"- É só deixar crescer um bigode!"
por Alexandre César
Corajosamente Hercule Poirot repensa sua vida
Primeira Guerra Mundial. O jovem soldado Hercule Poirot (Kenneth Branagh de Assassinato no Expresso do Oriente) é ferido em combate. No hospital de campanha, a doce Catherine (Susannah Fielding de Life) lhe sugere o característico bigode para solucionar uma questão estética. Ao final, os horrores da guerra e a perda de sua amada lhe deixaram cicatrizes físicas e emocionais, que acabaram por moldar a sua personalidade fria e analítica, que o tornou um dos maiores detetive de sua época.
Londres 1937. O sexy casal Jaqueline de Bellefort (Emma Mackey) e seu noivo Simon Doyle (Armie Hammer) num clube noturno |
Londres 1937. o já consagrado investigador, assiste, num clube noturno, o que ele chamaria de “primeiro ato” de um drama romântico, quando a multimilionária Linnet Ridgeway (Gal Gadot de Mulher- Maravilha 1984) encontra sua amiga de infância Jaqueline de Bellefort (Emma Mackey de Sex Education) e seu noivo Simon Doyle (Armie Hammer de Me Chame pelo Seu Nome). A troca de olhares entre a rica herdeira e o noivo da amiga, mostra que ambos se ‘balançaram’ um pelo outro.
a multimilionária Linnet Ridgeway (Gal Gadot) amiga de infância Jaqueline é apresentada a Simon |
Seis meses depois, após resolver o famoso caso do assassinato no luxuoso trem que cruzava a Rota do Túnel Simplon*1, Poirot, durante suas férias no Egito, reencontra seu amigo bom vivant Bouc (Tom Bateman de Into the Dark) que está com sua mãe, a dominadora Euphemia (Annette Bening de Capitã Marvel) e, juntos seguem viagem no luxuoso barco de passageiros Karnak, singrando o rio Nilo.
Seis meses depois Hercule Poirot (Kenneth Branagh) está de férias no Egito admirando a esfinge e as pirâmides |
Uma vez a bordo, o detetive belga testemunha o noivado de dois conhecidos de Bouc: Linnet Ridgeway e Simon Doyle! A entourage dos noivos é composta da cantora de blues Salome Otterbourne (Sophie Okonedo de A Roda do Tempo) e sua sobrinha e empresária Rosalie (Letitia Wright de Pantera Negra); Katchadourian (Ali Fazal de Victoria e Abdul: O Confidente da Rainha) primo e gerente dos investimentos de Linnet; Marie Van Schuyler (Jennifer Saunders de Ghosts) a madrinha grã-fina e socialista, que anda sempre acompanhada de sua enfermeira e acompanhante Bowers (Dawn French de The Vicar of Dibley) e o ‘Doutor’. Windlesham (Russel Brand de O Pior Trabalho do Mundo aqui numa performance contida) um amigo que sempre foi apaixonado por Linnet e Louise Bourget (Rose Leslie de Game of Thrones), a criada pessoal da milionária. Todos a bordo torcendo pela felicidade do casal, e testemunhas do ‘bode na sala’ quando a sensual e revoltada Jaqueline de Bellefort adentra no barco, com sua aura de noiva descartada e ultrajada, destilando veneno, criando com seu sarcasmo, um incômodo palpável.
Poirot reencontra seu amigo bom vivant Bouc (Tom Bateman) acompanhando sua mãe, a dominadora Euphemia (Annette Bening), que o convidam para uma festa... |
...cujos anfitriões são Simon Doyle e Linnet Ridgeway, agora noivos e prestes a se casarem! |
À
noite, após Linnet se recolher, Simon tem uma discussão acalorada com
Jaqueline, que passionalmente o alveja na perna com uma pistola calibre
22 (“Praticamente um brinquedo!” como diz um personagem...). O noivo é medicado e a chorosa agressora, sedada, tendo a arma desaparecido no salão do navio.
