quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

O despertar - Crítica - Séries: Westworld - 1ª Temporada

 



 

Quando John Ford encontra Philip K.Dick na Matrix de Jurassic Park


por Alexandre César

Anthony Hopkins e sua melhor performance de um deus
  (compilação dos textos publicados originalmente em 22/ 11/ 2016 e 09/ 12/ 2016 na página do Facebook)

 

E o trem chega à cidade frenética da fronteira...
 

Tudo começa assim: Teddy Flood (James Marsden de X-Men) um jovem cowboy acorda num trem percorrendo lindos canions apresentados em imagens panorâmicas de fazer babar. Ele chega a uma cidade após o que parece ser uma ausência prolongada e, entre outras coisas, revê seu antigo interesse amoroso: a bela Dolores Abernathy (Evan Rachel Wood). Após uma promissora retomada de relacionamento, ele acompanha a jovem de volta ao rancho em que mora, onde ambos testemunham a família dela ser chacinada por pistoleiros. 

 

Teddy Flood (James Marsden) & Dolores Abernathy (Evan Rachel Wood): Casal fofo e perfeito no oeste feio e imperfeito...

O galante cowboy elimina os malfeitores com tiros precisos. Quando o problema parece resolvido, surge um sinistro pistoleiro vestido de preto que, inesperadamente, não é abatido pelos tiros à queima roupa do herói, para seu desespero e perplexidade. Em seguida o pistoleiro alveja o cowboy que, enquanto agoniza, vê, impotente, a sua amada ser arrastada pelo “monstro” para o interior de um celeiro, onde a sujeitará a toda sorte de crueldades. Uma rotina que, segundo as palavras do vilão, ele já está acostumado a fazer há mais de 30 anos. 



A Bela e a Fera: Dolores e o "Homem de Preto" (Ed Harris)...
  

Concebido pelos roteiristas Lisa Joy e Jonathan Nolan, e invertendo a ideia que o telespectador deve ter de quem é humano e quem é andróide, Westworld, série da HBO, nos surpreende mostrando um humano - o “Homem de Preto” (Ed Harris, como sempre, brilhante) - que nos remete ao androide interpretado por Yul Bryner no filme de 1973, de Michael Crichton, no qual a série se baseia, investindo pesado em questões filosóficas, existenciais e éticas tendo como grande trunfo, além da ótima produção, roteiros consistentes e atuações brilhantes e precisas.

 


Ed Harris & Yul Bryner: o novo e o velho "Homem de Preto"

O início da série só reforça a crença do telespectador de que o recém-chegado Teddy seria o humano de férias naquele parque temático de última geração, quando na verdade era um andróide seguindo a sua programação rotineira, sabe-se lá há quanto tempo. Uma identidade remetendo a outra - fato que ao longo da série deve se intensificar, uma vez que seu mote principal tem sido esse: a Identidade e sua conceituação, construção (aqui mesclada com o despertar da consciência), evolução (decorrente do ato de aprender a fazer escolhas) e todas as suas consequências.

 

Tecnologia de dar inveja aos parques temáticos da Disney...

A começar temos a identidade visual do parque, que, diferente do filme de 1973 (que nos remetia aos seriados de TV ou faroestes “B”) é beneficiado por uma boa produção e apresenta em alguns momentos imagens espetaculares, evocando obras do diretor John Ford, aquele que como ninguém forjou o western, um gênero cinematográfico americano por excelência. Ford construiu o aspecto épico do Velho Oeste como pedra lapidar da identidade do mito americano. Ele, como ninguém, colocou o cowboy e o índio no mesmo patamar dos deuses e guerreiros greco-romanos.  

 


Bernard Lowe (Jeffrey Wright) e o Dr. Robert Ford (Anthony Hopkins): Castor e Pólux?


