domingo, 20 de fevereiro de 2022

Encarando as "máscaras" - Crítica – Filmes: Morte no Nilo (2022)

 


"- É só deixar crescer um bigode!"

por Alexandre César

Corajosamente Hercule Poirot repensa sua vida

 


 

Primeira Guerra Mundial. O jovem soldado Hercule Poirot (Kenneth Branagh de Assassinato no Expresso do Oriente) é ferido em combate. No hospital de campanha, a doce Catherine (Susannah Fielding de Life) lhe sugere o característico bigode para solucionar uma questão estética. Ao final, os horrores da guerra e a perda de sua amada lhe deixaram cicatrizes físicas e emocionais, que acabaram por moldar a sua personalidade fria e analítica, que o tornou um dos maiores detetive de sua época.
 
 
Londres 1937. O sexy casal Jaqueline de Bellefort (Emma Mackey) e seu noivo Simon Doyle (Armie Hammer) num clube noturno

 
Londres 1937. o já consagrado investigador, assiste, num clube noturno, o que ele chamaria de “primeiro ato” de um drama romântico, quando a multimilionária Linnet Ridgeway (Gal Gadot de Mulher- Maravilha 1984) encontra sua amiga de infância Jaqueline de Bellefort (Emma Mackey de Sex Education) e seu noivo Simon Doyle (Armie Hammer de Me Chame pelo Seu Nome). A troca de olhares entre a rica herdeira e o noivo da amiga, mostra que ambos se ‘balançaram’ um pelo outro.
 
 
a multimilionária Linnet Ridgeway (Gal Gadot) amiga de infância Jaqueline é apresentada a Simon

Logo numa primeira dança, fica claro que Doyle e Linnet se sentiram atraídos

 
Seis meses depois, após resolver o famoso caso do assassinato no luxuoso trem que cruzava a Rota do Túnel Simplon*1, Poirot, durante suas férias no Egito, reencontra seu amigo bom vivant Bouc (Tom Bateman de Into the Dark) que está com sua mãe, a dominadora Euphemia (Annette Bening de Capitã Marvel) e, juntos seguem viagem no luxuoso barco de passageiros Karnak, singrando o rio Nilo.
 
 
Seis meses depois Hercule Poirot (Kenneth Branagh) está de férias no Egito admirando a esfinge e as pirâmides
 
 
Uma vez a bordo, o detetive belga testemunha o noivado de dois conhecidos de Bouc: Linnet Ridgeway e Simon Doyle! A entourage dos noivos é composta da cantora de blues Salome Otterbourne (Sophie Okonedo de A Roda do Tempo) e sua sobrinha e empresária Rosalie (Letitia Wright de Pantera Negra); Katchadourian (Ali Fazal de Victoria e Abdul: O Confidente da Rainha) primo e gerente dos investimentos de Linnet; Marie Van Schuyler (Jennifer Saunders de Ghosts) a madrinha grã-fina e socialista, que anda sempre acompanhada de sua enfermeira e acompanhante Bowers (Dawn French de The Vicar of Dibley) e o ‘Doutor’. Windlesham (Russel Brand de O Pior Trabalho do Mundo aqui numa performance contida) um amigo que sempre foi apaixonado por Linnet e Louise Bourget (Rose Leslie de Game of Thrones), a criada pessoal da milionária. Todos a bordo torcendo pela felicidade do casal, e testemunhas do ‘bode na sala’ quando a sensual e revoltada Jaqueline de Bellefort adentra no barco, com sua aura de noiva descartada e ultrajada, destilando veneno, criando com seu sarcasmo, um incômodo palpável.
 
 
Poirot reencontra seu amigo bom vivant Bouc (Tom Bateman) acompanhando sua mãe, a dominadora Euphemia (Annette Bening), que o convidam para uma festa...

...cujos anfitriões são Simon Doyle e Linnet Ridgeway, agora noivos e prestes a se casarem!

 
À noite, após Linnet se recolher, Simon tem uma discussão acalorada com Jaqueline, que passionalmente o alveja na perna com uma pistola calibre 22 (“Praticamente um brinquedo!” como diz um personagem...). O noivo é medicado e a chorosa agressora, sedada, tendo a arma desaparecido no salão do navio.
 
