Temporada

 


Retcon, avante!

por Alexandre César 

(Originalmente postado em 20/ 04/ 2019)


Temporada se firma e ao final, abre possibilidades



Quando se tinha uma narrativa de um personagem popular sendo narrada há muito tempo, ia-se, de vez em quando (para situar os fãs tardios) em histórias de linha, sendo rememorados algumas passagens da trajetória desse personagem, sempre mudando de forma cosmética alguns detalhes para que a narrativa fosse o mais contemporânea possível, e o personagem não ficasse datado. A isto chamamos de RETCON, pois atualizamos detalhes e referenciais de época, mas sem interferir no fluxo da trama que continua seguindo desde a sua gênese.

Michael Burnham (Sonequa Martin-Green) entre Nhan (de vermelho) e o Cap. Christopher Pike (Anson Mount, de mostarda) e atrás Saru (Doug Jones) entre o sauriano Linus e o Ten. Connoly (de azul), quase um "camisa-vermelha"

 Às vezes, por razões comerciais e criativas, após um certo tempo decorrido se faz necessário reiniciar todo aquele universo ficcional do zero, pois muitas das relações entre os personagens, seu mundo e suas próprias concepções já não causam mais identificação, não ecoando ao grande público-alvo, ficando datadas e virando objeto de consumo de um nicho restrito. A isto chamamos REBOOT, pois aqui os personagens e seus elementos retornam (ou melhor, reiniciam) procurando cativar uma nova geração de fãs, que de outro jeito só os olhariam como “coisa de velho”.

Pike,logo mostra ser bem diferente do antecessor Lorca, e muda o mobiliário da sua sala, colocando cadeiras

Daí, nos quadrinhos, os constantes recomeços das histórias de Batman, Superman (personagens com mais de 75 anos) na DC Comics e ocasionalmente na Marvel, e no cinema e TV. Temos James Bond, o 007 que ao mudar de ator de Pierce Brosnam para Daniel Craig, ter recomeçado toda a trajetória do agente de Sua Majestade, pois o mundo era outro bem diferente desde a época dos filmes de Sean Connery; e quando J.J.Abrams lançou em 2009 Star Trek, ele usava do ardil da viagem no tempo para retomar o universo de Kirk, Spock, Mc Coy e Cia. Com novos atores e sintonizado a uma audiência que, de outro modo, não se aventurariam a tomar contato com algo que já tinha na época mais de 40 anos, ou seja: uma “coisa de velho”.

Os efeitos visuais estiveram como sempre impecáveis, seja nas cenas de exploração, como nas de batalha


Tendo sido lançado em 2018, dividindo os fãs, mas alçando com sucesso uma nova base de fãs, Star Trek: Discovery chega agora a sua 2ª Temporada com a missão de corrigir os erros da temporada anterior e resgatar os valores e o espírito da série clássica, se revelando não só um prequel (quando relatamos acontecimentos anteriores de uma narrativa já estabelecida, mostrando como as coisa aconteceram para os personagens e seu panorama se formarem), mas na realidade, um grande retcom feito na cara-dura, como se a série original nunca tivesse sido descontinuada e sim continuado ao longo das décadas, incorporando os avanços tecnológicos no uso de materiais de cenografia, figurino, maquiagem e efeitos visuais que tivessem surgido ao longo destes mais de 50 anos. “Moleza” não?

Saru cresce nesta temporada, atingindo um novo patamar, e crescendo na sua relação com Michael

Começando a trama direto do ponto final da 1ª Temporada, quando fomos apresentados à “velha” U.S.S. Enterprise (na verdade uma senhora repaginação do modelo clássico) já tomamos contato com o tema central da trama desta temporada: As ações de misteriosas entidades chamadas de “Anjos Vermelhos”, que aparecem em vários trechos da galáxia, e pela natureza de suas atividades e poderes demonstrados, dominam uma tecnologia de natureza espaço-temporal, muito maior do que a da Frota Estelar, ainda recém-saída da guerra contra o Império Klingon, que dizimou centenas de milhões, e ainda fragilizada para ter de encarar uma possível ameaça.

A sarcástica engenheira Jet Renno (Tig Notaro) foi uma ótima adição à tripulação

Temos em adição ao universo de personagens que gravitam em torno de Michael Burnhan (Sonequa Martin-Green, bem, mas em muitas vezes um tom acima do ideal) a chegada do icônico Capitão Christopher Pike (Anson Mount, ótimo) que de cara nos cativa como seu jeito ao mesmo tempo aventureiro e líder responsável estilo Old School e mais adiante, o jovem Tenente Spock (Ethan Peck, surpreendente) em torno do qual se foca a trama desta temporada, resgatando as feridas de sua vida familiar e, mostrando o porque é um dos maiores pilares da mitologia Treker.

