quinta-feira, 25 de novembro de 2021

"A Grande Família" - Crítica - Filmes: Assunto de Família (2018)

  

Empatia, sentimento entre “pessoas horríveis”

por Alexandre César

(Originalmente postado em 10/ 01/ 2019 )

Hirokazu Koreeda discute os laços familiares

“ Não podemos escolher os nossos pais. Os laços que não são de sangue! São os mais fortes!”, diz a avó Hatsue (Kirin Kiki, magnífica), em certa altura de  Assunto de Família (2018, de Hirokazu Koreeda), longa-metragem vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2018, além de ser o representante do Japão no próximo Oscar na categoria de Melhor filme em língua não inglesa.


Os Shibata. Família pobre e amorosa, apesar dos pesares


Aqui, Koreeda segue a linha de analisar as dinâmicas familiares - tema mais caro ao cinema do diretor japonês, como podemos ver em sua filmografia. Em Ninguém Pode Saber (2004), vemos um garoto de 12 anos sendo forçado a cuidar dos irmãos após o sumiço da mãe.  Pais e Filhos (2013) mostra um casal que descobre que o seu pequeno filho havia sido trocado na maternidade e precisam decidir se devem ou não destrocá-lo. Já em Depois da Tempestade (2016), vemos um homem com sérias dificuldades econômicas tentando se reconectar com a ex-mulher e o filho. Neste seu recente trabalho, ele analisa as relações de afeto e aceitação, temperadas com a urgência da necessidade de sobrevivência e com as pequenas atitudes mesquinhas que esta necessidade acaba por nos impor. Tudo isso em um micro universo de “perdedores”, mas ainda assim capazes de grande empatia e de amor entre os seus. 


Osamu Shibata (Lily Franky) e Shota (Jyo Kairi). Pai e filho parceiros no crime


O operário da construção civil Osamu Shibata (Lily Franky), um ferrado“sem eira nem beira”, complementa a sua minguada renda com pequenos roubos nos mercadinhos locais. Ele é um dedicado professor e figura paterna para o menino Shota (Jyo Kairi) que o auxilia em seus golpes, usando de um esperteza que deixaria muitos malandros cariocas morrendo de inveja. Essa malandragem é comum aos personagens de Koreeda (que aqui também assina a história e o roteiro) que mostram uma visão do Japão que estamos menos habituados. Este Japão é um verdadeiro “moedor de carne”, de pessoas humildes que lutam diariamente por sobrevivência e que são capazes de atitudes mesquinhas e vergonhosas para viver mais um dia. 


A fofa e maltratada Yuri (Miyu Sasaki). A "caçulinha"...


Após roubar engenhosamente o mercado local, a dupla encontra Yuri (Miyu Sasaki), uma menina de cinco anos que está sozinha no apartamento vizinho, passando frio e fome. Não fingem “estar olhando para o outro lado”, e levam-na consigo. Sem grandes debates morais quanto ao ato em si, a não ser uma conversa rápida com pontuações de ordem prática, a criança é logo incorporada a um lar depauperado, mas super caloroso. A matriarca Hatsue é uma senhora idosa e dona da casa, cuja figura magnética é o porto seguro onde todos se aninham e dela dependem (a pensão que recebe é um item importante desta dependência). Ainda temos Nobuyo (Sakura Andô), a “mãe” que trabalha numa grande lavanderia e que se apropria de qualquer coisa dentro dos bolsos das roupas em que põe as mãos, e a “filha adolescente” Aki (Mayu Matsuoka), uma stripper que tenta manter os clientes apaixonados. No cômputo geral, todos eles são adeptos de roubar, enganar, mentir e sobreviver como podem, pois são frutos de uma realidade social, trabalhista e econômica precária, bem familiar aos brasileiros.


A "mãe Nobuyo (Sakura Andô) e Osamu literal e emocionalmente acolhem a pequenina


O lar é apertado (ainda mais claustrofóbico pela bagunça formada pelo amontoado de roupas e objetos), mas aconchegante. Cada um tem o seu cantinho em que guarda os seus pequenos tesouros, como a coleção de pequenos objetos achados (ou roubados) do menino, ou a prateleira que a vovó mantém com uma vela, incenso e a “foto do falecido” em sua memória. Ponto para a Direção de Arte, valorizada pela fotografia de Ryuto Kondo, que dá um colorido quente à casa pequena, apertada mas se torna aconchegante em contraste com o colorido de aspecto mais frio, impessoal das ruas, estradas e viadutos. 


Nobuyo diz à Yuri: -" quando te amam, não te batem,te abraçam assim, com muita força e não te largam!"