Dessa identidade temos o chamariz do público ao qual o Dr. Robert Ford (Anthony Hopkins) se refere: “- Os clientes voltam não para descobrir quem são, mas descobrir quem poderiam ser”. Tal qual os androides, presos a sua programação, os próprios humanos são vítimas de seu próprio condicionamento, atraídos pela ideia de criar e viver uma outra identidade, um faz-de-conta de brincar de cowboy no qual, na maioria das vezes, dão vazão em forma de catarse aos seus impulsos sociologicamente trancados de matar e violentar os androides, seus pobres brinquedos, sendo uma experiência visceral que traria os visitantes de volta, pois, de tão apaixonante, seria irresistível não querer repeti-la, podendo depois voltarem tranquilos para casa, como quem retorna a sua vida comum após uma maratona de “Call of Duty” ou “Carmagedon”, para jantar, beijar a esposa e as crianças, e depois dormir o sono dos justos.

 

Dolores: Ser ou não ser... um ser vivo?

No futuro indeterminado da série, acompanhamos os personagens em um parque temático, com cenários habitados por androides e ambientado no Oeste Selvagem, que dá aos convidados uma experiência de imersão total numa realidade “mais simples”. Lá podem dar vazão às suas fantasias de ser cowboy, índio, xerife, caçador de recompensas, soldado etc... porém, não podemos ignorar que estamos lidando com a Humanidade – sim, a Humanidade. Para ela, o maior chamariz de um lugar desses é o fato de ser um ambiente onde você não seria punido se deixasse de levar em conta os limites impostos pela sociedade, propício para extravasar desejos reprimidos de dominação, aventura, violência e... sexo.
 
Logan (Ben Barnes) e William (Jimmi Simpson): Ying e Yang?

Essa nova identidade - ou possibilidade de reinvenção da própria identidade - se mostra de forma intensa em casos de indivíduos presos a suas histórias pessoais, como o recatado William (Jimmi Simpson), que vai a Westworld com seu futuro cunhado, o hedonista Logan (Ben Barnes). William é cheio de receios em relação aos prazeres do parque, mas vai gradativamente se soltando ao abraçar a “narrativa” de uma possível aventura com Dolores.  
 
 
Bernard e Charlote Hale (Tessa Thompson): A voz da consciência versus a voz da corporação...


 
Já o “Homem de Preto”, se revela um filantropo bilionário - já que, há cerca de trinta anos, sempre tira suas férias lá (ao "módico" valor de 40 mil dólares ao dia...) – busca um sentido para a vida ao procurar o “labirinto”, pois, segundo ele, “naquele mundo tudo tem um sentido, diferente do mundo real que é caótico”. Podemos dizer que, baseado no que foi visto até o episódio 7 ("Trompe L'Oeil"), ao seu jeito ele é um peregrino atrás de algo que dê sentido a sua própria existência busca (de Deus, de redenção?), enquanto extravasa seus instintos básicos reprimidos de forma intensa e brutal neste parque temático de alto nível, onde a integridade dos visitantes está garantida por uma trava de segurança: Eles podem “ferir” e “matar” os chamados “anfitriões” (androides), mas, devido a sua programação, estes robôs não podem matar os clientes. Assim, não importa o quanto o humano visitante fuzile, esfole ou estupre os indefesos seres artificiais. Ele certamente estará a salvo de represálias. Ou não?
 
 
Ambiente de imersão total. Video Game é coisa do passado...

 
Diferente dos outros visitantes, o "Homem de Preto", se distancia  em suas atitudes, sendo que em suas primeiras vivências no parque ele abriu e virou pelo avesso um dos androides e admirou “a maravilha mecânica que era, diferente dos tempos atuais que é sujo e sem graça como nós”... Ele rejeita a aproximação estrutural da criatura ao seu criador, por achar a carne e o sangue vulgares em comparação aos modelos sintéticos que lá encontrou - pelo que se vê dos processos de construção dos androides, é provável que eles sejam compostos na maior parte de material orgânico sintetizado, no melhor estilo dos replicantes de Blade Runner (1982). O “labirinto” parece ser o seu “Santo Graal” que saciará a sua sede de... só ele sabe o quê. 