No
dia seguinte se descobre que Linnet Ridgeway foi assassinada com um
tiro à queima-roupa na têmpora esquerda por uma bala calibre 22. Como
Jaqueline estava sedada, estava descartada como suspeita, restando a
Poirot colocar sua mente perceptiva em ação, desvendando que a doce
Linnete não era tão doce assim, e que os amáveis convidados, também
tinham seus atritos com a falecida e a sua família, de passado
questionável. Ele deverá usar as células cinzentas de seu cérebro para
solucionar o caso, enquanto repensa também os rumos de sua vida.
Dirigido por Kenneth Branagh, Morte no Nilo (2022), dá sequência a Assassinato no Expresso do Oriente (2017) e após o fiasco de Artemis Fowl: O Mundo Secreto (2020 - que foi direto para o streaming) Branagh precisava urgentemente de um sucesso para deixar para atrás esse passo em falso, e nada melhor do que retornar à sua bem-sucedida recriação do detetive belga com TOC, explorando mais seu passado e, a construção de seu layout excêntrico.
Escrito por Michael Green (Blade Runner 2049) baseado no livro de Agatha Christie, o roteiro teve de sofrer alterações por conta de paralisações por conta da pandemia de COVID-19, vazamento do próprio roteiro e por conta do escândalo de assédio, envolvendo o ator Armie Hammer, o que obrigou a 20th Century Studios à mudar a estratégia de marketing do filme, mas tal qual o filme anterior, além de atualizar as relações entre alguns personagens (dois deles se revelam LGBT de forma sutil) sem comprometer a trama, mantém o diferencial de mostrar que os casos investigados influem de forma indelével no próprio Poirot, (que em todas as versões anteriores sempre se mantinha impermeável aos eventos) desenvolvendo o seu arco de personagem, que, tal qual no Expresso do Oriente começa de uma forma, e ao final revela uma mudança resultante da observação da condição humana, e aqui acrescentando mais camadas, pois se mais importante do que o ponto de chegada, é a jornada em si, Poirot, que pela primeira vez cita a sua fixação nas “pequenas células cinzentas do cérebro” , ao admitir que “- Uma pessoa apaixonada é capaz de qualquer coisa! O amor nos leva a fazer coisas negligentes e imprudentes: Uma rocha cai, fruto do impulso, um tiro...” e nisto ele também reavalia a sua máscara de detetive frio e cerebral, que afasta as possibilidades de encontrar uma felicidade possível no mundo real.
Do resto do elenco, o Boc de Tom Bateman continua um 'crianção' (revelando novas camadas); Annette Benning transmite a preocupação de sua mãe com o rebento; Sophie Okonedo transmite ironia e uma sensualidade sutil; a dupla Jennifer Saunders e Dawn French cumpre bem o seu papel, mas temos de reconhecer que enquanto a química de Hammer com Emma Mackey é boa, o mesmo não se dá entre ele e Gal Gadot, parecendo um casal muito asséptico e sem graça.
.Os
convidados transferem as comemorações para o luxuoso Karnak, um
verdadeiro hotel flutuante. O barco foi todo construído em estúdio, com o
CGI completando o resto da ambientação |
A edição de Úna Ní Dhonghaile (Belfast) vai montando o caleidoscópio de informações que são colocadas em cena, tentando evitar deixar o fluxo narrativo cansativo (em especial na primeira metade), embora talvez cinco ou seis minutos a menos tivesse dinamizado mais a narrativa, que a música de Patrick Doyle (Cinderela) com seus acordes, procura sublinhar os climas e as dúvidas referentes às motivações de cada personagem e até do próprio Poirot (que aqui está menos atlético do que no filme anterior) quanto as suas próprias escolhas, face à vida...