A história, como de costume nas realizações de Koreeda, mascara uma aparente simplicidade que camufla uma meticulosa encenação, fluindo de forma consistente. A casa é um espaço à parte, onde tabus moralistas pouco penetram, em que é considerado corriqueiro, não um escândalo de proporções devastadoras Aki, a neta de Hatsue, ganhar a vida tirando a roupa e se exibindo.



A avó Hatsue Shibata (Kirin Kiki) um personagem real,graças a magnífica performance da atriz, com pequenos gestos, olhares e pausas


 Essa naturalidade com relação à sexualidade também pode ser visto numa cena de Osamu e Aki, desnudos pelo calor e empapados de suor, fazem sexo como há muito não rolava, ou quando na praia num diálogo bem pai-e-filho” Osamu fala ao garoto que ele não é anormal por sentir “coisas” (ereção) ao ver os seios de uma garota, mas sem impor valores machistas, uma narrativa cativante, orgânica, revelando personagens reais que tem alguns atritos, mas brandas discordâncias naturais, fruto de um amor imenso que os interliga.


A vóvó e a neta Aki (Mayu Matsuoka) que faz strip em cabines. Amor que não julga, pois todos tem defeitos


O diretor segue uma tradição do cinema japonês em retratar dramas familiares, mas com a contemporaneidade como distinção.deixando fluir o tempo necessário de cada trecho narrativo, apenas para acrescentar veracidade nas situações, lidando com diversas formas de amor (fraterno, parental, sexual) e suas consequências, compondo tramas nada óbvias com o intuito de levar o espectador aos questionamentos sobre os sentimentos que exalam de seus personagens, ficando tão bem articulada esta mecânica que questionamos os métodos dos pais, apenas quando os filhos começam a fazê-lo, especialmente na medida em que Shota coloca em xeque o roubo da propriedade alheia e a prática gatuna do “pai”. Antes disso, em função carinho que o casal dispensa a todos, as controvérsias surgem como meros danos colaterais -”se está à venda, não têm realmente um dono!” diz Osamu numa certa altura, ou quando explica à Shota que eles têm que fazer Yuri ajudá-los nos roubos para que ela se sinta participante da família, integrada. Outro momento é quando já enquadrado, ele é inquirido por uma autoridade do porquê de ensinar as crianças a roubar e ele responde  -“É a única coisa que eu sei ensinar a eles!”.




Farofada. Os pobres vão à praia!



A grande sacada do cineasta é tratar de forma quase lírica, afetuosa e extremamente identificável, numa mescla de doçura e amargor na medida ideal, personagens que à primeira vista são uma família dona de muito amor entre seus membros, lutando num mundo difícil, pondo a razão e a emoção em conflito, sem procurar apontar um vencedor. Com o desenrolar, vai se descortinando suas verdadeiras faces e nos mostrando aos poucos do que são capazes. Sabemos que os Shibata são responsáveis por atos hediondos, mesmo assim não deixamos de entender seu lado e suas motivações. Com a delicadeza característica de seu cinema, Koreeda vai construindo cenas que desmontam a ideia de família existente, para depois reforçá-la. Ninguém ali é exatamente parte da mesma família, todos foram parar na mesma casa por circunstâncias sociais fora do controle, mas isso não quer dizer que não possa haver uma espécie de amor gerada a partir da convivência. O terceiro ato ainda que revele conclusões que abalam a nossa fé na certeza de segurança e domínio sobre influências externas e internas em relação a este núcleo, mostra que a construção familiar é feita por um tipo de “contrato” necessário frente à opressão social, em que cada membro oferece o que pode em troca do apoio coletivo de se viver sob o mesmo teto.

 
Yuri e Shota: Ele inicialmente reluta em considerá-la "irmã", mas nada como um dia após o outro...



Ao final constatamos que  Assunto de Família não minimiza os erros graves de seus personagens, mas lhes dispensa um olhar à sua humanidade, à bondade que supera atitudes absolutamente reprováveis, pois enquanto existem pais que publicamente demonstram preocupação com os filhos, mas secretamente (ou até às claras) exalam negligência, abandono e indiferença, isto não é o caso dos Shibata, pois tal qual uma versão de  Os Simpsons  em que o clima  qualquer-coisa fosse trocado pelas práticas criminais, veríamos que, em que se pese erros e responsabilidades, eles são pessoas horríveis, mas um clã condicionado pelo cuidado genuíno e um amor legítimo de um para com o outro. Quantas Famílias Tradicionais” têm isso???
 
 
Toda família é disfuncional...

 

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