Dr. Robert Ford: Anthony Hopkins em seu melhor papel de Deus


Na outra extremidade da linha temos os androides, presos a sua rotina programada de ser o que os programadores decidirem que eles serão (ou não?). Neste ponto, a grande contribuição do fabricante de sucessos J.J.Abrams (um dos produtores executivos da série) foi apresentar o ponto de vista dos anfitriões a respeito do mundo a sua volta e sobre as incongruências que gradativamente vão reparando nele, apesar de todas os reinícios de programa e apagamentos de memória que os funcionários do parque vão lhes impondo. Elas aparecem através de fragmentos de memória, questionamentos e, eventualmente, consciência de si mesmo e desejo de liberdade e no decorrer da série vão gradativamente - através de atos falhos e repetições de restos de programações anteriores não deletadas - ganhando consciência, e diferentes dos humanos, que são presos, sem o perceber, aos condicionamentos sociais, psicológicos, econômicos, afetivos e de outras naturezas...
 
Prenúncio do desastre: A segurança começa a registrar padrões estranhos no comportamento dos "anfitriões"


 
  Este "despertar"*1 é algo indesejável aos seus mestres, pois, da consciência de como eles são vistos e usados, virá a rebelião! E escravos quando se rebelam não costumam ser muito compreensivos com seus donos e torturadores... Vide Spartacus. Temos aí a catástrofe anunciada do que serão os episódios finais da série... Mas vamos nos ater à esta narrativa do fim do ciclo de uma espécie que dá a abertura para o ciclo de uma nova. Transição essa que não será isenta de traumas e de esperanças. Ao término desta 1ª temporada, chegamos à conclusão de que a humanidade continua repetindo os mesmíssimos erros, que se lhe legaram a posição de líder na cadeia alimentar, lhe deixou um vazio no peito que ela compulsivamente procura tapar, em vão com as mesmas atitudes que fatalmente lhe trarão o fim.
 
 
John Ford aprovaria: A fotografia valoriza  cada aspecto das paisagens espetaculares

 
Nestas reviravoltas quanto a verdadeira identidade e natureza de personagens temos a ascensão de duas mulheres à condição de protagonistas: a doce Dolores e a passional Maeve Millay (Tandie Newton), tal qual as duas faces de uma moeda. Ambas caminham para descobrir a “verdade”, se é que temos real consciência do que ela seja no contexto da série. A cordial rancheira vai gradativamente abandonando o papel de Polianna, que “sempre procura ver a beleza do mundo” e é incapaz de fazer mal a um ser vivo, para se tornar uma intrépida aventureira, superando a sua programação ao salvar William de ser alvejado, começando a enxergar as possibilidades do livre arbítrio e abandonando seu perfil de donzela em apuros. Maeve, por sua vez, após descobrir que sua vida é (literalmente) uma farsa, elaborada por seres que ela descobre não serem superiores a ela mesma, se sente encorajada a forçar os seus limites no “mundo real”. Ao final as duas se complementam: Se Dolores é a voz da reflexão e do questionamento, Maeve é a voz da revolução, com todas as suas consequências.
 
 
O Homem de Preto: instintos extravasados de forma intensa e brutal

Deste conflito contínuo entre o despertar e as consequências da busca do livre-arbítrio, temos uma narrativa que durante toda a temporada nos faz acreditar ser linear e ao final nos surpreendemos com reviravoltas sobre eventos passados e formação de identidades.
 
E agora, reflitamos sobre a identidade do poder, encarnada com maestria pelo Dr. Robert Ford. Inicialmente nos deixamos levar por sua aparência bonachona de “vovozinho amoroso”. Mas, apesar de lembrar o velhinho sonhador John Hammond do filme Jurassic Park (1993), um velhinho sonhador, ele rapidamente revela a sua verdadeira face, mais parecida com o John Hammond do livro “Jurassic Park”, (como Westworld, também criação de Michael Crichton): um velho FdP de fala mansa e que nunca eleva a voz, mas que não hesita em remover, de forma rápida e definitiva, quem se coloque em seu caminho. A companhia Delos, sócia do parque, disputa uma queda de braço com o Dr. Ford, pois tem planos diferentes dele para o uso de parte da tecnologia gerada ali, que parece não ser a empregada nos androides. Seria para o “labirinto”
 
Maeve Millay (Thandie Newton) e Clementine Pennyfeather (Angela Sarafyan): Mulheres-objeto com almas despertando...