Jefrey Hunt ou Anson Mount? Escolha o seu Pike

Inicialmente a temporada se ressentiu de deixar todos os outros personagens pouco desenvolvidos, girando em torno de Michael, que embora seja a personagem principal, não é a capitão, e pela lógica não deveria ter a palavra final, ficando em alguns momentos um clima estranho tipo “afinal, quem manda nesta banheira?”

"- Cadê o Neo ou o Capitão Nemo, quando precisamos deles!?!"

Felizmente mais adiante os personagens voltam a serem definidos, destacando Paul Stamets (Anthony Rapp), bem como a alferes Sylvia Tilly (Mary Wiseman) que foi a mais prejudicada, ficando na maioria das vezes como (irritante) alívio cômico, mas reencontrando o equilíbrio ao final. Temos o retorno da Capitã (Imperatriz) Philippa Georgiou (Michele Yeooh, ótima) e Ash Tyller (Shazad Latif), o klingon tornado humano cirurgicamente, que agora são agentes da temida “Seção 31”, a CIA da Frota Estelar, com suas “black operations” (que será objeto de uma série derivada de Star Trek: Discovery).

Direto do "Universo -Espelho" : Capitã/ Imperatriz Philippa Georgiou (Michele Yeooh)


Todos tiveram o seu espaço, inclusive o Dr. Culber (Wilson Cruz) que retorna dos mortos num arco superinteressante, se tornando um ótimo personagem (na temporada anterior ele era basicamente apenas “o companheiro do Stamets” e só) mas quem definitivamente cresce é Saru (Doug Jones) que se torna o personagem-face da série, como Spock era da série clássica, Data era de Star Trek: A Nova Geração e até mesmo Odo era de StarTrek: Deep Space Nine. Jones, auxiliado por um bom texto, torna o kelpiano um dos mais queridos alienígenas da atualidade com uma performance inspirada e sensível, indo do inocente ao trágico ou ao irônico com nuances que o tornam real, passível de identificação e empatia com a audiência (Já deve haver muitas crianças querendo um bonequinho dele...). 
 
Sylvia Tilly (Mary Wiseman), Joann Owosekun (Oyin Oladejo), Keyla Detmer (Emily Coutts), na visão de Airian: Personagens e não, adereços

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Além dos personagens fixos, começamos a conhecer o resto da tripulação, permitindo-nos conhecer quem são as tenentes Joann Owosekun (Oyin Oladejo), Keyla Detmer (Emily Coutts), R.A. Bryce (Ronnie Rowe Jr.), Gen Rhys (Choon-Kwok Patrick), a tenente-comandante Airian (Hannah Cheesman), entre outros, que vão deixando de ser apenas parte da cenografia. O problema é quando um personagem não é desenvolvido a série inteira e quando finalmente nos dão a chance e conhecê-lo, é no episódio em que ele morre... Aí fica difícil se criar empatia pelo personagem e lamentar a sua perda (por melhor que seja a cerimônia do funeral...). 
 
Airian (Hannah Cheesman): Oriegem revelada.
 
Houve a adição de novos personagens como a irônica engenheira Jett Reno (Tig Notaro), e a comandante Nhan (Rachael Ancheril) a nova chefe da segurança, egressa da Enterprise e Leland (Alan van Sprang) o chefe da Seção 31 que disputa o poder com Georgiou palmo a palmo numa relação que beira o cartunesco...
 
A nave-símbolo da unificção das casas Klingons: O D7.
 
Os novos showrunners Alex Kurtzman e Michelle Paradise demonstram grande conhecimento desse universo narrativo tal é a eficiência com que pontos críticos da temporada anterior vão sendo consertados em poucos episódios e empurrando a narrativa da história principal adiante. Soluciona-se o problema do visual dos klingons, e numa narrativa digna de Game of Thrones se define os destinos de L´Rell (Mary Chieffo) e de Ash Tyller/ V´oq permitindo inclusive o vislumbre da futura armada com os clássicos cruzadores D-7, marca registrada do Império Klingon. 
 