 
Poirot, que havia testemunhado à distância, o início do relacionamento, é apresentado ao casal 

 
No dia seguinte se descobre que Linnet Ridgeway foi assassinada com um tiro à queima-roupa na têmpora esquerda por uma bala calibre 22. Como Jaqueline estava sedada, estava descartada como suspeita, restando a Poirot colocar sua mente perceptiva em ação, desvendando que a doce Linnete não era tão doce assim, e que os amáveis convidados, também tinham seus atritos com a falecida e a sua família, de passado questionável. Ele deverá usar as células cinzentas de seu cérebro para solucionar o caso, enquanto repensa também os rumos de sua vida.
 

Mas, no auge da feliz comemoração do casal...
...surge Jaqueline de Bellefort, o "anjo destruidor"
 
 
Dirigido por Kenneth Branagh, Morte no Nilo (2022), dá sequência a Assassinato no Expresso do Oriente (2017) e após o fiasco de Artemis Fowl: O Mundo Secreto (2020 - que foi direto para o streaming) Branagh precisava urgentemente de um sucesso para deixar para atrás esse passo em falso, e nada melhor do que retornar à sua bem-sucedida recriação do detetive belga com TOC, explorando mais seu passado e, a construção de seu layout excêntrico.
 
 
Dentre os convidados, temos Marie Van Schuyler (Jennifer Saunders) a madrinha grã-fina e socialista sempre acompanhada de sua enfermeira Bowers (Dawn French)...
 
 
Escrito por Michael Green (Blade Runner 2049) baseado no livro de Agatha Christie, o roteiro teve de sofrer alterações por conta de paralisações por conta da pandemia de COVID-19, vazamento do próprio roteiro e por conta do escândalo de assédio, envolvendo o ator Armie Hammer, o que obrigou a 20th Century Studios à mudar a estratégia de marketing do filme, mas tal qual o filme anterior, além de atualizar as relações entre alguns personagens (dois deles se revelam LGBT de forma sutil) sem comprometer a trama, mantém o diferencial de mostrar que os casos investigados influem de forma indelével no próprio Poirot, (que em todas as versões anteriores sempre se mantinha impermeável aos eventos) desenvolvendo o seu arco de personagem, que, tal qual no Expresso do Oriente começa de uma forma, e ao final revela uma mudança resultante da observação da condição humana, e aqui acrescentando mais camadas, pois se mais importante do que o ponto de chegada, é a jornada em si, Poirot, que pela primeira vez cita a sua fixação nas “pequenas células cinzentas do cérebro” , ao admitir que “- Uma pessoa apaixonada é capaz de qualquer coisa! O amor nos leva a fazer coisas negligentes e imprudentes: Uma rocha cai, fruto do impulso, um tiro...” e nisto ele também reavalia a sua máscara de detetive frio e cerebral, que afasta as possibilidades de encontrar uma felicidade possível no mundo real.
 

...o ‘Doutor’. Windlesham (Russel Brand) que sempre foi amou Linnet e Louise Bourget (Rose Leslie) a criada particular da milionária

O uso do CGI recria monumentos com as pirâmides e a esfinge com um "quê" de fake, dando um tom teatral como se fosse uma ilustração de livro
 
 
Do resto do elenco, o Boc de Tom Bateman continua um 'crianção' (revelando novas camadas); Annette Benning transmite a preocupação de sua mãe com o rebento; Sophie Okonedo transmite ironia e uma sensualidade sutil; a dupla Jennifer Saunders e Dawn French cumpre bem o seu papel, mas temos de reconhecer que enquanto a química de Hammer com Emma Mackey é boa, o mesmo não se dá entre ele e Gal Gadot, parecendo um casal muito asséptico e sem graça.
 
 
.Os convidados transferem as comemorações para o luxuoso Karnak, um verdadeiro hotel flutuante. O barco foi todo construído em estúdio, com o CGI  completando o resto da ambientação

 
A edição de Úna Ní Dhonghaile (Belfast) vai montando o caleidoscópio de informações que são colocadas em cena, tentando evitar deixar o fluxo narrativo cansativo (em especial na primeira metade), embora talvez cinco ou seis minutos a menos tivesse dinamizado mais a narrativa, que a música de Patrick Doyle (Cinderela) com seus acordes, procura sublinhar os climas e as dúvidas referentes às motivações de cada personagem e até do próprio Poirot (que aqui está menos atlético do que no filme anterior) quanto as suas próprias escolhas, face à vida...
Com locações no Cairo, em Luxor e Aswan, no Egito, Marrocos e Inglaterra, mas devido à pandemia, a maior parte das cenas, foi rodada no Longcross Studios em Surrey, no Reino Unido, onde o desenho de produção de Jim Clay (Assassinato no Expresso do Oriente) junto com a direção de arte de Andrew Ackland-Snow (da cine série Harry Potter), Dominic Masters (Artemis Fowl: O Mundo Secreto), Ravi Bansal (Elysium), Steven Lawrence (Rogue One: Uma História Star Wars), Katrina Mackay (Cinderela) Mike Stallion (Star Wars: A Ascensão Skywalker) e Stephen Swain (1917), criaram os interiores onde a trama se passa como soturno e sensual clube noturno em Londres, o luxuoso Karnak de aspecto clean e influência art deco, e várias partes dos monumentos egípcios. A decoração de sets de Abi Groves (Como Você Quiser) e Amanda Wilgrave nos arranjos florais se encarregou de dar um toque mais sutil aos cenários, com adereços de cena cruciais ao desenvolvimento da trama.
 