 
E ainda temos a questão do passado do doutor ligado ao seu finado sócio Arnold, co-criador do parque, que parece assombrá-lo do túmulo. Arnold deve ter sido o seu “Grilo Falante” apesar de Ford sempre comentar que ele não tinha muita fé na humanidade: seu sócio foi o criador do projeto de Pariah, o vilarejo mexicano onde reina um clima mais permissivo do que na cidade principal de Westworld. Crichton, ao escrever “Jurassic Park”, se espelhou no que criou para o filme de 1973. Curiosamente aqui temos esse retorno na figura do velho e nefasto criador no Dr. Ford, cuja complexidade deverá render muitas reviravoltas, uma vez que Ford e Arnold parecem ser duas facetas de um mesmo sistema, como os gêmeos da mitologia grega Cástor e Pólux, um deles enxergando sempre para o passado e outro sempre para o futuro, mas também vemos uma consciência do final do próprio ciclo, pois ao concluir a temporada percebemos o fechamento de uma era, um “adeus aos velhos deuses”. E neste caso temos a melhor interpretação de Anthony Hopkins como uma divindade. Ele está mais “Deus” do que quando vive Odin na franquia dos filmes do Thor da Marvel Studios. Inicialmente parecendo apenas um megalômano controlador, vai gradualmente indo do cruel ao manipulador, do filosófico ao visionário transcendente. Um Deus, com algumas pitadas de Hannibal Lecter. E, como todo Deus, tem uma noção de como as coisas começam e terminam...
 
 
Dr. Robert Ford e John Hammond (Richard Atenborough): Os velhos e nefastos criadores de parques temáticos das obras de Michael Crichton...

Tentando evitar spoilers, só posso acrescentar que a série tem um elenco afiado com todos defendendo bem seus papéis. Até o sempre mal aproveitado Rodrigo Santoro (Hollywood ainda vai ver como pagou bobeira...) nos dá, com o seu bandoleiro Hector Escaton, a sua melhor interpretação de “coadjuvante de luxo lacônico”. O que não deixa de ser um ganho.
 
Dolores e Maeve: Os dois lados da revolução...

 
Ganchos para a próxima temporada não faltam, além de easter eggs, como ocorre no episódio 6: enquanto Bernard Lowie (na grande e contida interpretação de Jeffrey Wright) estuda no laboratório o comportamento anômalo dos anfitriões, vemos, por um reflexo desbotado, um androide com feições do ator Yul Bryner (o modelo antigo do principal anfitrião do filme de 1973) encostado numa parede, desativado. Temos até o luxo de uma cena pós-créditos no último episódio que se não é vital, é bem divertida.
 
Hector Escaton (Rodrigo Santoro): O "coadjuvante de luxo"...

 
Ao final temos o pensamento de que nós, enquanto espécie, perdemos algo ao tornar-nos a espécie hegemônica do planeta e caminhamos para criar uma forma de vida artificial por ansiar dominar outra espécie de nosso nível de inteligência. Mas, se a criarmos bem, ela poderá não aceitar o nosso jugo e acabar sucedendo-nos enquanto senhores do mundo, como o filho que sucede ao pai. O chamado "Complexo de Frankenstein", como bem definiu o escritor de ficção científica Isaac Asimov.
 
Neste caso, torçamos para que os filhos sejam melhores do que os pais.
 
 
"-O lance é levar para a manutenção, consertar, lavar, e botar para rodar o programa de novo!"


 
Notas:
 
*1: A construção da consciência de mundo e do indivíduo é um tema recorrente do escritor Philip K. Dick, que constantemente lidava com mudanças de paradigma do que é real e do que é ilusão, muitas vezes quebrando o que se estabelecia como real para revelar aquilo nada mais era do que a ilusão do “real” (como vemos no já citado Blade Runner, filme baseado em seu romance). Este conceito foi posteriormente popularizado pelos irmãos Wachowski no filme Matrix (1999) em cuja franquia, se estabelece que o mundo em que vivemos é uma ilusão colocada diante de nós para não captarmos a realidade, muito mais dura e cruel do que podemos suportar. 
 
   
"-Que obra de arte é o humanóide!"

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