Funeral no espaço: Remetendo à cena icônica DE "Star Trek II - A Ira de Khan" (1982)

Os icônicos e cabeçudos talosianos, do piloto rejeitado "The Cage" (1964) são repaginados num episódio antológico
 
Vários outros elementos canônicos começam a ser introduzidos, como a mostra dos novos uniformes que irão ser introduzidos na frota, ficando de parabéns a figurinista Gersha Phillips... ao reimaginar os coloridos uniformes da federação com a tecnologia têxtil atual, lhes dando uma imponência que faz a tripulação da Discovery parecer um bando de operários de manutenção. Temos ainda a breve aparição da Número Um (Rebecca Romjin), que vem à Discovery para atualizar o capitão Pike sobre os reparos da Enterprise, que teve uma falha completa de sistemas por uma incompatibilidade com o sistema holográfico de comunicação e, Pike ordena que ele seja todo removido, aderindo à comunicação por tela, que já era sua preferência pessoal (agora, isto é tão “lógico”como ter uma placa de vídeo defeituosa, e você preferir tirá-la e não substituir por outra placa...) Ora bolas...
 
"Jogo-de-gato-e-rato": Leland (Alan Van Sprang), da "Seção 31", Spock (Ethan Peck) e Michael
 
Mas ainda tivemos o já antológico episódio “If Memory Serves” em que revisitamos o planeta Talos IV, mundo do piloto original “The Cage” de 1964 (piloto original recusado que depois Gene Rodenberry reaproveitou no episódio de duas partes “The Menagerie”) num ótimo trabalho de atualização do mundo alienígena e se permitindo uma introdução com o material original que poderia ter sido um desastre caso não tivessem usado da edição esperta que utilizaram, num ótimo fanservice, pavimentando o caminho para a série clássica. Aliás toda a reimaginação do universo clássico mostra a competência do desenho de produção de Tamara Deverell, que joga para escanteio todo o esforço dos filmes de J.J.Abrams, que tinham grandes sacadas, mas na comparação perdem feio...

Ash Tyller/ V´oq e L´Rell (Mary Chieffo): Klingons voltam a parecer klingons.

Posteriormente algumas ideias foram colocadas apesar de um desenvolvimento questionável, como no episódio “Project Daedalus”, decorrente de falta de conceituação de alguns roteiristas com relação a conceitos como upload e download (e principalmente as suas diferenças...) levando a absurdos como uma Inteligência Artificial querer baixar atualizações que lhe trarão a consciência, mas como se pode “querer” sem ter “consciência”??? Graças ao “Grande Pássaro da Galáxia” Jonathan Frakes estava na direção, salvando a missão de naufragar... 
 
Paul Stamets (Anthony Rapp), tira "um parasita" de Tilly, sob o olhar de Saru
 
A "Número Um" (Rebecca Romjin) e Pike: Personagens de "The Cage" repaginados e mostrando o seu valor
 
Aos poucos foi-se “arrumando a casa”, entre um deslize ou outro, surgindo momentos únicos, restaurando o cânon ao final e a sua batalha final apoteótica, pois ironicamente a mesma Discovery que com sua presença subvertia todo o universo Treker (tal qual um “elefante na sala” como diziam os mais puristas...) revitalizou-o para uma nova geração e agora, ao sair rumo a novos destinos que a terceira temporada haverá de se descortinar, e em novas séries derivadas já programadas, como duas animações (uma para o público infantojuvenil pela Nickelodeon e outra voltada para um público mais adulto) e as séries focadas na Seção 31 e outra centrada em Jean-Luc Picard (Patrick Stewart) fora a possibilidade de um série mostrando a Enterprise antes da Série clássica sob o comando de Pike, que provou ser um sólido pilar na mitologia Treker... afinal, não podem ter investido o dinheiro que gastaram na construção dos cenários e figurinos da NCC-1701 apenas para dois episódios... 
 
E eis os D-7 de volta!!!
 
Vamos assinar o abaixo assinado para a CBS pedindo mais Pike galera!!! 
 
A Enterprise antes de um certo James Tiberius sentar na cadeira...
 
Star Trek: Discovery na sua segunda temporada conseguiu o mérito de novamente trazer para o centro das atenções um rico universo ficcional que ao tentar se firmar no cinema, foi ficando gradativamente engessado a um nicho, tornando-se assim não relevante, uma “Coisa de Velho”. Esperemos que agora que a franquia reconquistou o seu veículo ideal (a TV e agora o streaming) os “donos” da franquia não explorem em demasia causando uma superexposição como foi nos anos 1990-2000, dando intervalos regulares entre uma produção e outra para evitar a sua saturação. Que a ganância seja dosada... Houveram sim coisas destoantes, mas foi justamente por causa do hiato em que a franquia foi se confinando num gueto, e perdeu audiência, surgindo toda uma geração que desconhecia e não se identificava com Star Trek, mantendo a sua coerência é verdade mas precisando que novamente se fizesse o trabalho de se ensinar ao grande público, entre erros e acertos, o que é a nossa Jornada nas Estrelas.



 

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