Com locações no Cairo, em Luxor e Aswan, no Egito, Marrocos e Inglaterra, mas devido à pandemia, a maior parte das cenas, foi rodada no Longcross Studios em Surrey, no Reino Unido, onde o desenho de produção de Jim Clay (Assassinato no Expresso do Oriente) junto com a direção de arte de Andrew Ackland-Snow (da cine série Harry Potter), Dominic Masters (Artemis Fowl: O Mundo Secreto), Ravi Bansal (Elysium), Steven Lawrence (Rogue One: Uma História Star Wars), Katrina Mackay (Cinderela) Mike Stallion (Star Wars: A Ascensão Skywalker) e Stephen Swain (1917), criaram os interiores onde a trama se passa como soturno e sensual clube noturno em Londres, o luxuoso Karnak de aspecto clean e influência art deco, e várias partes dos monumentos egípcios. A decoração de sets de Abi Groves (Como Você Quiser) e Amanda Wilgrave nos arranjos florais se encarregou de dar um toque mais sutil aos cenários, com adereços de cena cruciais ao desenvolvimento da trama.
No Karnak, a cantora de blues Salome Otterbourne (Sophie Okonedo) e sua sobrinha e empresária Rosalie (Letitia Wright ao piano) alegram a festa |
A fotografia do habitual colaborador Haris Zambarloukos (Belfast) é bela, mas devido às restrições da pandemia, acabou recorrendo muito ao uso do CGI, e um dado interessante na supervisão de efeitos visuais de Jon Bowen (Mulher- Maravilha 1984) é que os efeitos visuais de 4DMax, Double Negative (DNEG), Host VFX, Lola Visual Effects e Raynault VFX nas sequências panorâmicas têm um aspecto iconográfico meio fake, como que assumindo serem ilustrações de livros, lembrando nas cenas do Egito as panorâmicas da cine série A Múmia com Brandon Fraser, e as vistas aéreas de Londres noturna e crepuscular remetem às clássicas matte paintings de Peter Ellenshaw em Mary Poppins (1964).
Os figurinos de Paco Delgado (A Garota Dinamarquesa) delimitam os perfis dos personagens, e suas posições no tabuleiro desse jogo de poder, com destaque para a oposição entre a rica, mas sutil e delicada Linnet Ridgeway, com o uso de prata e branco, em oposição ao furacão sensual Jaqueline de Bellefort, cujos vestidos vermelhos são dignos de Jessica Rabbit*2...
Ao final, Morte no Nilo tem um tom de despedida, numa trama que embora inferior ao primeiro filme, ainda tem seus méritos graças à competência do ator/ diretor que domina o espetáculo com olhares, inflexão de voz e linguagem corporal, além de um grande domínio no teatral desfecho final, que não nega seu passado shakespeariano... O filme parece fechar a passagem de Branagh pelo universo ficcional do detetive belga, a não ser que o (pouco provável) retorno de bilheteria justifique uma nova sequência (livros não faltam), mostrando que as experiências que vivemos nos moldam, tenhamos ou não uma atitude distante quanto a ela. com uma cena final cuja simplicidade e singeleza nos mostra a coragem do personagem de remover sua “máscara” e encarar de frente a vida e suas possibilidades, o que seria interessante de se assistir, embora provavelmente fosse levar o personagem a se distanciar mais da concepção original de Agatha Christie..., mas, que seria curioso de se ver, seria.
Notas:
*1: Expresso do Oriente – Rota via Túnel Simplon: Rota partia de Istambul, passando por Sófia (Turquia), Belgrado, Vinkovci, Zagreb, Liubiliana (antiga Iugoslávia), Trieste, Veneza, Milão e outras cidades italianas, passando através do Túnel Simplon, para a França, passando por Lausanne, Dijon e parando em Paris, onde retornava no sentido contrário. Nesta rota (uma das três da Companhia) ocorrem os eventos do livro de Agatha Christie.
*2: Jessica Rabbit: Personagem do filme metade animação e metade live-action Uma Cilada para Roger Rabbit (1988) de Robert Zemeckis. A voluptuosa Jessica (dublada por Kathlenn Turner e Amy Irving) é claramente inspirada nas Femmes Fatales dos filmes noir, em especial nas estrelas Rita Hayworth e Veronica Lake.
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