Eu sinto uma presença...
por Alexandre César
Guillermo del Toro mescla o fantástico no mundano
#Oscar 2022
1941. Os EUA, entraram na guerra contra o eixo. No centro-oeste, vemos Stanton Carlisle (Bradley Cooper de Sniper Americano em ótima performance) incendia sua casa, com um corpo debaixo do assoalho, e sai pelo mundo afora, encontrando um circo itinerante, onde é contratado pelo dono, Clem Hoatley (Willem Dafoe de Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa aumentando a sua galeria de tipos desprezíveis) que usa a ajuda do rapaz ambicioso para, entre outras coisas, se livrar de um homem, que atuava enjaulado como uma aberração, depois de ter sido viciado em ópio por ele. Boa pinta e carismático, Carlisle se envolve com a sedutora vidente Zeena (Toni Collete de Hereditário) e faz amizade com o seu marido, Pete (Dave Strathairn de The Expanse), um ex-adivinho cujos segredos estão todos redigidos em um caderninho. Ao descobrir que Pete é alcoólatra, Carlisle vê a sua chance de se apoderar do seu conhecimento sobre como manipular a mente humana, e, poder ganhar muito dinheiro.Carlisle se apaixona perdidamente por Molly Cahill (Rooney Mara de Carol situando-se a delicadeza e a ingenuiade) uma artista do circo, cujo show com eletricidade é bastante chamativo. Por isso, decide segui-la, burlando seus padrinhos Bruno (Ron Perlman de Não Olhe Para Cima) o ‘homem-forte’, e Major (Mark Povinelli de Meu Jantar com Hervé) o anão; e usando a sua carinha de bom moço e bastante humildade, ele vai conquistando a confiança de todos ali, e, aos poucos, seus companheiros vão lhe passando todo o conhecimento que têm sobre os números que apresentam, e assim, Carlisle vai usando seu carisma para conquistar as pessoas à sua volta e junto com Molly deixa o circo para trás, se tornando um charlatão de primeira, saindo da vida de um zé-ninguém de passado mal explicado, em meio à lona e a lama, para alçar voos maiores em meio à alta sociedade de Nova York.
Dirigido por Guillermo del Toro (O Labirinto do Fauno) O Beco do Pesadelo (2021) é o primeiro filme dirigido por del Toro desde a consagração com A Forma da Água (2017), aborda de forma bem pessoal*1 o gênero film noir, deixando aqui meio de lado a sua especialização em filmes de terror que se fundem ao imaginário do espectador, que flertam entre o bizarro e o belo, o obscuro e o fantasmagórico, a fantasia e a realidade. Esta característica é o que os fãs identificam e esperam ver em seus filmes, tendo em A Colina Escarlate (2015), um terror de origem gótica, que se tornou o ponto de virada na sua trajetória, ao incorporar um terror clássico no cenário mais popular de Hollywood.
Clem Hoatley (Willem Dafoe) dono do circo, o contrata e vai lhe dando "dicas" |
O roteiro, escrito por del Toro e Kim Morgan (O Quarto Proibido) baseado na novela de Lindsay Gresham já filmado por Edmund Goulding em 1947 (O Beco das Almas Perdidas) com Tyrone Power, Joan Blondell e Coleen Gray, mas aqui, não temos realmente um remake, mas uma nova versão da novela, o que gerou uma alta expectativa para ver como o lúdico entraria nes-ta nova leitura da história, que encerrou o Festival do Rio 2021.
Numa apresentação, a dupla conhece a psiquiatra Dra. Lilith Ritter (Cate Blanchett de Não Olhe Para Cima, um pouco acima do tom, como boa parte das Femmes Fatales) que tal qual o nome*2 é a figura dúbia que leva Carlisle à perdição, sendo fundamental para a história que está sendo contada (sobretudo a sua conclusão) embora as suas motivações um pouco indefinidas, o que reflete uma falha na construção da base da personagem em face da imagem pretendida para ela. Os figurinos de Luis Sequeira (Amor e Monstros) são particularmente acertados na construção de sua personagem que exala elegância e uma aura de perigo real e imediato.
Bruno (Ron Perlman) o ‘homem-forte’, e Major Mosquito (Mark Povinelli) são os protetores de Molly e ficam de olho em Carlisle |
Graças à dúbia doutora Carlisle consulta o Juiz Kimball (Peter Mac Neill de Marcas da Violência) e Mrs. Kimball (Mary Steenburgen de Do Jeito Que Elas Querem) sua adorável esposa, que carregam o trauma com a perda de seu único filho na Primeira Grande Guerra e levados na conversa pelo carismático “médium”*3, que os deixa tão satisfeitos com a certeza da vida pós-morte, que esquece ser sempre bom condicionar tal crença à certas ressalvas, com consequências dramáticas. À partir do casal, Carlisle se aproxima de Ezra Grindle (Richard Jenkins de A Forma da Água) milionário perturbado com a lembrança de seu grande amor do passado, e planeja dar os eu grande golpe, apesar do olhar atento de Anderson (Holt McCallany de Clube da Luta) o capanga do neurastênico ancião. Mas como diz o ditado, “quem tudo quer...”.
A narrativa de del Toro, dialoga com o noir dos anos 40 e 50, principalmente. Se centrando na primeira parte ao mostrar um homem estranho num ambiente excêntrico, e na segunda, quando ele tenta adequar seu interesse a uma realização pessoal, ampliando o entendimento da obra, mostrando como o homem pode se tornar uma aberração por si próprio, auxiliado pela edição de Cam McLauchlin (Espírito Jovem) que dá o tempo certo para a história ser contada de forma eficiente, sem se arrastar ou correr demais, auxiliada pela grandiosa trilha sonora orquestral de Nathan Johnson (Entre Facas e Segredos) que sublinha e aproveita bem os momentos dramáticos.