 
No Karnak, a cantora de blues Salome Otterbourne (Sophie Okonedo) e sua sobrinha e empresária Rosalie (Letitia Wright ao piano) alegram a festa

A direção de arte é primorosa nos detalhes dos interiores do navio como nesta cabine


A fotografia do habitual colaborador Haris Zambarloukos (Belfast) é bela, mas devido às restrições da pandemia, acabou recorrendo muito ao uso do CGI, e um dado interessante na supervisão de efeitos visuais de Jon Bowen (Mulher- Maravilha 1984) é que os efeitos visuais de 4DMax, Double Negative (DNEG), Host VFX, Lola Visual Effects e Raynault VFX nas sequências panorâmicas têm um aspecto iconográfico meio fake, como que assumindo serem ilustrações de livros, lembrando nas cenas do Egito as panorâmicas da cine série A Múmia com Brandon Fraser, e as vistas aéreas de Londres noturna e crepuscular remetem às clássicas matte paintings de Peter Ellenshaw em Mary Poppins (1964).
 
 
Chega a noite, e com a festa e as comemorações, chegará o crime...

 
Os figurinos de Paco Delgado (A Garota Dinamarquesa) delimitam os perfis dos personagens, e suas posições no tabuleiro desse jogo de poder, com destaque para a oposição entre a rica, mas sutil e delicada Linnet Ridgeway, com o uso de prata e branco, em oposição ao furacão sensual Jaqueline de Bellefort, cujos vestidos vermelhos são dignos de Jessica Rabbit*2...
 
 
A Magia do Cinema: Aqui o Karnak na sua cena final, com o CGI compondo o quadro...

...aqui o navio em sua situação real, no estúdio, em condições controladas

 
Ao final, Morte no Nilo tem um tom de despedida, numa trama que embora inferior ao primeiro filme, ainda tem seus méritos graças à competência do ator/ diretor que domina o espetáculo com olhares, inflexão de voz e linguagem corporal, além de um grande domínio no teatral desfecho final, que não nega seu passado shakespeariano... O filme parece fechar a passagem de Branagh pelo universo ficcional do detetive belga, a não ser que o (pouco provável) retorno de bilheteria justifique uma nova sequência (livros não faltam), mostrando que as experiências que vivemos nos moldam, tenhamos ou não uma atitude distante quanto a ela. com uma cena final cuja simplicidade e singeleza nos mostra a coragem do personagem de remover sua “máscara” e encarar de frente a vida e suas possibilidades, o que seria interessante de se assistir, embora provavelmente fosse levar o personagem a se distanciar mais da concepção original de Agatha Christie..., mas, que seria curioso de se ver, seria.
 

Logo as mortes se sucedem levando Poirot a tomar uma atitude mais enérgica






Notas:
 
 

 
*1: Expresso do Oriente – Rota via Túnel Simplon: Rota partia de Istambul, passando por Sófia (Turquia), Belgrado, Vinkovci, Zagreb, Liubiliana (antiga Iugoslávia), Trieste, Veneza, Milão e outras cidades italianas, passando através do Túnel Simplon, para a França, passando por Lausanne, Dijon e parando em Paris, onde retornava no sentido contrário. Nesta rota (uma das três da Companhia) ocorrem os eventos do livro de Agatha Christie.
 
 
 

*2: Jessica Rabbit: Personagem do filme metade animação e metade live-action Uma Cilada para Roger Rabbit (1988) de Robert Zemeckis. A voluptuosa Jessica (dublada por Kathlenn Turner e Amy Irving) é claramente inspirada nas Femmes Fatales dos filmes noir, em especial nas estrelas Rita Hayworth e Veronica Lake.




"- Humpft, construtores egípcios.."

 

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