Culpa, rancor e remorso sobre trilhos...
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Tamanho é documento: Após Albert Finney, David Suchet e Alfred Molina com seus bigodinhos, é a vez de Kenneth Branagh ser Herccule Poirot com o seu bigodão!!! |
1934. Após resolver um caso em Istambul, o conceituado detetive belga Hercule Poirot (Kenneth Branagh) é convocado via telegrama a retornar urgentemente para Londres, obrigando-o a tomar o famoso Expresso do Oriente, uma das mais luxuosas linhas de trens de passageiros da Europa e do mundo. Logo de cara ele estranhou que o trem estivesse lotado (coisa que não costumava acontecer naquela época do ano), mas, para sua sorte (ou azar), uma desistência de última hora lhe garante acesso ao trem.
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A estação de Istambul, recriada em estúdio na Inglaterra |
Já na plataforma, como é de seu costume, vai analisando os outros passageiros, conjecturando com o seu natural poder de dedução. No trem, é abordado por Ratchett (Johnny Depp), indivíduo que lhe oferece quantia considerável para descobrir quem o está ameaçando de morte. Poirot recusa a oferta – talvez por já ter compromisso firmado ou porque não gostou da atitude arrogante e desagradável dele.
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Ratchett (Johnny Deep):a "vítima"... |
Durante a viagem, o trem, na noite seguinte a partida, fica imobilizado por uma nevasca poderosa, que soterra os trilhos em um trecho que cruza a Iugoslávia e descobrimos que Ratchett foi assassinado com doze facadas. O diretor da linha, amigo de Poirot, pede a ele que resolva o caso antes que as autoridades iugoslavas cheguem com o limpa trilhos e as perguntas. Poirot assume o caso sabendo que seja quem for que tenha matado Ratchett ainda se encontra (ou se encontram) no trem, pois o crime ocorreu com o veículo em movimento, e este só parou com a interrupção dos trilhos pela neve. O criminoso também não deve ter fugido sob pena de morrer congelado na neve. Intrigado, ele investiga o passado do morto e seus “esqueletos no armário”, descobrindo que, todos os passageiros tinham um motivo para querer matá-lo. Aí, enquanto vai montando o quebra-cabeças dessa “festa estranha com gente esquisita” o nosso detetive chega não a uma, mais a duas conclusões: Uma satisfará as autoridades, a outra, dará um bom debate em aulas de Direito Criminal...
Este é o enredo básico de Este é o enredo básico de Assassinato no Expresso do Oriente (2017) dirigido pelo próprio Kenneth Branagh. Esta é a segunda adaptação cinematográfica do romance de Agatha Christie (a primeira de 1974 foi dirigida por Sidney Lumet com Albert Finney como Poirot). Também já houve duas adaptações televisivas: uma americana, de 2001, dirigida por Carl Schenkel e com Alfred Molina como Poirot; e outra inglesa, em 2011, como episódio da longeva série de 13 temporadas Poirot da BBC, que aqui no Brasil passava no GNT, e apresentava David Suchet como o detetive belga. Também há uma versão para a TV japonesa de 2015 em duas partes, além de adaptações para o rádio, audiobooks e até games. A história serve de referências em vários produtos da cultura pop, indo de desenhos da Warner até a um episódio de Doutor Who*. Tarefa complexa adaptar uma história amplamente conhecida para uma nova geração mais afeita às narrativas aceleradas, que facilmente se cansa de algo que peça um maior tempo de absorção. Com algumas ressalvas, Branagh consegue atingir o seu objetivo, tirando ótimo partido da atual tecnologia audiovisual para contar uma boa história envolvendo a plateia.
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Sexy & Madura: Sai Lauren Bacall, entra Michelle Pfeifer... |
Com um roteiro enxuto de Michael Green, toda e qualquer informação da história original que possa ser transformada em imagem é transposta para a tela, seja para caracterizar o protagonista (aqui suas minúcias e perfeccionismo que beiram o TOC), o interior do trem, identificar os suspeitos ou localizar geograficamente a trama. A impecável direção de arte, os figurinos, a fotografia estupenda de Haris Zambarloukos e os efeitos visuais, nos transportam para aquele mundo entre-guerras, resgatando a aura de mistério que tanto cercava o oriente nessa e nas eras anteriores. A música de Patrick Doyle é eficiente, sublinhando os momentos da trama, mas não é o seu trabalho mais memorável.