Como todo filme de del Toro, O Beco do Pesadelo espelha um interesse genuíno pelo es-petáculo, que permeia cada aspecto da produção. Seja no soberbo desenho de produção de Tamara Deverell (Star Trek: Discovery), que junto com a direção de arte de Brandt Gordon (Shazam!) e a decoração de sets de Shane Vieau (Máquinas Mortais) criam ambientes como o circo itinerante, que remonta aos circos dos filmes de Tim Burton, mas de aspecto mais gasto e usado (dando verossimilhança ao conjunto) que mistura a magia de truques e atrações com a precarie-dade do início do século passado. que contrastam com as instalações imponentes da mansão de Ezra Grindle, o clube de grã-finos em que Carlisle e Molly se apresentam, ou o elegante consultório da Dra. Lilith Ritter. A relação entre estes ambientes se complementa à medida que o protagonista descobre e passa a explorar falhas que surgem onipresentes nas várias classes sociais – ainda que algumas delas tenham recursos para maquiar a própria podridão.
A bela fotografia de Dan Laustsen (A Forma da Água) dialoga com outra homenagem ao gênero deste século: Dália Negra (2006) de Brian De Palma, pois os temas de ambas as películas se re-lacionam ao mistério da clarividência, lidando mais com o mistério, o horror e o suspense, que ron-dam um bom policial e suas referências discretas à história, valorizando as locações em Buffalo, Nova York e em Hamilton (Ontario) e Toronto, Canadá, que tiveram uma interrupção de seis me-ses por conta da pandemia, o que casualmente foi benéfico para Roney Mara*4, havendo um bom uso para complementar o quadro dos efeitos visuais das empresas Company 3, Mirror3D VFX, Mr. X e efeitos práticos de Legacy Effects, supervisionados por Dennis Berardi (Ad Astra: Rumo às Estrelas).
Omulti-milionário Ezra Grindle (Richard Jenkins) contrata os serviços de Carlisle para contactar sua falecida amada, do além |
Ao final, O Beco do Pesadelo inova ao trazer uma perspectiva moderna a um clássico do cinema noir, sem a pretensão de “resgatá-lo” ou “salvá-lo”, se aproveitando sua forma para discutir um tema que é tão caro para seu realizador, que caminha num terreno fértil para sonhos e pesadelo, criando os rumos da segunda parte, quando a história leva seu protagonista para os luxuosos hotéis, consultórios e mansões da parte rica de Chicago. Ao se pautar mais no livro de William Lindsay Gresham do que no filme de Edmund Goulding, de 1947, a trama ganha um novo fôlego. Na época, ambas as obras foram fonte de assombro e reflexão graças a um conjunto de características que caem como uma luva com o estilo de Guillermo del Toro, acostumado a usar horror fantástico para refletir sobre a condição humana com doses de comentários sociais. Se a mensagem de que o homem é o “verdadeiro monstro” ou “o homem é o predador do homem” já ficou datada, Guillermo del Toro volta a bater nessa tecla para construir uma sinfonia imperfeita, mas memorável onde os homens, são a ameaça e as atrações não tão belas de um circo humano, onde os cenários oníricos e os figurinos escondem segredos, e muitas vezes, algo mais obscuro.
*1: Numa entrevista sobre o filme, del Toro disse querer fugir aos clichês narrativos do gênero como "Um bando de caras usando venezianas, um ventilador e chapéus de feltro". Segundo ele, o estilo noir, no sentido de narrar "uma queda, uma tragédia", estará lá, mas “nada dos clichês, como saxofone ou uma voz em off, sendo parte do cânon do film noir, e honrando a história do gênero”.
*2: Lilith, em hebraico: לילית, em antigo árabe: ليليث, foi uma deusa ou demónio feminino adorada na Mesopotâmia e na Babilônia, associada com ventos e tempestades, que se imaginavam ser portadores de enfermidades e morte.
*3: Durante uma entrevista em janeiro de 2022 com Terry Gross no programa da Rádio Pública Nacional "Fresh Air", Guillermo del Toro disse que uma das razões pelas quais ele há muito se interessa pelo assunto de vigaristas e médiuns falsos que atacam pessoas vulneráveis e em luto (como os retratados neste filme) foi que, em 1998, quando seu pai foi sequestrado no México e mantido como refém, sua família foi imediatamente atacada por vigaristas que alegavam ser médiuns. del Toro contou, "um dos primeiros avisos que vieram ... do [negociador de reféns] - ele disse, cuidado com os 'médiuns'. Eles vão aparecer muito cedo. E assim que desliguei o telefone fui ver minha mãe, e havia dois médiuns sentados na sala dizendo a ela que sabiam e que poderiam nos levar até onde meu pai estava porque podiam senti-lo. E isso fez uma impressão indelével. E essa crueldade, que eu vi em primeira mão, também faz parte do espírito deste filme." Fora. Mas o que eles estavam dizendo é que eles podiam sentir meu pai, que ele estava tentando se comunicar com ela. E o discurso era quase idêntico ao que eles - o que Stan diz no filme... a primeira coisa em que eles se prenderam foi que ele te ama muito, muito mesmo, e ele está tentando te alcançar, e ele sabe que você pode salvá-lo. Eles usam os mesmos ganchos. E isso era evidente para mim. Mas minha mãe por um momento estava abrigando esperança."
*4: A atriz estava grávida de poucas semanas quando as filmagens se iniciaram, sendo o intervalo providencial para que ela tivesse seu bebê e retomasse à filmagens já em forma, permitindo cenas de corpo inteiro, sem ter de apelar para uma dublê de corpo.
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