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Princesa Dragomiroff (Judi Dench) e Hildegard Schmidt (Olivia Colman): semelhantes a versão de 1974 |
O elenco, que guarda semelhanças e divergências com a lendária versão de 1974. Tal como a versão de Sidney Lumet, conta com pesos-pesados e figuras em ascensão. Os que são mais facilmente identificáveis com as versões da década de 70 são: Judi Dench (Princesa Dragomiroff), Willem Dafoe (Gerhard Hardman), Derek Jacobi (Edward Masterman), Michelle Pfeifer (Mrs. Hubbard), Olivia Colman (Hildegard Schmidt) e Marwan Kenzari (Pierre Michel). Eles guardam bastante semelhança em termos físicos e de estrutura dramática com, respectivamente, Wendy Hiller, Colin Blakely, John Gielgud, Lauren Bacall, Rachel Roberts e Jean-Pierre Cassel. Outros como Lucy Boynton (Condessa Andrenyi), Sergei Polunin (Conde Andrenyi), Manuel Garcia-Rulfo (Marquez) e Johnny Depp (Ratchett), guardam uma semelhança menor, física ou dramaticamente falando, mas são igualmente válidas e equivalentes ao trabalho de Jaqueline Bisset, Michel York, Dennis Quilley e Richard Widmark.
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Mary Debenhan (Daisy Ridley): perde na comparação |
O terceiro grupo de atores apresenta diferenças bem maiores, gerando certo estranhamento em alguns casos, por serem fruto de um esforço de inclusão de tipos diversos dos anglo-americanos, como Penélope Cruz (Pilar Estravados), que é latina até a medula e está substituindo Ingrid Bergman (premiada com o Oscar de melhor atriz coadjuvante pela personagem Greta Ohlsson). Ficando óbvio que mudaram o nome do personagem, tirando seu referencial original sueco. Ainda mais porque, no filme, um personagem desdenha de outro por este ser latino, mas não tem o mesmo sentimento em relação a ela, o que soa estranho. Já Leslie Odom Jr. (Doutor Arbuthnot, no original Coronel), o único negro do elenco, tem atitude semelhante à da versão de Sean Connery, e seu par (a estrela Jedi em ascensão Daisy Ridley no papel de Mary Debenhan), apesar de atuar condizentemente com a sua situação, perde se lembrarmos da vivacidade de Vanessa Redgrave na primeira versão. Tom Bateman (M. Bouc) e Josh Gad (Hector McQueen) têm uma composição bem diferente das de Martin Balsam e Anthony Perkins, mas acabam acertando por irem em direções diversas dos originais.
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Hercule Poirot (Kenneth Branagh): personagem bem construído, provavelmente com TOC... |
E, como em toda boa jornada, o herói sai transformado. Poirot nesta versão sai reconhecendo as suas fraturas emocionais e a sua necessidade de aprender a ver o mundo em termos menos absolutos de certo/errado, bem/mal, culpado/inocente, reconhecendo as áreas cinzas em que costumam habitar a alma humana. O reconhecimento de tal coisa provavelmente o transformará de forma sutil, atenuando as suas manias.
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Minúcias: A direção de arte é precisa em cada elemento do período histórico e geográfico |
Cumprido o seu dever, o nosso herói segue adiante com a possibilidade de retornar as telas caso a performance nas bilheterias o permita. Gancho para isso o filme se permite, e do jeito como ele se mostrou confortável no comando do espetáculo, eu não duvido que o veremos de novo.
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Josh Gad, Leslie Odom Jr., Daisy Ridley, Manuel Garcia-Rulfo e Michelle Pfeifer são versões bem diversas de suas contrapartes literárias |
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